KARL MARX:
“GRITANDO MALDIÇÕES COLOSSAIS”
Paul Johnson (1988)
Karl Marx tem tido mais influência nos acontecimentos atuais, e nas cabeças de homens e mulheres, do que qualquer intelectual de nossos tempos.
A razão para isso não é originariamente a atração que se sente diante de seus conceitos e de sua metodologia, embora ambos representem um atrativo para as cabeças pouco rigorosas, mas o fato de que sua filosofia foi institucionalizada em dois dos maiores países do mundo, União Soviética e China, e em seus muitos satélites.
Nesse sentido, ele se assemelha a Santo Agostinho, cujas obras foram lidas de forma generalizada entre os líderes da igreja do século V ao XIII e por esse motivo tiveram um papel preponderante na configuração da cristandade medieval.
Mas a influência de Marx tem sido ainda mais direta, pois o tipo de ditadura que ele idealizou para si mesmo (como veremos) foi de fato levada a efeito, com incalculáveis conseqüências para a humanidade, por seus três mais importantes seguidores, Lenin, Stalin e Mao Tse-Tung, que nesse ponto foram, todos eles, marxistas convictos.
Marx foi um filho de seu tempo, o meio do século XIX, e o marxismo foi uma filosofia típica do século XIX pelo fato de se pretender científico.
“Científico” era o termo mais convincente de aprovação para Marx, que ele usava comumente para distinguir a si próprio de seus vários inimigos.
Ele e sua obra eram “científicos”; seus inimigos, não.
Percebeu que tinha encontrado uma explicação científica do comportamento do homem na história análoga à teoria da evolução de Darwin.
A noção de que o marxismo é uma ciência, de um modo que nenhuma outra filosofia nunca foi ou podia ser, faz parte da doutrina pública dos governos instituídos por seus seguidores, de tal forma que influencia o ensino de todas as matérias nas escolas e universidades desses países.
Isso se espalhou pelo mundo não-marxista, pois os intelectuais, principalmente os acadêmicos, são fascinados pelo poder, e a identificação do marxismo com a autoridade física poderosa induziu muitos professores a acolher a “ciência” marxista em suas próprias disciplinas, especialmente nas matérias não-exatas ou quase exatas como Economia, Sociologia, História e Geografia.
Sem dúvida, se Hitler, em vez de Stalin tivesse ganho a disputa pela Europa Central e Oriental em 1941-45, e desse modo impusesse sua vontade sobre uma grande parte do mundo, a doutrina nazista - cujos partidários também pretendiam que fosse científica, assim como a teoria sobre a raça que dela fazia parte - teria ganho um falso brilho acadêmico e teria penetrado nas universidades pelo mundo afora.
Porém, a vitória militar assegurou que a ciência marxista, mais do que a nazista, prevalecesse.
Por conseguinte, o que devemos perguntar em primeiro lugar a respeito de Marx é: em que sentido ele era um cientista, se é que o era?
Ou seja, até que ponto ele estava comprometido com a busca do conhecimento objetivo por meio da investigação e da avaliação dos dados?
A esse respeito, a biografia de Marx o mostra originariamente como um erudito.
Ele descendia, por parte de pai e de mãe, de linhagens de scholars. Seu pai, Heinrich Marx, um advogado cujo nome original era Hirschel ha-Levi Marx, era o filho de um rabino estudioso do Talmude, descendente do famoso Rabino Elieser ha-Levi de Mainz, cujo filho Jehuda Minz era diretor da Escola Talmúdica de Pádua.
A mãe de Marx, Henrietta Pressborck, era filha de um rabino que descendia igualmente de eruditos e sábios famosos.
Marx nasceu em Trier (na época, um território prussiano) a 5 de maio de 1818, sendo um entre nove filhos, embora tenha sido o único filho homem a sobreviver até a idade adulta; suas irmãs casaram-se, respectivamente, com um engenheiro, um livreiro e um advogado.
A família era essencialmente de classe média e prosperava a olhos vistos.
O pai era um liberal e foi descrito como sendo “um verdadeiro francês do século XIX, que sabia seu Voltaire e seu Rousseau de trás para a frente”.
Seguindo um decreto prussiano de 1816 que proibia os judeus de ocupar os cargos mais elevados na advocacia e na medicina, tornou-se protestante e a 26 de agosto de 1824, batizou seus seis filhos.
Marx foi crismado aos 15 anos e parece ter sido, por algum tempo, um cristão fervoroso.
Cursou o antigo segundo grau jesuíta - nessa época secularizado - e a Universidade Bonn. De lá, foi para a Universidade de Berlim, que era, nessa época, a de melhor ensino no mundo.
Nunca recebeu nenhuma educação judaica nem se esforçou para ter tal educação, e nunca demonstrou nenhum interesse pelas causas dos judeus.
Porém pode-se dizer que ele desenvolveu peculiaridades típicas de um certo tipo de erudito, os talmúdicos (trabalhos intelectuais compostos de várias partes distintas; explicações de textos jurídicos do Pentateuco): a tendência de acumular massas imensas de dados (manuscritos) assimilados pela metade e de planejar obras enciclopédicas que nunca eram terminadas; um enorme desprezo por todos os não-eruditos e uma agressividade e irascibilidade extremadas ao lidar com outros eruditos.
Na verdade, praticamente toda a sua obra tem a característica básica de um estudo talmúdico: é essencialmente um comentário a respeito ou uma crítica do trabalho de outros estudiosos do mesmo campo.
Marx se tornou um bom scholar clássico e mais tarde se especializou em filosofia, principalmente a partir do modelo hegeliano. Fez doutorado, embora tenha sido na Universidade de Jena, que tinha critérios menos rígidos do que a de Berlim; parece nunca ter merecido um posto acadêmico.
A PERSONALIDADE
Para descobrir isso, temos de examinar muito mais de perto sua personalidade.
É verdade - e em certos aspectos uma triste verdade - que as grandes obras do intelecto não provêm da atividade abstrata do cérebro e da imaginação; estão profundamenteenraizadas na personalidade.
Marx é um exemplo notável desse princípio.
