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O Perigo real do Pelagianismo

 
Recentemente, alguém mencionou uma antiga heresia chamada pelagianismo. Tenho ouvido essa expressão algumas vezes nos últimos meses e parece que há alguma confusão quanto ao seu uso. Assim, sem fazer qualquer juízo com relação àqueles que estão usando essa expressão, vamos tomar um tempinho nesse domingo para analisar essa antiga heresia. Se fizermos isso bem, talvez nos surpreendamos ao perceber como esse assunto é realmente relevante hoje em dia.
O nome pelagianismo deve-se a um monge austero, muito provavelmente de origem irlandesa, chamado Pelágio. Ele faleceu por volta do ano 418. Não devemos confundi-lo com os dois Papas que tiveram este mesmo nome.
O pelagianismo pode ser concebido simplesmente como a heresia da autoajuda. Ela essencialmente “nega a elevação do homem a um estado sobrenatural, e nega o pecado original. De acordo com os pelagianos, o pecado de Adão afetou os seus descendentes apenas por meio do mau exemplo” (Ott, pp. 222-3). Isso significa que o trabalho salvífico de redenção de Cristo consiste acima de tudo em Seu ensinamento e Seu exemplo de virtude. Para Pelágio, Jesus foi apenas um grande mestre, assim como Moisés antes Dele. Além disso, “O pelagianismo considerava a graça como algo dentro da capacidade natural do homem.” De acordo com essa visão, o homem tem uma capacidade natural de viver uma vida santa e sem pecado e merecer a felicidade eterna ao exercer a sua vontade livre. Os pelagianos acreditavam que esta capacidade natural era auxiliada por graças externas que nos foram dadas por Deus… coisas como a Lei Mosaica, o Evangelho, o exemplo de virtude estabelecido por Nosso Senhor e Sua Mãe, entre outros. Isso significa que o homem pode alcançar até mesmo a remissão de seus pecados por seu próprio poder, pelo ato de afastar sua vontade do pecado, o que torna o pelagianismo um puro naturalismo.
Para recapitular, o pelagianismo sustenta “(I) que o pecado de nossos primeiros pais não foi transmitido a sua posteridade; [o pecado de Adão feriu apenas a ele mesmo, não a raça humana, e as crianças recém-nascidas estão no mesmo estado que Adão antes de sua queda.] (II) que Cristo veio ao mundo, não para restaurar algo que havíamos perdido, mas para estabelecer um ideal de virtude, e assim contrabalançar o mau exemplo de Adão; (III) que podemos, por nossos próprios poderes naturais, e sem qualquer assistência interna de Deus, [fazer o bem que seja agradável a Deus e desta forma] merecer a felicidade da Visão Beatífica” (cf. Apologetics and Catholic Doctrine, Arcebispo Michael Sheehan, p. 456). (IV) a Lei de Moisés é apenas um bom guia para o Céu, tal como o Evangelho. Finalmente, (V) os pelagianos consideravam a morte como algo natural ao homem e não uma consequência do pecado de Adão. Assim, mesmo se Adão não tivesse pecado, ele teria morrido de qualquer maneira.
Esse modo de pensar e agir herético e errôneo foi fortemente refutado pelo Doutor da Graça, Santo Agostinho, bem como por muitos outros, como São Jerônimo, e, finalmente, condenado como herético por diversos Papas e Concílios, mais notadamente o Concílio de Cartago aprovado pelo Papa (418).
Esse Concílio ensinou com autoridade aquilo que professamos ainda hoje, a saber: (I) a morte não sobreveio a Adão por causa de uma necessidade física, mas sim através do pecado. (II) as crianças recém-nascidas precisam ser batizadas por conta do pecado original. [Observe que o atual Código de Direito Canônico enfatiza que isso precisa ser feito dentro de algumas semanas após o nascimento]. (III) A graça santificante não serve apenas para o perdão de pecados passados, mas também ajuda a evitar pecados futuros. (IV) A graça de Cristo não apenas revela o conhecimento dos mandamentos de Deus, mas também confere força à vontade para cumpri-los. (V) Sem a graça de Deus não é meramente mais difícil, mas absolutamente impossível realizar boas obras. (VI) Devemos confessar-nos como pecadores, não por humildade, mas em verdade … (cf. Dz. nos. 101-8).
Isso tudo é muito interessante em vista do que tem transparecido durante o último meio século. De fato, após a conclusão desse pequeno estudo, é impressionante ver o quanto o pelagianismo retornou em nossos dias.
