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A Santa Ceia


Corria o século XV. Vivia nessa época um homem que fazia tudo, entendia de tudo! Leonardo Da Vinci. Era pintor, arquiteto, escultor, mecânico, físico, químico e, por ai fora. Naquela manhã do ano de 1486, cercado de quadros, esboços, estatuas, tintas, pincéis, estava ele retocando ou inventando ou esculpindo qualquer coisa, quando o seu criado veio lhe anunciar a vinda de mais um cliente.

“Senhor, há um frade ai fora, desejando falar-lhe”. 

Dai a instantes, entrava no atelier um frade franciscano, de hábito, corda a cintura, da qual pendia um grande Rosário. Tirou da cabeça o capuz e se dirigiu ao artista.

“A paz do Senhor esteja nesta casa”.

“Amém. Pois não, reverendíssimo frei, com quem tenho eu a honra de falar?”
“Sou frei Pietro Farnese, do convento de São Francisco, ali da Vila Santa Luzia. Gostaria de lhe pedir um favor”.

“Serei muito honrado, com qualquer pedido de V.Rev.ma. Estou a disposição”.

“Bem, trata-se do seguinte: nos franciscanos, gostaríamos de ter um grande quadro da Última Ceia de Cristo no nosso refeitório. Ouvimos falar da fama do senhor e por isso...” 
“Por isso, V.Revma. quer que eu pinte esse quadro, não é isso?” 
“É exatamente isso, o senhor tirou-me a palavra da boca. Mas, será isso possível?” 

“Sem dúvida. Somente que o meu tempo esta muito exíguo. V.Revma teria pressa?” 

“Não propriamente, mas quanto tempo o senhor crê que levaria na tarefa?” 

“Não tenho a mínima idéia. Posso ir fazendo com tempo que disponho, mas não saberia dizer quando ficaria pronto. No entanto, se não houver prazo para esse quadro, não tenha duvida de que farei com todo gosto. Será uma honra”. 

“Muito agradecido senhor Da Vinci. E, quanto ao preço...” 

“Ora, não se preocupe. E a parte na qual menos penso. Minha vida esta na arte.” 

“Muitíssimo grato, senhor Da Vinci. Já vou me retirando. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”.

“Para sempre seja louvado”.
O frade saiu imediatamente Da Vinci começou a imaginar como seria o quadro da Última Ceia. Pensou nos personagens, nas vestimentas daquele tempo de Jesus, no Cenário. Deixou que tudo fosse amadurecendo no seu espirito com o tempo.

Começaram a surgir na tela branca linhas e riscos confusos de pessoas e objetos. Aos poucos os rostos vão tomando vida, as túnicas, a cor o cenário, a forma. Assim, os ágeis pincéis de Da Vinci vão retratando a São Pedro, a São Tiago, a São João, a São Tome. Mas...dois rostos ficaram vazios de suas formas o de Cristo e o de Judas.

Da Vinci queria que essas duas figuras fossem retratadas de modelos vivos, de maneira que pudessem personificar bem as figuras de Um e de outro. 

“Quero pintar Cristo de uma pessoa que traga as qualidades morais espelhadas na face: majestade, pureza, justiça, bondade, sabedoria... Quanto a Judas, preciso de uma pessoa que retrate no seu rosto toda a carga de hediondez, de baixeza, de traição, de canalhice, de mesquinhez, de tudo isso junto, enfim. Onde encontrar tais figuras? Bem, procuremos por ai...”
Deixou o atelier, e foi andando, andando... Cada pessoa que via, Da Vinci examinava atentamente, analizava profundamente. Não estava fácil achar o modelo desejado. Dias, semanas e meses se passavam. A procura continuava.
Três anos após, já desanimado, entrava numa igreja para descansar. Sentou-se no último banco e olhava para os vitrais, para as imagens, para as pinturas. De repente, chamou-lhe atenção uma pessoa que estava no primeiro banco: imóvel, contemplativo, bem posto, rezava fervorosamente.

“Deve ser um bom moço... seu aspecto é excelente... como é piedoso... demonstra pureza. Talvez...” 

Finalmente o moço levantou-se e dirigiu-se a saída. De fato, o jovem em seu rosto dizia tudo. Era o modelo ele procurava. Da Vinci foi-lhe ao encalço rapidamente. 

“Senhor! Senhor! Um instante por favor!”

“Sou eu quem o senhor chama?”

“Exatamente. Precisaria falar com o senhor, se não se incomodar.”

“Pois não, em que posso lhe ser útil?”
Da Vinci contou o seu projeto a Pietro Vandinelli, assim se chamava o moço.