Já analisamos a apresentação de sua filosofia como sendo o amálgama de sua visão poética, de seu talento jornalístico e de seu academicismo.
Mas também pode ser demonstrado que o conteúdo real dessa filosofia se liga a quatro aspectos de seu caráter: o gosto pela violência, o desejo de poder, a inabilidade de lidar com dinheiro, a tendência de explorar os que se encontravam a sua volta.
A sugestão de violência, sempre presente no marxismo e demonstrada com frequência pelo próprio comportamento dos regimes marxistas, representa uma projeção do temperamento de seu criador.
Marx passou sua vida num ambiente de extrema violência verbal, onde periodicamente ocorriam brigas e, às vezes, ataques físicos. As brigas na família de Marx foram a primeira coisa que sua futura esposa, Jenny von Westphalen, percebeu a seu respeito.
Na Universidade de Bonn, a polícia o prendeu por possuir uma pistola, e ele por muito pouco não foi suspenso; nos arquivos da universidade, aparece por ter-se envolvido em conflitos estudantis, disputado um duelo e se cortado no olho esquerdo.
Suas brigas com a família entristeceram os últimos anos de vida do pai e acarretaram, por fim, uma ruptura definitiva com sua mãe.
Numa das cartas mais antigas de Jenny que foram conservadas, se lê: "Por favor, não escreva com tanto rancor e irritação".
E fica patente que muitas de suas incessantes desavenças se deviam às expressões violentas que costumava usar quando escrevia ou, mais ainda, quando falava, e nesse último caso a situação era, no mais das vezes, agravada pelo álcool.
Marx não era um alcoólatra, embora bebesse com regularidade, geralmente em grande quantidade, e às vezes se envolvesse em perigosas bebedeiras.
Em parte, seu problema era que, desde os 25 anos, Marx sempre foi um exilado vivendo quase exclusivamente em comunidades de expatriados, em sua maioria alemães, em cidades estrangeiras.
Raramente procurava fazer amizades fora delas e nunca tentava se integrar.
Além disso, os expatriados com que sempre se relacionava eram, eles próprios, um pequeno grupo exclusivamente em política revolucionária.
Esse fato, por si, ajuda a entender a visão estreita que Marx tinha da vida, e seria difícil imaginar um cenário social mais propenso a estimular sua natureza belicosa, pois esses círculos eram famosos por suas disputas violentas.
Segundo Jenny, as desavenças só não foram constantes em Bruxelas.
Em Paris, seus encontros na Rue des Molins para tratar de colaborações em jornais tinham de se dar atrás de janelas fechadas de modo que os transeuntes não pudessem ouvir a gritaria interminável.
Entretanto, essas brigas não foram sem propósito.
Marx brigava com todas as pessoas com as quais se relacionava - de Bruno Bauer em diante, a menos que conseguisse dominá-las completamente.
Em conseqüência, existem várias descrições, em sua maior parte hostis, do furioso Marx em ação.
O irmão de Bauer chegou a escrever um poema sobre ele.
"O velho camarada de Trier, em fúria vociferando,Seu punho maligno está cerrado, ele grita interminavelmente, Como se dez mil demônios o dominassem". Payne, pag. 31.
[Edgar Bauer describes Marx as: a swarthy chap of Trier, a marked monstrosit He neither hops nor skips, but moves in leaps and bounds Raving aloud… He shakes his wicked fist, raves with a frantic air. As if ten thousand devils had him by the hair.]
[Nota: Texto semelhante de Engels: A swarthy chap of Trier, a marked monstrosity. He neither hops nor skips, but moves in leaps and bounds, Raving aloud. As if to seize and then pull down. To Earth the spacious tent of Heaven up on high]
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Marx era baixo, largo, tinha cabelo e barba pretos, uma pele amarelada (seus filhos o chamavam de "Mouro") e usava um monóculo no estilo prussiano.
Pavel Annenkov, que o viu no "julgamento" de Weitling, descreveu sua "espessa e negra cabeleira, suas mãos peludas e a sobrecasaca abotoada indevidamente"; era mal-educado, "presunçoso e ligeiramente sobranceiro (arrogante, que se acha superior)"; sua "voz aguda e metálica se adequava bem às sentenças radicais que ele proferia continuamente sobre os homens e as coisas"; tudo o que dizia tinha um "tom áspero".
Sua obra favorita de Shakespeare era Tróilo e Créssida, da qual gostava da troca de insultos entre Ajax e Tersites.
Adorava citá-la, e a vítima de um trecho ("Tu, senhor de espírito apalermado: não possuis mais miolos do que eu em meu cotovelo").
Foi seu companheiro revolucionário Karl Heinzen, que revidou com um retrato memorável do pequeno homem raivoso.
Achava Marx "intoleravelmente desprezível", o resultado do "cruzamento entre um gato e um macaco", com "cabelos desgrenhados pretos como carvão e com a tez suja e amarelada".
"impossível dizer se suas roupas e sua pele eram da cor de lama por natureza ou se estavam apenas sujas."
Tinha olhos pequenos, ameaçadores e maliciosos, "emitindo faíscas de um fogo repulsivo"; tinha o hábito de dizer: "Eu vou aniquilar você".
[Nota: O relato de Geinzen foi publicado em Boston em 1864; citado em Payne, p. 155.]
De fato, Marx gastava grande parte de seu tempo compilando dossiês minuciosos sobre seus rivais e inimigos políticos, os quais ele não hesitava em apresentar à polícia se achasse que lhe seria útil.
As grandes brigas públicas, como por exemplo no encontro da Internacional em Hague, em 1872, prenunciava os réglements des comptes [acertos de conta] da Rússia soviética: não há nada no período de Stalin que não estivesse prefigurado, de uma grande distância no tempo, pelo comportamento de Marx.
Às vezes, havia de fato sangue derramado. Marx foi tão ofensivo durante sua briga com August von Willich, em 1850, que este desafiou-o para um duelo.
Marx, apesar de ter sido duelista no passado, disse que "não se envolveria nas brincadeiras dos oficiais prussianos", porém não fez nenhuma tentativa de evitar que seu jovem assistente, Konrad Schramm, tomasse o seu lugar, embora Schramm nunca tivesse usado uma pistola na vida e Willich fosse um atirador excelente.