 
Em primeiro lugar, considere que hoje em dia o batismo de crianças muito frequentemente é postergado e adiado por meses e até mesmo anos com pouca ou nenhuma preocupação pela felicidade eterna da criança. Muitas paróquias e padres violam diretamente o Direito Canônico ao disponibilizar batismos aos seus fiéis apenas uma vez por mês, ao passo que a Igreja exige que o batismo deles não seja adiado por mais de uma semana ou duas… e se eles estiverem em perigo de morte, eles deverão ser batizados sem demora, mesmo se não houver um padre disponível. Qual a razão dessa atitude de indiferença com relação ao batismo de crianças? Porque o pensamento predominante hoje em dia é que todas as crianças que morrem na infância, batizadas ou não, vão para o Céu. Na realidade, elas são consideradas como Adão antes da queda! Isso é o pelagianismo. Não é de admirar que tenha havido muitos esforços ao longo das últimas décadas para banir o ensinamento tradicional do Limbo para as crianças, aquele lugar para onde vão as crianças não batizadas.
Por outro lado, segundo a minha experiência, os católicos tradicionais se esforçam com muita diligência para que seus recém-nascidos sejam batizados tão logo possível. Por quê? Porque Sua Majestade, Nosso Senhor, Jesus Cristo, ensinou que precisamos nascer da água para sermos salvos. São Paulo disse em Efésios, “Éramos como os outros, por natureza, verdadeiros objetos da ira” (2:3). Porém, somos filhos de adoção renascidos pelas águas do batismo! Minha experiência me diz também que católicos fiéis sempre levam muito a sério a doutrina tradicional do Limbo das crianças. Aqui não há nenhum pelagianismo!
Em segundo lugar, ultimamente cogita-se que até mesmo ateus podem fazer boas obras. Pelágio concordaria porque, conforme ouvimos, ele cria que qualquer homem, crente ou não, batizado ou não, pode fazer o bem. “A raiz dessa possibilidade de fazer o bem – que todos temos – está na criação” (Papa Francisco). Em outras palavras, tudo o que é necessário para ser bom é encontrado na natureza. Claro, Pelágio também acrescentou que o bom exemplo de Cristo, a lei escrita e o Evangelho auxiliam o homem nessa bondade como auxílios externos. É interessante observar como o Papa João XXIII disse no início do Concílio Vaticano: “Hoje em dia… a Esposa de Cristo … considera que Ela atende às necessidades do dia presente demonstrando mais claramente a validade de seu ensinamento ao invés de condenações…” Ele queria ver o Magistério ser “predominantemente pastoral em caráter”… “para ensinar mais eficazmente”… “elevando a tocha da verdade católica” (cf. Concílio Vaticano II: Uma História Nunca Escrita, Mattei, PP. 174-5). Basta ensinar a verdade e as pessoas verão a luz e farão o bem.
Seja intencional ou não, tudo isso inclina-se para o pelagianismo.
Daí depreende-se que Pelágio não seria muito favorável a passar muito tempo em oração. Por que rezar se não precisamos da graça para sermos bons?! Certamente, Pelágio não passaria muito tempo de joelhos rezando o Rosário para ganhar um favor celestial. Qual a razão de ser dos sacerdotes? Quem precisa dos sacramentos? Infelizmente, durante o século passado e ainda hoje em dia, temos tido religiosos e padres que colocam o trabalho na frente da oração. Houve o movimento de padres trabalhadores. Temos visto um crescimento do laicismo… em que o laicato assume diversos papéis dos sacerdotes. Temos visto sacerdotes e religiosos que se tornaram ativistas, indo a muitas reuniões e abrindo cantinas para os pobres, ao mesmo tempo em que negligenciam o ofício divino, suas horas santas e leitura espiritual. Sabendo disso, poucos ficam surpresos com os inúmeros escândalos e perda de vocações. Tudo isso resulta perfeitamente do pelagianismo.
Sim, São Paulo claramente afirmou hoje na epístola, “Mas, pela graça de Deus, sou o que sou, e a graça que Ele me deu não tem sido inútil”. Qualquer homem pode fazer uma ação naturalmente boa… digamos, dar uma banana a um amigo em necessidade.


Ainda assim, somente quando a ação é feita com clareza sobrenatural infusa na alma cooperando com uma graça atual dada por Deus para aquela ação particular, ela poderá agradar a Deus e ser-Lhe digna. São Paulo é claríssimo sobre esse ponto: “ainda que eu distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que eu entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria” (1Cor 13:3). Isso é precisamente a razão pela qual os católicos tradicionais se esforçam para oferecer tudo… Isso é precisamente a razão pela qual as almas fiéis rezam o Rosário com frequência … vão a Santa Missa tanto quanto possível, confessam seus pecados frequentemente e usam sacramentais. Eles estão implorando a Deus pela graça de crescer em santidade. Aqui não há pelagianismo. São Padre Pio rezava múltiplos rosários todo dia, até mesmo 30…pedindo a intercessão de Nossa Senhora e auxílio na conversão de pecadores. Certamente, ninguém consideraria esse grande estigmatizado um pelagiano por rezar tantos rosários!
