Quando vamos ao super-mercado fazer compras encontramos cada vez mais produtos light nas prateleiras. É a manteiga com baixo teor de gorduras, é o café sem cafeína, a coca-cola sem açúcar, o leite sem nata... Enfim, temos quase tudo o que gostamos de comer à nossa disposição, sem aquilo que supostamente faz mal ao nosso organismo. Parece aquela música de Adriana Calcanhoto:
Avião sem asa, Fogueira sem brasa, Sou eu, assim sem você...
Futebol sem bola, Piu-piu sem frajola, Sou eu assim sem você...
Amor sem beijinho, Bochecha sem Claudinho... Sou eu, assim sem você...
Futebol sem bola, Piu-piu sem frajola, Sou eu assim sem você...
Amor sem beijinho, Bochecha sem Claudinho... Sou eu, assim sem você...
Ainda que os alimentos não tenham a mesma composição ou consistência, as pessoas querem à fina força que eles tenham a mesma aparência e o mesmo sabor. E vai daí, aplicam este novo princípio dietético-gustativo a outras áreas da sua vida. Vivem juntas mas não querem casar, fazem sexo mas evitam filhos, são promiscuas mas protegem-se de doenças, querem emprego mas não pensam em trabalhar... E se quiséssemos ser honestos, poderíamos continuar. A lista seria bem mais longa do que esta que eu apresentei.
Até na Igreja é assim. Crentes e pregadores pegam na Escritura e seleccionam apenas os versículos que lhes interessam ou que respondem melhor às necessidades do momento. Em nome dos seus apetites e inclinações pessoais, ignoram ou adulteram deliberadamente os que são menos agradáveis, mais incómodos ou mais difíceis de digerir. Para eles, o Evangelho é amor sem sacrifício, benção sem obrigação, graça sem retribuição, fé sem obras e seguimento sem compromisso. Mais um produto light, na prateleira da sua vida cotidiana...
O problema é que o consumo de Evangelho light produz cristãos light e isso é extremamente prejudicial à saúde espiritual das comunidades cristãs e até da sociedade em que vivemos. O amor sem sacrifício torna as pessoas frias, egoístas e preguiçosas. Rouba-lhes a capacidade de chorarem com os que choram e de rirem com os que riem. Incentiva-as a viverem centradas no seu umbigo e a tornarem-se meras espectadoras do drama alheio.
A benção sem obrigação dá-lhes a falsa noção de que tudo o que recebem é seu por direito. Deus, os amigos, os vizinhos ou as pessoas de fora não fazem favor nenhum em dar-lhes o que eles precisam. E se quiserem receber algo em troca é melhor esperarem sentados, porque esse dia nunca vai chegar.
A graça sem retribuição torna-as arrogantes, exploradoras e malcriadas. Faz com que elas se julguem acima de tudo e de todos e explorem a paciência de Deus e dos homens até ao limite. Elas podem fazer "sete, vinte e sete e trinta e sete" que nunca há problema. Está sempre tudo bem. Pedir desculpa pra quê? O perdão é um dado adquirido. E não se atrevam a dizer-lhes nada porque senão ainda ouvem. Sim, porque ninguém tem o direito de as julgar.
E a fé sem obras? Oh meu Deus, que maravilha… Dá muito menos trabalho e permite-lhes perder mais tempo consigo próprias do que com os outros. Essa coisa de termos de fazer o Bem a pessoas más e desagradáveis é tão complicado, não acham? Porque é que não damos antes um show de oração em voz alta ou papagueamos uma série de versículos bíblicos? É muito mais fácil. Pois... É que assim, em vez de se matarem dois coelhos de uma cajadada só, matam-se três: impressionam-se os menos dotados, transforma-se a fé numa obra e acalma-se a consciência.
E entramos no seguimento sem compromisso. Experimentem lá falar de religião aos cristãos light que vocês logo vêem como é que é. Imediatamente reagem e se armam em superiores. Dizem com uma convicção quase infantil, que o Cristianismo não é uma religião mas sim uma relação pessoal e directa com Deus. E depois, como se o catolicismo fosse estranho ao Cristianismo, dizem que não são católicos mas sim cristãos.
Porém, a maior parte das vezes, a fé cristã para eles é apenas um envolvimento amoroso com o Filho de Deus ou um mero Bilhete de Identidade onde está registada a data do seu Novo Nascimento, a sua filiação divina e o endereço da sua Igreja. Por isso mesmo, levam uma vida cristã perfeitamente pagã. Dizem-se filhos de Deus mas, tirando esse pequeno pormenor de identificação, pouco ou nada as distingue daqueles que não conhecem a Deus. Nem sequer o amor que dizem sentir por Ele.