Schramm foi ferido.
O padrinho de Willich nessa ocasião foi um aliado particularmente perigoso de Marx, Gustav Techow, merecidamente odiado por Jenny, o qual matou pelo menos um companheiro revolucionário e acabou sendo enforcado por assassinar um oficial da polícia.
O próprio Marx não era contra a violência ou mesmo o terrorismo quando se adequavam a sua tática.
Dirigindo-se ao governo prussiano em 1849, fez a seguinte ameaça: "Nós somos impiedosos e não queremos nenhum centavo de vocês. Quando chegar a nossa vez, não vamos reprimir nosso terrorismo". [We are ruthless and ask no quarter from you. When our turn comes we shall not disguise our terrorism.]
No ano seguinte, o "Plano de ação" que ele tinha distribuído especificamente na Alemanha estimulava a violência do populacho:"Longe de sermos contrários aos chamados excessos, aqueles exemplos de vingança popular contra construções particulares ou públicas que têm um passado detestável, temos de não apenas perdoá-los, como também cooperar neles".
[Far from opposing the so-called excesses, those examples of popular vengeance against hated individuals or public buildings which have acquired hateful memories, we must not only condone these examples but lend them a helping hand.]
Nota: Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, vol. vi, pp. 503-5
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Em certas ocasiões, quis defender o assassinato, contanto que fosse eficaz.
Um companheiro revolucionário, Maxim Kovalevsky, que estava presente quando Marx recebeu a notícia de uma tentativa fracassada de assassinar o imperador Guilherme I no Unter den Linden, em 1878, recorda a fúria de Marx, "cobrindo de maldições esses terroristas que tinham falhado em executar sua ação terrorista".
Parece certo que Marx, uma vez estabelecido no poder, teria sido capaz de grande violência e crueldade.
Porém, é claro que ele nunca esteve em condição de levar a efeito uma revolução em larga escala, violenta ou de qualquer outro tipo, e por esse motivo sua raiva recalcada se refletiu em seus livros, que sempre têm um tom de intransigência e extremismo. Muitas passagens dão a impressão de que foram realmente escritas em estado de cólera.
No devido tempo, Lenin, Stalin e Mao Tse-tung puseram em prática, numa imensa escala, a violência que Marx trazia em seu íntimo e que transpira em sua obra.
Como Marx encarava de fato a moralidade de suas ações, quando deturpava a verdade ou estimulava a violência, é impossível dizer.
Num certo sentido ele era um homem fortemente moralista.
Tinha o desejo ardente de criar um mundo novo.
Apesar disso, ridicularizou o moralismo em A ideologia alemã; argumentou que "não era científico" e poderia ser um obstáculo para a revolução.
Parece ter pensado que, como conseqüência de uma mudança quase metafísica acarretada pelo advento do comunismo, esse moralismo seria dispensado.
Como a maioria das pessoas egocêntricas, costumava pensar que as leis morais não se aplicavam em seu próprio caso, ou então identificava seus interesses com a moralidade enquanto tal.
Decerto, chegou a considerar os interesses do proletariado e o cumprimento de seus próprios pontos de vista como sendo coextensivos.
O anarquista Michael Bakunin observou que ele tinha"uma devoção fervorosa à causa do proletariado, embora ela estivesse sempre misturada com a vaidade pessoal".
Sempre foi egocêntrico; existe uma extensa carta sua escrita na juventude aparentemente para seu pai que na verdade foi escrita para – e sobre – si próprio.
Os sentimentos e as opiniões dos outros nunca eram de muito interesse para ele nem o afetavam.
Ele tinha de dar prosseguimento, sozinho, a qualquer realização na qual estava envolvido.
De seu trabalho de editor do jornal Neue Rheinische Zeitung, Engels observou: "A organização do quadro de pessoal ligado à editoria era uma verdadeira ditadura de Marx". [Marx-Engels, Collected Works, vol. ii, pp. 330-31.]
Ele não dedicava nenhum tempo nem tinha qualquer interesse pela democracia, a não ser no sentido especial e perverso que ele atribuía à palavra; qualquer tipo de eleição lhe era abominável - num texto jornalístico, mostrou desprezo pelas eleições gerais britânicas chamando-as, de simples orgias alcoólicas. [Marx, On Britain (Sobre a Inglaterra) (Moscou, 1962), p. 373.]
Nos depoimentos, de várias fontes, sobre a postura e as intenções políticas de Marx, é surpreendente a quantidade de vezes que aparece a palavra "ditador". Annenkov chamou-o de "a personificação de um ditador democrata" (1846).
Um policial prussiano particularmente inteligente que o denunciou em Londres, observou: "O traço dominante de seu caráter é uma ambição ilimitada e um amor pelo poder (...) ele é o chefe absoluto de seu partido (...) faz tudo por conta própria e dá ordens sob sua própria responsabilidade e não vai tolerar nenhuma oposição".
Techow (o perigoso padrinho de Willich no duelo), que certa vez fez com que Marx ficasse bêbado e se abrisse com ele, fez um notável retrato estilizado de Marx.
Era "um homem com uma personalidade proeminente", com "uma rara superioridade intelectual" e "se seu coração correspondesse a sua inteligência e ele possuísse, na mesma proporção, amor e ódio, teria posto minha mão no fogo por ele".
Porém, "falta-lhe grandeza de alma. Estou convencido de que ambição pessoal bastante perigosa consumiu tudo o que ele tinha de bom (...) a obtenção de poder pessoal [é] o objetivo de tudo o que ele faz".
Em seu julgamento final sobre Marx, Bakunin bate na mesma tecla: "Marx não acredita em Deus mas acredita bastante em si mesmo e faz todo mundo o servir. Seu coração não é cheio de amor mas de rancor, e ele tem muito pouca simpatia pela raça humana".
A raiva comum em Marx, seus hábitos ditatoriais e seu rancor refletiam, sem dúvida, sua consciência justificada de possuir grandes potencialidades e sua intensa frustração pela incapacidade de exercê-las de forma mais efetiva.
