É talvez o primeiro e mais importante "bem comum" que hoje, mais do que nunca, deveríamos reivindicar
© pixologic
O pensamento não é – como se acredita – uma propriedade do indivíduo, mas sim um "bem comum". É talvez o primeiro e mais importante "bem comum" que hoje, mais do que nunca, deveríamos reivindicar.
A opinião é do filósofo italiano Giuseppe Cantarano, professor da Universidade da Calábria. O artigo foi publicado no jornal L'Unità, 20-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto, publicada hoje em IHU.
Eis o texto.
Não só grande parte do seu léxico, mas também os conceitos mais importantes da política tem uma evidente – e comprovada – origem teológica. Como nos explicou Carl Schmitt.
Mas há também quem tenha mostrado – como o egiptólogo Jean Assmann, no seu livro Potere e salvezza. Teologia politica nell’antico Egitto, in Israele e in Europa (Ed. Einaudi, 2002) – exatamente o oposto. Ou seja, que as categorias teológicas – e o seu vocabulário –, ao contrário, é que teriam uma derivação política.
Duas teses contrapostas. Mas que convergem em um ponto decisivo. Ou seja, que entre teologia e política há uma relação convincente. Uma relação, para dizer o mínimo, bimilenar. Que remonta a São Paulo. Depositada não só naquele que pode ser considerado o primeiro documento cristão sobre a política, a Carta aos Romanos. Mas também na Segunda Carta aos Tessalonicenses. Na qual o apóstolo evoca o mistério da katechon.
Esse poder – não sabemos se encarnado na Igreja, isto é, na teologia, ou no Império, isto é, na política – que freia a propagação do mal no mundo. Mas que, detendo a irrupção do mal, nada mais faz – paradoxalmente – do que retardar a vitória final, escatológica, do bem. O advento, em suma, da parusia.
Se, portanto, a relação entre teologia e política também pode parecer contraditória, isso não exclui que ela esteja consolidada. De "longa duração", digamos assim. E necessária. Inevitável. Como lembrou Massimo Cacciari no seu livro Il potere che frena. Saggio sulla teologia politica (Ed. Adelphi, 2013).
Ao contrário, o novo livro de Roberto Esposito (Due. La macchina della teologia politica e il posto del pensiero, Ed. Einaudi, 2013, 233 páginas) é totalmente voltado a desmontar genealogicamente esse dispositivo teológico-político.
O filósofo napolitano não está nada convencido de que o nosso agir histórico – ao menos no Ocidente – esteja destinado a oscilar entre "Cila e Caríbdis". Entre o polo teológico e político. Aqueles que consideram que haja um conteúdo teológico original na política ou, inversamente, um conteúdo político original na teologia já pensam dentro da "máquina" teológico-política. Pressupõem-na.
É essa pressuposição "dogmática" – segundo Esposito – que impediu de dar-lhe uma definição compartilhada. Já que se pressupõe o que, ao contrário, se deveria explicar. Criticar. Isto é, a relação entre teologia e política. Não seria essa, talvez, a tarefa da filosofia? Sobretudo da filosofia contemporânea?
Dever-se-ia explicar – criticar filosoficamente – a "suposta" vocação política da dimensão religiosa e vice-versa. Explicar – criticar filosoficamente – o "suposto" enraizamento religioso do agir político. Em vez disso, na "relação entre teologia e política – observa Esposito – nenhuma das duas tem uma precedência absoluta". Uma mesma dinâmica – a da teologia política – que tende a uma síntese unitária. Recorrendo àquela que Esposito define como "inclusão excludente".
Teologia política – especifica Esposito – é a parte subalterna que, ao longo da história, foi incluída mediante a sua exclusão, foi a do corpo com relação à alma, a da natureza, dos animais, das mulheres com relação ao homem, a das crianças com relação aos adultos, a dos doentes com relação aos sadios, a dos loucos com relação aos normais, a dos escravos com relação aos livres, a dos negros com relação aos brancos, a dos judeus com relação aos arianos, a dos gays com relação aos heterossexuais, e assim por diante.
É desse dispositivo hierarquizante e autoritário que tende a reduzir o Dois – a multiplicidade diferenciada e imanente do ser vivo – ao Uno – a abstração indiferenciada e transcendente da Norma – que devemos nos libertar.
É dessa infernal "máquina excludente" da teologia política, dentro da qual os nossos corpos e os nossos pensamentos estão presos, que devemos sair, diz Esposito.
Mas não é fácil. Porque foi uma "máquina" – a teológico-política – que "pôs em forma" toda a civilização ocidental. Alavancando principalmente a noção "proprietária" de pessoa. O que nos é dado fazer – conclui Esposito – é subtrair o pensamento da vocação apropriante, individualista e excludente da pessoa. E restituí-lo – no rastro de uma tradição de pensamento "maldita", que vai de Averróis, Dante, Bruno, Spinoza a Nietzsche e Deleuze – a todo o gênero humano.
Porque o pensamento não é – como se acredita – uma propriedade do indivíduo, mas sim um "bem comum". É talvez o primeiro e mais importante "bem comum" que hoje, mais do que nunca, deveríamos reivindicar. Para, finalmente, tornar a democracia não mais uma instituição teológico-política "vertical" de filhos assujeitados a um Pai, mas sim uma relação "horizontal" de simples irmãos.