“Bem... Não sei se... se a minha figura serveria de modelo... de modelo para tão... Sagrada Figura”. 

“Serve, sim. Então aceita?” 
“Bem... eu...”

“Está feito... O senhor será o meu modelo. Comecemos hoje, agora mesmo, no meu atelier. Vamos senhor Vandinelli”.
E assim foi.
Sentado, imóvel, o rosto de Vandinelli ia sendo retratado no lugar do de Jesus. Da Vinci, por seu turno, caprichava. Belo, o majestoso, o misericordioso, o puríssimo Rosto de Jesus ia tomando forma, cor e vida. Passaram-se assim, vários dias. A cada dia lá estava o fiel modelo Vandinelli.

“Pronto. Pronto. Esta pronto. Penso que Cristo esta magnifico, graças a sua colaboração, senhor Vandinelli.”
Vandinelli, despediu-se e seguiu o seu caminho.
Da Vinci iria começar a procura um modelo para o seu Judas. Para o Judas. Tem de ser o pior de todos...

Viu gente de toda espécie: bêbados, devassos, ladrões, debochados, canalhas. Não achava, porem, o que queria: alguém que reunisse todos os defeitos de Judas. Procurou... Procurou... Por vinte longos anos.

Um dia cansado, entra numa taberna para tomar um pouco de vinho.
“Meu Deus, como está difícil. Que faço? Retrato qualquer um? Ficaria sem expressão. Invento? Não. Sairia um Judas artificial. Que faço? Que faço?... Que barulho lá dentro! Que grito! Que horror! Quem será esse miserável infeliz?”
Da Vinci parara de beber para reparar no trapo humano que era enxotado nesse instante para fora da taberna: sujo, rasgado, ferido, horrível, cabeleira, barba imunda... cara horrível! Bêbado, boca retorcida de vícios, olhar fundo de degeneração enorme, gritava, blasfemava, resmungava, dizia coisas horrorosas. 

“Que ser horrível! Quem seria?”
Aos tapas e pontapés aquele mísero ia sendo enxotado. Da Vinci estremeceu diante de tanta baixeza e degradação moral.
Ai estaria um Judas perfeito. Isso mesmo.

“Vamos, venha comigo”.

O mau cheiro do homem era insuportável, mas, paciência. 

“Largue-me... Saia dai... não amole”. Dizia o bêbado proferindo uma enxurrada de palavrões.

“Eu cuidarei de você. Venha comigo até minha casa. Ali você terá comodidade e conforto.”
Assim, de mau jeito, Da Vinci levou aquele resto de gente para seu atelier. Sentou-se num cômodo banco, e enquanto o cafajeste dormia a sono solto, pintou o rosto de Judas, a tarde toda, a noite toda. 

Amanhecia. O horizonte todo avermelhado anunciava já o despontar do sol. 

“Terminei. Ainda bem. O “Judas” já esta acordando”.

“Minha cabeça. Que dor! Onde estou?”
Aquietou-se um pouco, levantou os olhos, começou a olhar e examinar, curioso. Assim divagou um pouco os olhos. Aos poucos, foi tomando conta com a realidade. Com olhos, ainda meio embaçados, tornava a olhar tudo. Esfregou os olhos.

“Que... Quem e você?... Onde estou?”

“Sou Da Vinci. Você ajudou-me a pintar um quadro”.

“Deixe-me ver isso. Minha cabeça! Como dói!”
Levantou-se e caminhou cambaleando em direção a “Última Ceia”. Olhou, olhou... e foi arregalando os olhos. Depois olhou para Da Vinci e as lágrimas começaram a correr-lhe pelos olhos. Tapou a cara e começou a soluçar, diante da surpresa de Da Vinci. Foi assentar-se e chorava, chorava. 

“Você sabe quem sou?” - perguntou o bêbado.

“Não. Só sei que você foi muito útil para mim. Ajudou-me muito.”

“Pois bem. Olha-me! Hoje me pintou como Judas mas há vinte anos atrás... posei-lhe como Jesus.”

“Como? Meu Deus, que horror!” - indignou-se Da Vinci. - “Que aconteceu, senhor Vandinelli?”
Vandinelli contou entre lágrimas e soluços, que tendo parado de rezar, tendo aderido as más companhias, não perseverara na virtude, rolando de pecado em pecado, de vicio em vicio até chegar no lastimável estado em que se encontrava, rolara de Jesus a Judas. O famoso quadro de Da Vinci ainda hoje se encontra no Museu de Florença para quem quiser vê-lo.
(revista "O Desbravador" - Orgão do Gremio Santa Maria)

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