Quando jovem, levou uma vida boêmia, na maior parte do tempo ociosa e devassa; quando já era um homem de meia-idade, ainda achava difícil trabalhar de forma sensata sistemática, costumava ficar a noite inteira conversando e depois, durante quase todo o dia, se deitava sonolento no sofá.
Quando ficou mais velho, manteve horários mais regulares mas nunca conseguiu se autodisciplinar para o trabalho.
Apesar disso, se ofendia com qualquer crítica.
Era uma das características que compartilhou com Rousseau o fato de costumar brigar com amigos e benfeitores, especialmente se eles lhe davam bons conselhos.
Quando seu dedicado companheiro, o dr. Ludwig Kugelmann, sugeriu, em 1874, que ele não encontraria nenhuma dificuldade em terminar O capital se conseguisse tão somente organizar um pouco mais sua vida, Marx cortou relações com ele para sempre e submeteu-o a uma série de insultos implacáveis. [E. g., Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, voI. xxxiii, p. 117.]
Seu egoísmo irascível tinha causas físicas tanto quanto psicológicas.
Levava uma vida particularmente insalubre: fazia pouquíssimo exercício, comia comidas altamente condimentadas e amiúde em grandes quantidades, fumava abundantemente, bebia bastante, em especial a forte cerveja ale, e em conseqüência sempre tinha problemas com seu fígado.
Raramente tomava banhos ou se lavava de qualquer modo, o que, juntamente com sua dieta inadequada, explica os verdadeiros acessos de furúnculos dos quais sofreu durante um quarto de século.
Eles fizeram aumentar sua natural irritabilidade e pelo visto estavam em sua pior fase na época em que escrevia O capital. "O que quer que aconteça", escreveu ameaçador a Engels, "enquanto a burguesia existir, espero que ela tenha motivo para se lembrar de meus carbúnculos". [Marx-Engels Gesamt-Ausgabe, voI. xxxi, p. 305.]
Os furúnculos variavam em número, tamanho e intensidade, porém, de uma hora para outra apareciam em todas as partes de seu corpo, inclusive nas bochechas, no cavalete do nariz, nas nádegas, o que o impedia de escrever, e no pênis.
Em 1873, esses furúnculos causaram um colapso nervoso caracterizado por extraordinários ataques de raiva que lhe causavam estremecimentos.
Sua grotesca incompetência de lidar com dinheiro era ainda mais essencial como causa de sua raiva e de sua frustração e estava talvez bem na raiz de seu ódio ao sistema capitalista.
Quando jovem, essa característica o deixou à revelia dos agiotas que trabalhavam a altas taxas de juro, e um veemente ódio à usura representou a base da dinâmica emocional de toda a sua filosofia moral.
Isso explica por que ele dedicou tanto tempo e espaço ao assunto, por que toda a sua teoria sobre as classes está enraizada no anti-semitismo e por que ele incluiu n`O capital uma passagem extensa e violenta de denúncia contra a usura, a qual foi tirada de uma das diatribes anti-semíticas de Lutero. [Isso aparece como uma nota de pé de página em O capital, vols. i, ii e vii, capítulo 22.]
Os problemas de Marx com o dinheiro começaram na universidade e duraram toda a sua vida.
Derivam de uma atitude essencialmente infantil.
Marx pedia dinheiro emprestado de forma insensata, gastava-o e depois ficava invariavelmente surpreso e nervoso quando as letras de câmbio altamente descontadas, somados os juros, venciam.
Ele via a cobrança de juros, que é essencial a qualquer sistema que se baseie no capital, como um crime contra a humanidade e como causa da exploração do homem pelo homem, que seu sistema filosófico estava fadado a extinguir.
Isso era em termos gerais.
Mas no contexto particular de seu próprio caso, reagia às dificuldades sozinho, explorando qualquer um que estivesse a seu alcance e, em primeiro lugar, sua própria família.
O dinheiro era o assunto dominante na correspondência mantinha com a família.
Na última carta de seu pai, escrita em fevereiro de 1838, quando já estava morrendo, ele reitera sua queixa de que Marx não dava importância para a família a não ser para conseguir ajuda e para se lamentar: "Você está agora no quarto mês de seu curso de advocacia e já gastou 280 táleres. Eu não ganhei tanto dinheiro durante todo o inverno". [Citado em Payne, p. 54.]
Três meses mas tarde, ele morreu.
Marx não se preocupou em assistir a seu enterro.
Em vez disso, começou a pressionar sua mãe.
Já tinha adotado um meio de viver à custa de empréstimos de amigos e de conseguir quantias periódicas da família. [Nota: Depois conseguiu doações para as instituições que fundou, como a IS e a Liga]
Alegava que a família era "bastante rica" e tinha a obrigação de apóia-lo em seu importante trabalho.
A não ser no caso de sua atividade jornalística ocasional, cujo propósito era muito mais fazer política do que ganhar dinheiro, Marx nunca procurou seriamente arranjar um emprego, embora certa vez tenha concorrido, em Londres (em setembro de 1862), ao cargo de escrivão ferroviário, tendo sido rejeitado por ter uma caligrafia muito ruim.
A falta de vontade de Marx de procurar uma profissão parece ter sido a razão principal pela qual sua família se mostrava indiferente a seus pedidos de esmola.
Sua mãe não apenas recusou pagar suas dívidas, acreditando que logo ele se endividaria outra vez, mas acabou por deserdá-lo completamente.
Daí em diante, suas relações passaram a ser mínimas.
Atribui-se a ela o desejo mordaz de que "Karl acumulasse capital em vez de apenas escrever sobre ele".
Ainda assim, de um modo ou de outro Marx teve direito, por herança, a quantias de dinheiro consideráveis.
A morte do pai lhe rendeu 6000 francos de ouro, dos quais gastou uma parte provendo de armas os trabalhadores belgas.
A morte da mãe, em 1856, lhe rendeu menos do que esperava, mas isso se deveu ao fato de que ele tinha antecipado o pagamento da herança ao pedir emprestado a seu tio Philips.
Recebeu também uma grande quantia do espólio de Wilhelm Wolf, em 1864.
