Sermão de Santo Antônio, do Padre Antônio Vieira.
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Edição de Referência:
Sermões.Vol. XI Erechim: EDELBRA, 1998.
SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO
Panegírico e Apologético, contra o nome que vulgarmente em Roma, na Igreja dos Portugueses, se lhe dá de Santo Antonino.
Qui fecerit et docuerit, hic Magnus vocabitur. [1]
§ I
Assunto do sermão: Os agravos do nome de Santo Antônio em Roma. O nome de Antônio Magno, a quem o deu Roma? Se o Evangelho tão conhecidamente promete o nome de Magno ao nosso Antônio, por que lho nega aquela cidade, que contém em si a regra do mesmo Evangelho? Se Roma dá o nome de Máximo a Fábio e a Valério, por que o não daria a Antônio?
Desgraça é minha e nossa, e não sei se diga do mesmo santo que celebramos, que quando havíamos de levantar troféus, seja necessário tomar as armas, e defender dentro em Roma a quem tanto merecia triunfar nela. Eu, que hoje havia de fazer panegíricos, sou obrigado a desfazer agravos. E que agravos? Os agravos do nome de Santo Antônio em Roma. Em Roma, cabeça e adoração do mundo; em Roma, mãe universal de todos os peregrinos, os agravos daquele peregrino português, que a pés descalços a visitou com tanta devoção, a edificou com tantos exemplos, a ilustrou com sua doutrina, e a admirou e fez admirável com o prodígio estupendo de seus milagres! Celebra hoje Portugal a Santo Antônio de Lisboa, Itália a Santo Antônio de Pádua, e já este não era pequeno agravo, mas é força dissimular os menos grandes, para acudir aos maiores. Não determino disputar com Pádua de tão longe: com Roma é o meu pleito, de Roma é a minha queixa, e não menos bem-fundada que no mesmo texto do Evangelho que propus.
Qui fecerit et docuerit, hic Magnus vocabitur (Mt. 5, 19): Aquele que fizer e ensinar - diz Cristo - esse terá o nome de Magno. - Não pode ser a lei mais clara. Agora, diga-me Roma, o nome de Antônio Magno, a quem o deu. Não o deu ao Antônio de Portugal, senão ao Antônio do Egito. Ele é o que se nomeia e venera com a antonomásia de Magnus Antonius. Pois, se o Evangelho tão conhecidamente promete o nome de Magno aos merecimentos do nosso Antônio, por que lho nega aquela cidade, que contém em si a regra do mesmo Evangelho? Por que lho nega, e o dá a outro? Dir-me-á porventura Roma que o outro Antônio foi muitos anos primeiro, e que quando o nosso veio ao mundo, já o nome estava dado. Mas lembra-me a este propósito o que já disse Tertuliano à mesma Roma: - Não fostes vós, meu santo, o que tardastes, senão ela a que se apressou. - Argúi Tertuliano aos primeiros que canonizaram os deuses gentílicos, e diz que ficaram sem altares e sem nome os que melhor o mereciam, não porque a antigüidade os quisesse excluir, senão porque se apressou: Properavit opinor: - Fez deus da guerra a Marte? Properavit, porque, se não se apressara tanto, fora deus da guerra Cipião. Fez deus das musas a Apolo? Properavit, porque, se esperara mais, fora deus das musas Homero. Fez deus da medicina a Esculápio? Properavit - porque, se aguardara mais tempo, fora deus da Medicina Hipócrates. Fez deus das ciências a Mercúrio? Properavit, porque, se não se adiantara tanto, fora deus das ciências Aristóteles. Eu não nego, antes venero e adoro as excelências do grande Antônio africano; só tenho para mim que, se o mundo, e a cabeça do mundo, se não antecipara, pode ser a grandeza daquele nome não a consagrara ao da África, senão ao da Europa; ao português, e não ao egípcio.