Em terceiro lugar, considere como há algumas décadas se tem cogitado que os judeus não precisam se converter e que eles têm tudo que necessitam na Antiga Lei para serem salvos… como se Nosso Senhor, o Messias, o próprio cumprimento dos tipos e profecias do Antigo Testamento, não tivesse se encarnado para estabelecer a Nova e Eterna Aliança em Seu próprio Sangue. Além disso, muitos judeus não seguem a Antiga Lei, mas sim o Talmude. De qualquer maneira, Pelágio adoraria isso… porque, como ouvimos, afirmamos que a Lei Mosaica é tão boa para ir para o Céu quanto o Evangelho. Mais uma vez, os católicos fiéis acreditam que a Lei Antiga foi cumprida e completada na Nova. Que o Santo Sacrifício da Missa é o único Sacrifício agradável a Deus. Aqui não há pelagianismo.
Em quarto lugar, considere como Pelágio sustentava que a morte era natural ao homem. Ele encontraria muitos de acordo com ele hoje em dia simplesmente porque a teoria da evolução sustenta a mesma coisa. É triste dizer que muitos membros da Igreja neste momento parecem acreditar que as coisas surgiram por evolução. Uma vez que Pelágio concordava muito que o homem afirmasse sua vontade para que as coisas fossem feitas, fico imaginando o que ele acharia hoje em dia sobre o homem interferindo na natureza para forçar a evolução a um novo patamar… da maneira como, por exemplo, estamos fazendo alimentos geneticamente modificados, controles ambientais, e outras áreas.
O católico tradicional, entretanto, tem repulsa pela evolução, sabendo que Deus não criou a morte e a destruição, mas sim que a morte é o salário do pecado. Além disso, o católico fiel sabe que a Igreja deu ensinamentos múltiplos contra a pseudociência da evolução através de Seus ensinamentos sobre a criação. Aqui não há pelagianismo!
Em quinto lugar, a prática da confissão tem diminuído grandemente nos últimos 40 anos. Cada vez menos almas consideram o pecado uma preocupação séria ou um impedimento para o Céu. Todo mundo que morre agora vai para o Céu. Ouve-se com frequência pecadores dizendo: “Deus irá compreender” e “eu não vou fazer isso e novo….” Pelágio ataca novamente. O homem pode superar o pecado por si mesmo. Deus irá compreender!
Todavia, o católico fiel sabe que o pecado é profundamente ofensivo a Deus e somente pode ser apagado pela aplicação do Sangue Precioso de Cristo, mais especialmente disponível na Confissão, e fazendo reparação através de penitência e emenda de vida. Essa é a razão pela qual centenas de pessoas foram até São João Vianney e São Padre Pio… para que esses santos cheios de dons olhassem dentro de suas almas e se certificassem de que não havia mais pecados que precisassem ser removidos.
Finalmente, considere como Pelágio negava que Cristo Nosso Senhor veio para restaurar o que Adão havia perdido, mas sim que Ele veio meramente para dar um bom exemplo. Assim, parece que Pelágio não seria um bom fã de qualquer movimento de restauração, ao passo que o católico fiel anseia para ver o mundo todo sob o reinado social de Cristo Nosso Rei Majestoso e Glorioso. Assim, eles amam a frase que nos foi dada por São Paulo: “Restaurar todas as coisas em Cristo!”
O único ponto que coincide entre o monge Pelágio e os católicos tradicionais é a questão de disciplina e austeridade. Eu queria que isso fosse mais verdadeiro, que os católicos mais tradicionais fossem austeros consigo mesmos… e mais propensos para fazer penitência e atos de reparação. Oh! Como eles iriam agradar a Nossa Senhora, que nos pediu repetidas vezes por quase 200 anos… Penitência! Penitência! Penitência! Para a salvação das almas!
Está claro para mim que a Igreja moderna em seus membros tem se tornado mais pelagiana do que nunca, ao passo que os católicos tradicionais estão buscando manter a linha contra este retorno mais pestilento da heresia… lutando para não permitir que a graça preciosa que Deus lhes concedeu seja em vão!
Tradução: T.M. Freixinho

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