Outras quantias vieram por intermédio de sua esposa e da família dela (ela também trouxe, como parte de seu dote, um serviço de jantar de prata com o brasão de seus antepassados de Argyll, um faqueiro timbrado e roupa de cama).
Heranças, empréstimos transformaram-se, do mesmo modo, em ninharia, e eles nunca experimentaram uma situação de aumento de renda por muito tempo.
Na verdade, sempre estavam endividados, e geralmente devendo uma grande quantia, e o serviço de jantar de prata com freqüência ia para a mão dos agiotas, junto com muitas outras coisas, inclusive a roupa da família.
Numa ocasião, Marx estava prestes a desistir de sua casa, conservando um par de calças.
A família de Jenny, assim como a própria família de Marx, se recusou a dar maiores ajudas a um genro que considerava como sendo ocioso e imprudente.
Em março de 1851, escrevendo a Engels para anunciar o nascimento de uma filha, Marx se queixou: "Não tenho, literalmente, nem um centavo em casa".
Por essa época, é claro, Engels era a mais recente vítima da exploração.
Desde meados da década de 1840, quando se encontraram pela primeira vez, até a morte de Marx, Engels foi a maior fonte de renda da família Marx.
É provável que ele tenha cedido mais da metade de tudo o que ganhou.
Porém, é impossível se computar o total pois durante um quarto de século Engels forneceu quantias de dinheiro irregulares, acreditando nas promessas de Marx de que sua situação logo estaria ajeitada, visto que estava para chegar a pr6xima doação.
O relacionamento se baseava na exploração por parte de Marx e era completamente desigual, já que ele era sempre o parceiro que dominava, e às vezes oprimia.
Apesar disso, de um modo curioso, cada um precisava do outro, como um par de comediantes teatrais num número a dois, incapazes de representar separados, resmungando a toda hora mas sempre mantendo-se unidos no final.
A parceria quase se desfez em 1863, quando Engels sentiu que a mendicância insensível de Marx tinha ido longe demais.
Engels tinha duas casas em Manchester, uma para receber pessoas relacionadas com seus negócios e a outra para sua amante, Mary Burns.
Quando ela morreu, Engels ficou profundamente triste.
Ficou furioso de receber de Marx uma carta insensível (datada de 6 de janeiro de 1863), em que reconhece sua perda com brevidade e então, imediatamente, recai no assunto mais importante: um pedido de dinheiro.
Não há nada que ilustre melhor o indissolúvel egocentrismo de Marx.
Engels respondeu com frieza, e o incidente quase representou o fim do relacionamento. Em alguns aspectos, ele nunca mais foi o mesmo, pois deixou claro para Engels as limitações da personalidade de Marx.
Parece ter decidido, por essa época, que Marx nunca seria capaz de conseguir um emprego ou sustentar sua família, ou mesmo pôr ordem em seus negócios.
A única coisa a fazer era pagar-lhe com regularidade um donativo.
Então, em 1869, Engels vendeu sua empresa, assegurando para si uma renda de um pouco mais de 800 libras por ano. Dessas, 350 iam para Marx.
Por conseguinte, durante os últimos 15 anos de vida, Marx foi pensionista de um rentier, e experimentou uma certa segurança.
No entanto, pelo visto gastava cerca de 500 libras - ou mais - por ano, se justificando para Engels: "Mesmo examinando-se pelo lado comercial, uma organização puramente proletária seria inadequada nesse caso".
Portanto as cartas solicitando de Engels donativos adicionais continuaram. [Para mais informações a respeito das finanças de Marx, ver David McLeIlan, Karl Marx: Interviews and Recollections [Karl Marx: entrevistas e recordações] (Londres, 1981)]
Porém, é claro que as vítimas principais da imprudência e da relutância de Marx para trabalhar foram seus próprios familiares, sobretudo sua esposa.
Jenny Marx é uma das personagens trágicas e lamentáveis da história do socialismo.
Tinha a coloração clara dos escoceses, uma pele pálida, olhos verdes e o cabelo castanho-avermelhado de sua avó por parte de pai, descendente do segundo conde de Argyll, morto em Flodden.
Ela era bonita e Marx a amava – seus poemas o provam –, e ela o amava apaixonadamente, travando batalhas ao mesmo tempo com sua família e consigo mesma; só depois de muitos anos de amargura esse amor se extinguiria.
Como poderia um egoísta como Marx inspirar tal afeição?
A resposta, penso eu, é que ele era forte, dominador, bonito durante a juventude e na meia-idade, apesar de sempre sujo.
E não menos importante: ele era engraçado.
Os historiadores prestam muito pouca atenção nessa qualidade; ela geralmente ajuda a explicar um fascínio que de outra forma parece misterioso (era uma das vantagens de Hitler, como orador tanto em lugares reservados como em público).
O humor de Marx era sempre sarcástico e enraivecido.
Entretanto, suas excelentes piadas faziam as pessoas rirem.
Se não fosse esse humor, suas muitas características desagradáveis teriam tornado impossível que ele tivesse um único discípulo e as mulheres teriam lhe dado as costas.
Desse modo, as piadas eram o caminho mais seguro para atingir o coração das mulheres muito fiéis, cujas vidas são ainda mais difíceis do que as dos homens.
Marx e Jenny foram vistos rindo juntos várias vezes e, mais tarde, seriam as piadas de Marx, mais do que qualquer outra coisa, que ligariam suas filhas a ele.
Marx se orgulhava da nobre descendência escocesa da esposa (ele exagerava esse ponto) e de sua posição de filha de um barão e oficial superior no governo prussiano.
Em convites impressos que ele mandou emitir por ocasião de um baile em Londres, na década de 1860, ela aparece como "née von Westphalen".
Declarava amiúde que se dava melhor com aristocratas genuínos do que com a burguesia avarenta (segundo testemunhas, falava a palavra burguesia com um desprezo peculiar e desagradável) [Nota: este é o modo de expressão do invejoso despeitado.]
Mas Jenny, tão logo lhe foi revelada a terrível realidade de ter-se casado com um revolucionário sem posição social e sem profissão, teria de bom grado preferido uma vida burguesa, não importando quão banal ela fosse.