E, quando os outros falham, são os primeiros a levantarem-se para dar altas lições de moral. Sobem ao púlpito e, se tiverem hipótese disso, até vão para os jornais, revistas e televisão, fazer barulho e apontar o dedo. Não têm problema nenhum em dar-se como exemplo mas, na hora H, fazem igual ou pior ainda.
Fartam-se de pregar sobre a liberdade em Cristo mas, na sua boca e no seu coração, isso é um conceito meramente utilitário que não tem nada a ver com o amor de Deus. Só serve para desafiar a ordem social e promover o individualismo. Com ele fazem guerra a quem vai tranquilamente à missa ao Domingo, reza o terço, guarda os tempos litúrgicos ou acredita na virgem Maria e nos santos. E, por causa dele, justificam todo e qualquer desregramento pessoal. Compram, vendem e gastam tudo o que lhes apetece sem o mínimo problema de consciência. São livres para pagar o dízimo ao pastor mas não podem privar-se de nada para acudir a um irmão em necessidade.
Falam muito contra a pobreza. Têm-lhe uma raiva tão grande que até ensinam as pessoas a reivindicar a prosperidade de Deus. Mas não se iludam porque eles não fazem isso por serem solidários com os mais desfavorecidos ou quererem mudar o mundo para melhor. Fazem isso porque são profundamente materialistas e hedonistas. Odeiam tudo aquilo que os impede de gozar a vida e consideram que o prazer está acima de tudo. E, nesse sentido, as promessas da Lei no Antigo Testamento servem, ás mil maravilhas, para justificar a sua ambição.
Depois, o Evangelho apela à perfeição mas, como isso exige esforço e coragem da nossa parte, eles desistem logo à partida. Escudam-se na perfeição de Cristo e justificam a sua imperfeição com a diferença entre as duas naturezas. Ele conseguiu ser perfeito porque além de homem era Deus. Mas nós, coitadinhos, somos seres humanos, sujeitos à carne, ao mundo e ao pecado. Por isso, nem vale a pena tentar. É melhor vestir uma t-shirt estampada com o slogan “Estou em obras,” porque assim, toda a gente fica a saber que não pode esperar de nós, a perfeição.
E essa coisa dos debates ideológicos é sempre uma grande chatice. Os outros que fiquem com as preocupações sociais porque isso não faz parte do seu horizonte. Quando é preciso dar a cara em manifestações contra o aborto, pronunciar-se publicamente sobre as grandes questões éticas ou denunciar situações de injustiça social ninguém os vê nem os ouve. Ficam em casa, sentados à frente da televisão ou vão para a Igreja orar. Dizem com a maior das descontracções que estão fora desse debate, porque isso, é tudo política. Eles só querem saber das coisas de Deus.
Gostam muito de orar. E oram bem. Honra lhes seja feita. Sabem manejar a Palavra de Deus com perícia e têm resposta para tudo na ponta da língua mas esquecem-se de a usar para abençoar indiscriminadamente os outros. Fazem como as serpentes, que a têm dividida ao meio. Com uma parte falam de coisas santas e com a outra dão-se ao luxo de serem mundanos. Ao lado dos preceitos caridosos do Evangelho comentam cruelmente as falhas da vida alheia, os divórcios de casais famosos ou dos irmãos, os escândalos da liderança que fizeram notícia, os programas rascas da televisão que costumam ver, as viagens luxuosas que sonham fazer e os jantares de negócios que promoveram e de que fizeram parte.
Eu já não tenho paciência para os ouvir. E também já me vai faltando a paciência para os aturar. Sinceramente, parecem-me televisões acesas a transmitir vários programas ao mesmo tempo. A sua vida é uma confusão total de princípios e objectivos que só serve para escandalizar aqueles que são crentes a sério e afastar os descrentes. É um caminho que relativiza constantemente, tudo aquilo que a história e a tradição cristã provou ser bom e verdadeiro, ao longo dos séculos, em função das modas e tendências teológicas mais recentes. Modas essas que mudam como o vento mas que, ao passarem, não deixam de fazer os seus estragos.
Se eu não estivesse a falar de pessoas e não soubesse que, por obra e graça do Espírito Santo, elas ainda podem mudar e chegar a uma compreensão mais profunda do seguimento de Cristo, como eu também cheguei, perdia a cabeça. Virava-me para elas e dizia-lhes o mesmo que Ele disse aos fariseus: Raça de Víboras, até quando terei de vos suportar?
- Aaaafff! Diz a minha amiga Cheila quando está farta de alguma coisa.
- Cristão sofre! Digo eu quando me cruzo com estas pessoas. E Deus sabe como é verdade...
- Cristão sofre! Digo eu quando me cruzo com estas pessoas. E Deus sabe como é verdade...