Mas, porque o meu intento não é tirar o direito adquirido, senão defender o tirado, já que o nome de Magno se deu àquele Antônio, por que se não havia de dar também ao nosso: Hic Magnus vocabitur? - Se entre os capitães houve um nome de Magno para Alexandre, e outro para Pompeu; se entre os pontífices houve um nome de Magno para Leão, e outro para Gregório; se, onde não havia nem podia haver comparação, houve um nome de Magno para Cristo: Hic erit Magnus (Le. 1, 32) - e outro para o Batista: Erit coram Domino (ibid. 15) - por que se não daria o nome de Magno ao nosso Antônio, assim como se tinha dado ao outro? Vejo que me pode responder Roma que os nomes se fizeram para distinção das pessoas, e que, havendo dois Antônios, ambos Magnos, não se distinguiam. Venho nisso; mas distinguirá Roma aos Antônios, como distinguiu aos Fábios e aos Valérios. Já que ao primeiro Antônio tinha chamado Magno, ao segundo chamara-lhe Máximo. E vede se o merecia. A dois heróis - como notou Plutarco - deu Roma o nome de Máximos: a Fábio, porque restituiu as perdas do Império; a Valério, porque reconciliou o povo com o Senado. Pois, se Roma dá o nome de Máximo a Fábio, por restituidor das perdas, por que o não daria a Antônio, que tem por graça e por ofício restituir todas as coisas perdidas? Tanto o tem por ofício e por obrigação, que na nossa terra o prendemos como devedor, para que as restitua. E se Roma deu o nome de Máximo a Valério, por reconciliador da plebe com o Senado, por que o não daria a Antônio, que não só reconciliou com Deus tanta infinidade de almas, que andavam fora de sua graça, mas reconciliou com a mesma Igreja romana tantos hereges, tantas seitas, tantos heresiarcas, que por isso lhe chamaram Martelo das Heresias: Perpetuas haereticorum malleus?
Mas tão longe esteve Roma - este é o mais duro ponto do meu e do nosso sentimento - tão fora esteve Roma de dar a Antônio o nome de Magno, ou Máximo, que lhe dá o de Mínimo. Por me não atrever a pronunciar tão grande agravo, o dissimulei até agora. Como chama Roma ao nosso Antônio? Santo Antonino. Antonino a Antônio? A Antônio de Lisboa, a Antônio, o português, Antonino? Esta admiração, por lhe não chamar desde logo abuso, será hoje a matéria do meu discurso, de tal maneira apologético, que não deixe de ser panegírico. Lembrada a Virgem, Senhora nossa, da apologia com que Santo Antônio defendeu a pureza de sua Imaculada Conceição, quando ainda tanta necessidade tinha de ser defendida, se dignará assistir poderosamente à que havemos de fazer do mesmo santo, e seja esta vez agradecimento a graça.
Ave Maria.
§ II
Os agravos dos que chamam a Santo Antônio Antonino. Foi tão grande santo Antônio, que Cristo diante dele parece pequeno. Quem são o sol e a candeia de que fala o Evangelho, e a quem significam? A esfera de Cristo e a esfera de Santo Antônio.
Qui fecerit ei docuerit, hic Magnus vocabitur (Mt. 5, 19).
Chamar a Santo Antônio Antonino são dois agravos em um agravo: o primeiro da comparação, o segundo da preferência. Não só é agravo de Antônio o preferir-se-lhe outro, senão também o comparar-se-lhe. Mas, já que o agravo é por comparação, será também por comparação o desagravo. Não me tenhais por temerário, porque hei de fazer uma comparação incomparável. Quereis saber quão grande santo foi este, a que chamais Antonino? Olhai para aquele altar. Foi tão grande santo Antônio, que Cristo diante dele parece pequeno. Falo da grandeza das obras, e tenho licença do mesmo Cristo para o dizer assim. - Qui credit in me, opera quae ego facio, faciet, et majora faciet (Jo. 14, 12): Algum dos que crerem em mim - diz Cristo - não só fará as obras que eu faço, senão ainda maiores. - Não maiores de pessoa a pessoa, não maiores de virtude a virtude, não maiores de merecimento a merecimento, que isso não pode ser, mas de obras a obras sim. E, sendo as obras de Antônio, ainda comparadas com as de Cristo, maiores: Majora faciet - não é muito que, posto Cristo à vista de Antônio, parece Antônio o grande: Hic Magnus vocabitur - Não o grande comparado Antônio com Antônio - como vós o comparais - mas o grande comparado Antônio com Cristo, como ele quer que o comparemos.