Desde o começo de 1848 e no mínimo pelos pr6ximos dez anos, sua vida foi um pesadelo.
A 3 de março de 1848, uma ordem de expulsão belga foi expedida contra Marx e ele foi levado para a prisão; Jenny também passou a noite numa cela, com um grupo de prostitutas; no dia seguinte, a família foi levada sob escolta policial até a fronteira.
Durante a maior parte do ano seguinte, Marx esteve fugindo ou em julgamento. Por volta de junho de 1849, estava sem recursos. No mês seguinte, confessou a um amigo: "A última jóia pertencente a minha esposa já achou seu caminho até a casa de penhores". Manteve seu ânimo graças a um otimismo revolucionário exagerado e permanente, e escreveu para Engels: "Apesar de tudo, uma erupção colossal do vulcão revolucionário nunca foi tão iminente. Aguarde maiores detalhes". [Nota: Isso tinha a clara intenção de engambelar Engels, que era um ingênuo.]
Mas para ela não havia tal consolo, e além disso estava grávida.
Encontraram segurança na Inglaterra, mas também aviltamento.
Ela agora tinha três filhos, Jenny, Laura e Edgar, e deu à luz um quarto, Guy ou Guido, em novembro de 1849.
Cinco meses mais tarde, foram despejados de seus aposentos em Chelsea por não pagarem o aluguel, sendo jogados na calçada perante (escreveu Jenny) "toda a gentalha de Chelsea".
Suas camas foram vendidas para pagar o açougueiro, o leiteiro, o farmacêutico e o padeiro.
Eles acharam abrigo numa casa de pensão alemã imunda em Leicester Square e lá, naquele inverno, o bebê Guido morreu.
Jenny deixou um relato desesperado desses dias, e desde então seu entusiasmo e sua afeição por Marx nunca mais foram recobrados.
No dia 24 de maio de 1850, o embaixador britânico em Berlim, o Conde de Westmoreland, recebeu de um inteligente espião policial prussiano uma cópia de um relatório que descrevia, bem detalhadamente, as atividades dos revolucionários alemães que se concentravam à volta de Marx.
Nenhum outro texto transmite de forma mais clara o que Jenny foi obrigada a tolerar:
[Marx] leva a vida de um intelectual boêmio. Lavar, arrumar e trocar a roupa de cama são coisas que raramente faz, e na maior parte do tempo está embriagado.
Embora com freqüência fique ocioso por dias a fio, é capaz de trabalhar dia e noite com uma persistência sem descanso quando tem muito trabalho a fazer.
Não tem um horário determinado para ir dormir ou para acordar.
Amiúde, fica acordado a noite inteira e depois se deita completamente vestido no sofá ao meio dia, e dorme até o fim da tarde, nada incomodado com o mundo de gente entrando e saindo daquele cômodo [ao todo, só havia dois] (...)
Não há nenhum móvel limpo ou inteiro.
Está tudo quebrado, esfarrapado e rasgado, com um centímetro de pó sobre qualquer coisa e a maior desordem por toda a parte. No meio da [sala de estar] há uma mesa grande e antiga coberta com oleado e sobre ela se encontram manuscritos, livros e jornais, junto com os brinquedos das crianças, trapos e farrapos da cesta de costura de sua esposa, vários copos com as bordas lascadas, facas, garfos, lâmpadas, um tinteiro, copos sem pé, cachimbos de barro holandeses, tabaco, cinzas (...) o dono de uma loja de quinquilharias teria dúvidas quanto a jogar fora esse extraordinário conjunto de bugigangas. Quando você entra no aposentos de Marx, a fumaça e o tabaco fazem seus olhos lacrimejarem (...) Está tudo sujo e coberto de poeira, de modo que se sentar torna-se uma ação arriscada. Num canto, há uma cadeira de três pernas. Em outra cadeira, as crianças brincam de cozinhar. Por acaso, essa cadeira tem quatro pernas. É a única que é oferecida às visitas, mas a comida das crianças não foi retirada e, caso você se sente, está se arriscando a perder um par de calças. [Publicado em Archiv für Geschichte des Socialismus (Berlim, 1922), pp. 56-58; in Payne, pp. 251 e passim.]
Esse relato, que data de 1850, descreve provavelmente o ponto mais baixo na história da família. Porém, mais desgraças viriam nos próximos anos.
Uma filha chamada Franziska, que nasceu em 1851, morreu no ano seguinte.
Edgar, o filho tão amado, o favorito de Marx, a quem chamava Musch (Mosquinha), pegou gastrenterite por conta do ambiente imundo e morreu em 1855, o que representou um choque terrível para os dois.
Jenny nunca se recuperou. "Todo dia", escreveu Marx,"minha esposa me diz que gostaria de estar no túmulo..."
Uma outra menina, Eleanor, tinha nascido três meses antes, mas para Marx isso não era a mesma coisa.
Ele sempre quis filhos homens e agora não tinha nenhum; as garotas eram insignificantes para ele, a não ser como auxiliares de escreventes.
Em 1860, Jenny pegou varíola e perdeu o que restava de sua beleza; desde então até sua morte em 1881, ela definhou devagar e ficou em segundo plano na vida de Marx, tornando-se uma mulher cansada e desiludida, que se contentava com pequenas caridades: a devolução de sua prataria, uma casa própria, etc.
Em 1856, graças a Engels, a família pôde se mudar de Soho para uma casa alugada, o n.° 9 da Grafton Terrace, em Haverstock Hill; nove anos mais tarde, outra vez graças a Engels, conseguiram uma casa muito melhor, em I Maitland Park Road.
Dessa época em diante, nunca mais deixaram de ter no mínimo dois criados.
Marx passou a ler o jornal The Times toda manhã.
Foi eleito para o conselho da paróquia local.
Nos domingos de sol, levava a família para passear, com todo o aparato, até Hampstead Heath, ele próprio caminhando à frente, a esposa, as filhas e os amigos atrás.
Porém, o "emburguesamento" de Marx deu lugar a uma nova forma de exploração, dessa vez de suas filhas. Todas as três eram inteligentes.