© pixologic
O pensamento não é – como se acredita – uma propriedade do indivíduo, mas sim um "bem comum". É talvez o primeiro e mais importante "bem comum" que hoje, mais do que nunca, deveríamos reivindicar.
A opinião é do filósofo italiano Giuseppe Cantarano, professor da Universidade da Calábria. O artigo foi publicado no jornal L'Unità, 20-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto, publicada hoje em IHU.
Eis o texto.
Não só grande parte do seu léxico, mas também os conceitos mais importantes da política tem uma evidente – e comprovada – origem teológica. Como nos explicou Carl Schmitt.
Mas há também quem tenha mostrado – como o egiptólogo Jean Assmann, no seu livro Potere e salvezza. Teologia politica nell’antico Egitto, in Israele e in Europa (Ed. Einaudi, 2002) – exatamente o oposto. Ou seja, que as categorias teológicas – e o seu vocabulário –, ao contrário, é que teriam uma derivação política.
Duas teses contrapostas. Mas que convergem em um ponto decisivo. Ou seja, que entre teologia e política há uma relação convincente. Uma relação, para dizer o mínimo, bimilenar. Que remonta a São Paulo. Depositada não só naquele que pode ser considerado o primeiro documento cristão sobre a política, a Carta aos Romanos. Mas também na Segunda Carta aos Tessalonicenses. Na qual o apóstolo evoca o mistério da katechon.
Esse poder – não sabemos se encarnado na Igreja, isto é, na teologia, ou no Império, isto é, na política – que freia a propagação do mal no mundo. Mas que, detendo a irrupção do mal, nada mais faz – paradoxalmente – do que retardar a vitória final, escatológica, do bem. O advento, em suma, da parusia.
Se, portanto, a relação entre teologia e política também pode parecer contraditória, isso não exclui que ela esteja consolidada. De "longa duração", digamos assim. E necessária. Inevitável. Como lembrou Massimo Cacciari no seu livro Il potere che frena. Saggio sulla teologia politica (Ed. Adelphi, 2013).
Ao contrário, o novo livro de Roberto Esposito (Due. La macchina della teologia politica e il posto del pensiero, Ed. Einaudi, 2013, 233 páginas) é totalmente voltado a desmontar genealogicamente esse dispositivo teológico-político.
O filósofo napolitano não está nada convencido de que o nosso agir histórico – ao menos no Ocidente – esteja destinado a oscilar entre "Cila e Caríbdis". Entre o polo teológico e político. Aqueles que consideram que haja um conteúdo teológico original na política ou, inversamente, um conteúdo político original na teologia já pensam dentro da "máquina" teológico-política. Pressupõem-na.
É essa pressuposição "dogmática" – segundo Esposito – que impediu de dar-lhe uma definição compartilhada. Já que se pressupõe o que, ao contrário, se deveria explicar. Criticar. Isto é, a relação entre teologia e política. Não seria essa, talvez, a tarefa da filosofia? Sobretudo da filosofia contemporânea?
Dever-se-ia explicar – criticar filosoficamente – a "suposta" vocação política da dimensão religiosa e vice-versa. Explicar – criticar filosoficamente – o "suposto" enraizamento religioso do agir político. Em vez disso, na "relação entre teologia e política – observa Esposito – nenhuma das duas tem uma precedência absoluta". Uma mesma dinâmica – a da teologia política – que tende a uma síntese unitária. Recorrendo àquela que Esposito define como "inclusão excludente".
Teologia política – especifica Esposito – é a parte subalterna que, ao longo da história, foi incluída mediante a sua exclusão, foi a do corpo com relação à alma, a da natureza, dos animais, das mulheres com relação ao homem, a das crianças com relação aos adultos, a dos doentes com relação aos sadios, a dos loucos com relação aos normais, a dos escravos com relação aos livres, a dos negros com relação aos brancos, a dos judeus com relação aos arianos, a dos gays com relação aos heterossexuais, e assim por diante.
É desse dispositivo hierarquizante e autoritário que tende a reduzir o Dois – a multiplicidade diferenciada e imanente do ser vivo – ao Uno – a abstração indiferenciada e transcendente da Norma – que devemos nos libertar.
É dessa infernal "máquina excludente" da teologia política, dentro da qual os nossos corpos e os nossos pensamentos estão presos, que devemos sair, diz Esposito.
Mas não é fácil. Porque foi uma "máquina" – a teológico-política – que "pôs em forma" toda a civilização ocidental. Alavancando principalmente a noção "proprietária" de pessoa. O que nos é dado fazer – conclui Esposito – é subtrair o pensamento da vocação apropriante, individualista e excludente da pessoa. E restituí-lo – no rastro de uma tradição de pensamento "maldita", que vai de Averróis, Dante, Bruno, Spinoza a Nietzsche e Deleuze – a todo o gênero humano.
Porque o pensamento não é – como se acredita – uma propriedade do indivíduo, mas sim um "bem comum". É talvez o primeiro e mais importante "bem comum" que hoje, mais do que nunca, deveríamos reivindicar. Para, finalmente, tornar a democracia não mais uma instituição teológico-política "vertical" de filhos assujeitados a um Pai, mas sim uma relação "horizontal" de simples irmãos.