Seja a primeira prova desta incomparável comparação a do mesmo Evangelho. Duas comparações faz Cristo neste Evangelho, ambas de luz, mas muito diversas: uma o sol, outra a candeia. - O sol: Vos estis lux mundi [2] - a candeia: Ne que accendunt lucernam, et ponunt eam sub modio, sed supra candelabrum [3]. - E estas luzes tão diversas, este sol e esta candeia, quem são, e a quem significam? Eu cuidava que o sol, por ser fonte da luz, era Cristo, e que a candeia, por ser luz participada, era Antônio. Mas não é assim. A candeia é Cristo, o sol é Antônio. Que a candeia seja Cristo, disse-o Santo Hilário, e também Santo Tomás: Lucerna Christi ponitur supra candelabrum, id est, in ligno, per passionem suspensa. - Que o sol seja Antônio, não só o dizem os mesmos santos, e todos, senão o mesmo Cristo: Vos estis lux mundi [4]: O sol aqui não sou eu, sois vós: Vos estis. - Pois, Antônio o sol, e Cristo a candeia? Sim. É verdade que a candeia em si é tal candeia que dá luz ao sol, e o sol em si é tal sol que recebe a luz da candeia; mas, comparada luz a luz, efeitos a efeitos e obras a obras, as de Cristo, à vista de seu servo Antônio, parecem de candeia; as de Antônio, à vista de Cristo, seu Senhor, parecem de sol. E por que não cuideis que exagero, lede-o no texto, e vede-o na experiência. A esfera da candeia diz o texto que é uma casa: Ut luceat omnibus qui in domo sunt [5]; a esfera do sol diz o mesmo texto que é o mundo todo: Vos estis lux mundi [6]. - E tal foi a esfera de Cristo, tal foi a esfera de Antônio. A missão que o Eterno Padre sinalou a Cristo, como Messias prometido aos patriarcas, foi a casa de Israel: Non sum missus nisi ad oves, quae perierunt domus Israel [7]. - Eis aí a esfera da candeia, uma casa: Ut luceat omnibus qui in domo sunt. - A missão que Cristo sinalou a Antônio, como sucessor dos apóstolos, foi o mundo todo: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae [8]. - Eis aí a esfera do sol, o mundo todo: Vos estis lux mundi - e, como na comparação de missão a missão, e de esfera a esfera, a de Cristo é uma casa, e a de Antônio o mundo todo, não é muito, na comparação de luz a luz, e de obras a obras, que Cristo, sendo a fonte da luz, pareça candeia, e Antônio, sendo luz participada, pareça sol: Cristo, sendo o imenso, pareça pequeno; e Antônio, sendo criatura limitada,
pareça grande: Hic Magnus vocabitur.
§ III
O facere de Cristo e o fecerit de Antônio. Os milagres de Cristo vivo e os milagres de Santo Antônio morto. Vantagens dos milagres de Cristo sobre os milagres de Moisés. Vantagens dos milagres de Santo Antônio sobre os milagres de Cristo.
Mas, para que procedamos com distinção na prova desta gloriosa grandeza, dividamos os discursos nas mesmas partes em que o Evangelho divide os fundamentos dela. A dois títulos refere o nosso texto a grandeza de Santo Antônio: fazer e ensinar: Qui fecerit et docuerit, hic Magnus vocabitur. - Aos mesmos títulos, e com as mesmas palavras, reduziram os evangelistas as maravilhas de Cristo: Coepit Jesus facere, et docere [9]: o facere entende-se dos milagres, o docere da pregação. Ora, comparemos o facere de Cristo com o fecerit de Antônio, o docere de Cristo com o docuerit de Antônio, e veremos quanto, por um e outro título, merece o nome de grande: Qui fecerit et docuerit, hic Magnus vocabitur.