Pode-se ter pensado que, para compensar a infância desassossegada e empobrecida que elas suportaram por serem filhas de um revolucionário, ele teria pelo menos obedecido à lógica de seu radicalismo e as encorajado a ter profissões.
Na verdade, ele negou a elas uma educação satisfatória, não permitiu que tivessem nenhuma instrução e proibiu peremptoriamente que ingressassem em profissões.
Como Eleanor, a que mais o amava, disse a Olive Schreiner: "Por muito tempo, os anos de miséria representaram uma sombra entre nós".
Em vez disso, as garotas foram mantidas em casa, aprendendo a tocar piano e a pintar aquarelas, como as filhas dos negociantes.
Enquanto elas cresciam, Marx ainda participava, de vez em quando, de bebedeiras com os amigos revolucionários; porém, segundo Wilhelm Liebknecht, não permitia que eles cantassem canções indecentes em sua casa, pois as meninas podiam ouvir.
Mais tarde, desaprovou os pretendentes das filhas, que faziam parte de seu próprio ambiente revolucionário.
Não podia, ou não conseguiu, evitar que se casassem, porém dificultou as coisas, e o fato de ter sido contra deixou marcas.
Chamava o marido de Laura, Paul Lafargue, que tinha vindo de Cuba e possuía algum sangue negro, de “Negrilho” ou “o Gorila”.
Também não gostava de Charles Longuet, que se casou com Jenny. Na sua opinião, seus dois genros eram idiotas:"Longuet é o último dos proudhonistas e Lafargue é o último dos bakuninistas - danem-se, os dois!"
Eleanor, a mais nova, foi a que mais sofreu com a oposição do pai a que as filhas seguissem profissões e sua hostilidade em relação aos pretendentes.
Ela tinha sido criada para ver o homem, ou seja, seu pai, como sendo o centro do universo.
Talvez não seja tão surpreendente o fato de ela ter-se apaixonado por um homem ainda mais egocêntrico que seu pai.
Edward Aveling, um escritor com pretensões de tornar-se um político de esquerda, era um galanteador e um parasita que tinha se especializado em seduzir atrizes.
Eleanor queria ser atriz e, por isso, foi uma vítima natural.
Por uma pequena e mordaz ironia da história, ele, Eleanor e George Bernard Shaw fizeram parte, em Londres, da primeira leitura privada do brilhante libelo de Ibsen a favor da liberdade da mulher, Casa de bonecas, no qual Eleanor fez o papel de Nora.
Pouco depois da morte de Marx, ela se tornou a senhora Aveling, e daí em diante, foi sua triste serva, como sua mãe Jenny tinha sido de Marx.
Entretanto, Marx deve ter necessitado de sua esposa mais do que quis admitir.
Depois da morte dela, em 1881, definhou rapidamente, parando de trabalhar, procurando se curar em várias estâncias de águas da Europa ou viajando para Argel, Monte Carlo e Suíça atrás de sol e ar puro.
Em dezembro de 1882, alegrava-se com sua crescente influência na Rússia: "Em nenhum outro lugar meu sucesso me dá mais prazer".
Destrutivo até o final, se vangloriava de que "isso me dá a satisfação de estar corroendo um poder que, depois da Inglaterra, é o verdadeiro sustentáculo da velha sociedade".
Três meses mais tarde, morreu em seu robe, sentado perto da lareira.
Uma de suas filhas, Jenny, tinha morrido poucas semanas antes.
As mortes das duas outras também foram trágicas.
Eleanor, profundamente angustiada por conta do comportamento de seu marido, tomou uma dose excessiva de ópio em 1898, possivelmente escapando de um pacto de suicídio com ele.
Treze anos depois, Laura e Lafargue também fizeram um pacto de suicídio, e ambos o levaram a efeito.
Houve, contudo, uma estranha e obscura sobrevivente dessa trágica família, o fruto do mais grotesco ato de exploração pessoal de Marx.
Em todas as investigações que fez sobre as injustiças dos capitalistas britânicos, ele encontrou por acaso vários exemplos de trabalhadores com salários baixos, porém nunca conseguiu achar nenhum que não recebesse salário.
No entanto, esse trabalhador existia, e vivia na casa de Marx.
Quando ele levava sua família em seus pomposos passeios, bem atrás, carregando a cesta de piquenique e outras bagagens, estava uma atarracada figura feminina.
Tratava-se de Helen Demuth, conhecida pela família como "Lenchen".
Nascida em 1823, filha de camponeses, tinha se juntado à família von Westphalen na idade de oito anos como babá.
Ganhava seu sustento mas não recebia salário.
Em 1845, a baronesa, que se sentia aflita e preocupada com sua filha casada, cedeu Lenchen, então com 22 anos, para Jenny Marx a fim de facilitar a situação da filha.
Ela continuou com a família de Marx até sua morte, em 1890.
Eleanor a chamava de “a mais amorosa das pessoas em relação aos outros, enquanto que austera, a vida inteira, consigo mesma”.
Ela trabalhava de forma brutal e infatigável, não apenas cozinhando e lavando a casa mas também administrando o orçamento familiar, o que Jenny era incapaz de fazer.
Marx nunca lhe pagou um centavo.
Entre 1849 e 1850, durante o período mais tenebroso da história da família, Lenchen tornou-se amante de Marx e ficou grávida.
O pequeno Guido tinha acabado de morrer, mas Jenny, também ela, estava novamente grávida.
Toda a família estava vivendo em dois cômodos e Marx teve de ocultar o estado de Lenchen não apenas de sua esposa mas dos muitos visitantes revolucionários.
Por fim, Jenny descobriu ou teve de ser informada e, mais do que as outras
desgraças por que passava na época, esse fato representou o fim de seu amor por Marx.
Denominou-o de "um incidente sobre o qual não insistirei mais, embora tenha aumentado bastante nossos infortúnios públicos e particulares".
Essa passagem está num esboço autobiográfico que ela escreveu em 1865, do qual 29 das 37 páginas foram conservadas; o restante, onde descreve suas brigas com Marx, foi destruído, provavelmente por Eleanor.
