Victor Hugo, falecido em 1885, foi um novelista, poeta, dramaturgo e estadista. Seu pai era um oficial que atingiu uma elevada posição no exército de Napoleão, enquanto sua mãe era católica defensora da casa real. Criado assim por um pai revolucionário e uma mãe religiosa, na sua juventude prevaleceu as tendencias revolucionárias, chegando a ter uma vida moralmente condenável. Ficou muito conhecido por causa de dois romances transformados em filmes: O corcunda de Notre-Dame e Os miseráveis. Infelizmente, sob o aspecto religioso, deixou muito a desejar.
Depois do exílio, que durou 20 anos, imposto pelo Imperador Napoleão III, volta a Paris, recebido como o “deus da democracia, multiplicando as obras ímpias, revolucionárias e jacobinas. A hugolatria francesa atingiu as raias do inverossímil quando se removeu do Panteon o corpo de Santa Genoveva (Padroeira de Paris) para pôr em seu lugar o cadáver de Victor Hugo.
Uma de suas características era a vaidade e a soberba. Diz dele Alexandre Dumas:
“Teria permanecido católico se o tivessem feito ao mesmo tempo Papa e Imperador”.
O nosso D. Pedro II, quando esteve em Paris, mandou dizer ao escritor que o queria conhecer. Victor Hugo mandou-lhe o seu endereço; e o nosso governante teve que ir à casa do escritor.
No seu livro Arte de ser avó, lança diatribes e injúrias contra a Igreja. Porém no seu livro Contemplações, escrito por ocasião da morte trágica de sua filha, faz profissão de fé na crença de Deus e na imortalidade da alma.
Pois bem, esse homem tão enigmático procurou Dom Bosco. O santo esteve em Paris desde 14 de abril até 26 de maio de 1883 para pedir esmolas para suas obras. Na Cidade Luz, o santo fez conferências, deu audiências, consultas, operou milagres.
Entre as audiências temos a dada a Victor Hugo. Ouçamos da boca do próprio Dom Bosco:
Faz dois anos, quando estive em visita a Paris, tive um encontro com um personagem desconhecido. Depois de algum tempo de espera, ás 23 horas, eu o recebi. A sua primeira palavra foi:
- Reverendo, não se assuste se eu lhe disser que sou incrédulo e que, portanto, não presto absolutamente nenhuma fé aos milagres que lhe atribuem.
Respondi:
- Não sei com quem tenho a honra de falar e não quero nem mesmo sabê-lo. Garanto-lhe que de forma alguma pretendo obrigá-lo a crer naquilo que não quer admitir. Não lhe falarei nem sequer de religião, pois me parece que o senhor não deseja que lhe fale nisso. Mas diga-me uma coisa: o senhor pensou sempre assim em sua vida?
- Quando era menino tinha fé, como tinham meus pais e meus amigos. Mas desde o momento em que comecei a refletir e a raciocinar, deixei de lado a religião e comecei a viver como filósofo.
- Que é que o senhor entende por estas palavras: “viver como filósofo?”
- Levar uma vida alegre, sem acreditar no sobrenatural nem na vida futura, meios de que se servem os padres para amedrontar a gente simples e pouco instruída.
- E o senhor, que é que admite a respeito da vida futura?
- Não percamos tempo tratando desse assunto. Falarei da vida futura quando estiver no futuro.
- Vejo que o senhor está gracejando. Mas, já que estamos neste argumento, tenha a bondade de ouvir-me. Um dia pode acontecer que o senhor seja acometido de alguma doença grave.
- Não há dúvida nenhuma, tanto mais que nesta idade estamos expostos a um sem-número de enfermidades.
- Pois essas enfermidades não o poderiam levar ao túmulo?
- É inevitável. Quem poderia se julgar dispensado de pagar tributo á morte?
- E quando chegar a sua última hora estiver para entrar na eternidade?
- Terei coragem para me confessar filósofo e não acreditar na eternidade.
- Mas quem lhe poderia impedir, nesse momento ao menos, de pensar na imortalidade da alma e na religião?
- Ninguém. Mas seria esse um ato de fraqueza que me cobriria de ridículo aos olhos dos meus amigos.
- E no entanto, nesse último momento da vida, não lhe custará nada conseguir a paz da consciência.
- Bem o compreendo. Mas não creio necessário abaixar-me até esse ponto.
- Mas, se é assim, que é que o senhor espera da vida? Dentro de pouco o presente não mais lhe pertencerá. Do futuro o senhor não quer que se fale. Qual é então a sua esperança?
O desconhecido abaixou a cabeça. Meditava. Aí eu prossegui: É necessário que pense no futuro supremo. Tem ainda um resto de vida diante de si. Sirva-se dele para voltar ao seio da Igreja e implorar a misericórdia de Deus e poder salvar-se para sempre.
Se não fizer assim, morrerá como incrédulo e não terá outra coisa a esperar senão o nada, como o senhor diz, ou então os eternos suplícios.
- Vossa Reverendíssima está usando uma linguagem em que não vejo nem religião, nem filosofia; é uma palavra de amigo, que eu não ouso recusar. Sei que de todos os meus amigos, embora muitos deles sejam profundos em assuntos de filosofia, nenhum ainda conseguiu resolver o problema. Vou refletir no que me disse e voltarei aqui para falarmos.
Apertou-me a mão e deixou o seu cartão de visita, no qual vi o nome VICTOR HUGO”
Dois dias depois, à mesma hora, voltou e, tomando a mão de Dom Bosco, disse:
- Não sou mais o personagem do outro dia. Foi um gracejo que lhe fiz e peço-lhe que me considere seu amigo. Sou Victor Hugo, creio no sobrenatural, creio em Deus e espero morrer entre os braços de um padre católico que possa recomendar minha alma a Deus.
Será que Victor Hugo foi fiel à palavra dada a Dom Bosco?
No seu testamento deixou escrito: “Recuso a oração de todas as igrejas. Peço uma oração a todas as almas. Creio em Deus”. Um seu biógrafo fala que no fim da vida o escritor multiplicava sua profissão de fé, principalmente quando se levantava da mesa. Os que o rodeavam procuravam abafar essas manifestações. Seu genro, Lockroy, mandava que se calasse: “Atenção, gente! O velho começa a delirar ” .
Seria fruto da conversa com Dom Bosco? Uma publicação francesa – Revue de deux mondes – assim termina o artigo sobre este assunto: “Cada um fincou o pé em sua posição. O moralista leigo não fez sermão; o padre conservou a sua dignidade; e o santo não dobrou os joelhos perante a filosofia”.
Pe João Modesti
(EXTRAÍDO DO BOLETIM SALESIANO – MAIO/JUNHO DE 1985)