O filho de Lenchen nasceu na casa de Soho, o n° 28 da Dean Street, a 23 de junho de 1851.
O garoto foi registrado como Henry Frederik Demuth.
Marx se recusou a reconhecer sua responsabilidade, na época ou mais tarde, e negou categoricamente os boatos de que era o pai.
Deve ter aventado a possibilidade de fazer como Rousseau e pôr a criança no orfanato, ou então adotá-la para sempre.
Mas Lenchen tinha uma personalidade mais forte do que a senhora Rousseau.
Insistiu em reconhecer, ela própria, o garoto.
Ele foi oferecido para adoção a uma família de operários chamada Lewis, porém com permissão de visitar a família Marx.
No entanto, foi proibido de usar a porta da frente e obrigado a ver a mãe apenas na cozinha.
Marx estava bastante temeroso de que a paternidade de Freddy fosse descoberta e que isso lhe causasse um prejuízo irrevogável como líder e profeta revolucionário.
Uma leve referência ao incidente ainda se encontra em suas cartas; outras foram suprimidas por mãos variadas.
Por fim, convenceu Engels a reconhecer secretamente a paternidade de Freddy, como uma versão falsa em que a família acreditasse.
Eleanor, por exemplo, tomava-a como verdade.
Mas Engels, embora pronto, como sempre, a se submeter aos pedidos de Marx para o bem de seu trabalho conjunto, não estava disposto a levar o segredo para o túmulo.
Engels morreu, de câncer no esôfago, a 5 de agosto de 1895; incapaz de falar mas desejando que Eleanor (Tussy, como era chamada) não mais acreditasse que seu pai era puro, escreveu numa lousa: "Freddy é filho de Marx. Tussy quer transformar seu pai num ídolo".
[Nota: Isso talvez demonstre que Engels, no final da vida, tenha se conscientizado que Marx era um crápula.]
A secretária e governanta de Engels, Louise Freyberger, numa carta de 2 de setembro de 1898 a August Bebel, disse que o próprio Engels contou a ela a verdade, acrescentando: "A semelhança de Freddy e Marx chega a ser absurda, os dois tendo aquele rosto judeu e o cabelo preto-azulado; só mesmo estando cego pela parcialidade é que se pode ver nele alguma semelhança com o General" (como chamava Engels).
A própria Eleanor aceitou o fato de Freddy ser seu meio-irmão e afeiçoou-se a ele; nove de suas cartas para ele se conservaram.
Ela não lhe fez nenhum benefício, uma vez que seu amante, Aveling, chegou a pedir emprestado todas as economias de Freddy e nunca o reembolsou.
Lenchen foi o único representante da classe trabalhadora que Marx chegou a conhecer de perto, seu único contato real com o proletariado.
Freddy podia ter sido outro, visto que ele foi criado como um jovem proletário e em 1888, com 36 anos, ganhou seu cobiçado diploma como engenheiro mecânico qualificado.
Passou praticamente a vida inteira em King's Cross e Hackney e foi um membro constante do sindicato dos engenheiros.
Mas Marx nunca o conheceu.
Encontraram-se apenas uma vez, possivelmente quando Freddy estava subindo a escada externa que saía da cozinha, sem saber, nessa época, que o filósofo revolucionário era seu pai.
Ele morreu em janeiro de 1929, numa época em que a visão de Marx acerca da ditadura do proletariado tinha tomado uma forma concreta e aterradora e Stalin - o governante que alcançara o poder absoluto pelo qual Marx ansiara - estava apenas começando seu ataque catastrófico contra os camponeses russos.
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Além das pesquisas do autor este texto também usa informação das seguintes fontes: - Robert Payne, Marx (Londres, 1968).
- T. B. Bottomore (trad. e org.), Karl Marx: Early Writings [Karl Marx: primeiros escritos] (Londres, 1963).
- Karl Jaspers, "Marx und Freud", Der Monat, xxvi (1950).
- Geoffrey Pilling, Marx' s Capital [O capital, de Marx] (Londres, 1980).
- Louis Althusser, For Marx [Para Marx] (trad. Londres, 1969).
- W. O. Henderson & W. H. ChaIloner (trad.. e org.), Engel’s Condition ofthe working class in England [A situação da classe operária na Inglaterra, de Engels] (Oxford, 1958).
- Robert S. Wistrich: Revolutionary Jews from Marx to Trotsky.
- Henderson & ChaIloner, apêndice v, no livro do dr. Loudon, Report on the operation of the poor laws [Relatório sobre a operação das leis dos pobres], 1833
- Nationalokonomie der Gegenwart und Zukunft, i (Frankfurt, 1848).
-Leslie R. Page, Karl Marx and thecritical examination of his works [Karl Marx e o exame crítico de suas obras] (Londres, 1987).
- David F. Felix, Marx as politician [Marx como político] (Londres, 1983).
- Felix, e Chushichi Tsuzuki: The Life of Eleanor Marx, 1855-98: A Socialist Tragedy [A vida de Eleanor Marx, uma tragédia socialista] (Londres, 1967).
- Stephan Lukes, Marxism and Morality [Marxismo e moralidade] (Oxford, 1985).
- David McLeIlan, Karl Marx: His life and Thought [Karl Marx: sua vida e seu pensamento] (Londres, 1973).
- David McLeIlan, Karl Marx: Interviews and Recollections [Karl Marx: entrevistas e recordações] (Londres, 1981).
- Fritz J. Raddatz, Karl Marx: A Political Biography (trad., Londres, 1979).
- H. F. Peters, Red Jenny: A Life With Karl Marx [Jenny, a comunista: sua vida com Karl Marx] (Londres, 1986).
- Yvonne Kapp, "Karl Marx's children: Family Life 1844-55" ["Os filhos de Karl Marx: a vida em família, 1844-55"], in Karl Marx: 100 years on [Karl Marx: 100 anos depois] (Londres, 1983).
- Maximilien Rubel em Marx: Life and Works [Marx: vida e obras] (trad., Londres, 1980); - W. Blumenberg, Karl Marx: An Illustrated Biography [Karl Marx: uma biografia ilustrada] (1962,
trad. inglesa Londres, 1972).
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