Começando pelo fecerit, quando Cristo vivia neste mundo, corriam a ele, como a fonte da saúde, todos os enfermos, tocavam ao Senhor, e ficavam sãos. Morreu Antônio tal dia como hoje, e, com o mesmo prodígio, todos os enfermos que tocavam o sagrado corpo imediatamente cobravam saúde. - Grande maravilha que obrasse o corpo de Antônio morto o que obrava o corpo de Cristo vivo. Em Cristo dava vida a fonte da vida, em Antônio dava vida o despojo da morte. Em Cristo dava vida todo Cristo, em Antônio dava vida ametade de Antônio, e a menor ametade, o corpo. Eliseu tinha dobrado espírito de Elias, e em que se viu? - pergunta e responde Santo Agostinho. - Em que Eliseu morto tão milagroso como Elias vivo. - Elias ressuscitou um morto, estando vivo: Eliseu ressuscitou um mor depois de morto. Eis ali o Elias e o Eliseu. - Menino, por que estais despido? - Porque deu a sua capa a Antônio, e com ela o seu espírito dobrado; por isso era tão milagroso Antônio morto como Cristo vivo. Mas ainda nesta maravilha havia outra maravilha maior. Como o concurso e o tropel dos enfermos, para tocar o corpo do santo, era infinito, uns chegavam, outros não podiam chegar, mas estes, que não podiam chegar, diz Súrio, bastava que desejassem tocar o santo para ficarem sãos. De maneira que, para receber a saúde de Cristo era necessário tocar a Cristo: para receber a saúde de Antônio, bastava desejar a saúde. Cristo dava saúde pelo tato, Antônio pelo desejo. Cristo pelo tato, para fazer mais que Moisés; Antônio pelo desejo, não para fazer, mas fazendo mais que Cristo: Majora faciet [10]. - Levantou Moisés a serpente de metal no deserto, e todos os feridos que olhavam para ela saravam logo. Pergunto: E saravam também os cegos? Não, porque, como a saúde dependia da vista, quem não tinha olhos não tinha remédio. Por isso Cristo não pôs a saúde na vista, nem em outro sentido particular, senão no tato, que é sentido comum. Se Cristo pusera a saúde no ver, não sararam os cegos; se a pusera no ouvir, não sararam os surdos; se a pusera no falar, não sararam os mudos; e como queria o Senhor que sarassem todos, pôs a saúde no tato, que é sentido universal e de todos: Omnis turba quaerebat eum tangere: quia virtus de illo exibat, et sanabat omnes [11]. - Mas, com ser tão universal a saúde milagrosa de Cristo, ainda a de Santo Antônio era mais universal. A saúde de Cristo era mais universal que a de Moisés quanto vai do tato à vista; a saúde de Antônio era mais universal que a de Cristo quanto vai do desejo ao tato. Para sarar pelo tato, era necessária presença e movimento; para sarar pelo desejo, nem era necessária presença nem movimento, bastava a vontade: pelo tato não podia sarar o tolhido nem o ausente; pelo desejo o tolhido e o ausente todos podiam sarar, e todos saravam. E isto é o que fez Antônio: Qui fecerit.
Mas deixemos a comparação de desejo a tato, vá de desejo a desejo. Desejou Zaqueu ver a Cristo: Quaerebat videre Jesum [12] - mas, como a gente fosse muita, e Zaqueu era pequeno do corpo, não o podia ver: Et non poterat prae turba, quia statura pusillus erat [13]. - Oh! que boa ocasião para Cristo fazer um milagre por um desejo! Que não conceda Cristo milagres ao desejo de Herodes, era desejo de curiosidade; que não conceda milagres ao dos escribas e fariseus, era desejo de malícia; mas ao desejo de Zaqueu, que era desejo de devoção! Eia, Senhor, veja-vos Zaqueu milagrosamente; não se diga que sois como os grandes da terra, que se não deixam ver dos pequenos: ou a estatura de Zaqueu suba, ou desçam as espécies do vosso rosto, e vejavos quem tanto deseja ver-vos. - Contudo, não fez esse milagre Cristo; mas, se Zaqueu desejava ver a Santo Antônio, ainda que tivera um monte diante, eu estou certo que o havia de ver. Desejou uma senhora ir ouvir a Santo Antônio, que pregava no campo, mas não devia de ser senhora, porque não tinha liberdade: devia de ser alguma pobre mulher, não lhe deu licença seu marido. E que sucedeu? Sem sair de sua casa, estando tão longe, ouviu o sermão tão distintamente, como se estivera ao pé do púlpito. Fez Antônio por quem o desejava ouvir o que Cristo não fez por quem o desejava ver. Cristo ao devoto não lhe supriu a estatura; Antônio à devota supriu-lhe as distâncias. As espécies do rosto de Cristo, para satisfazer a um desejo, não se dobraram três dedos; as espécies da voz de Antônio, para satisfazerem a um desejo, estenderam-se duas milhas. E não só a mulher ouviu ao santo, senão também o marido. Cristo não quis dar um milagre por um desejo: Antônio por um desejo fez dois milagres.
Mas dir-me-eis que também Cristo alguma vez quis fazer um milagre por um desejo. Por isso na piscina perguntou ao paralítico se desejava saúde: Vis sanus fieri [14]? - Assim é; mas vede a diferença, ou as diferenças. Cristo fez milagres por desejos, mas por desejos declarados; Antônio por desejos ocultos. Cristo ao menos queria ouvir os desejos: Antônio despachava os desejos sem os ouvir. Cristo punha o cumpra-se aos desejos, mas com os memoriais na língua: Santo Antônio sem saírem do coração. Mais ainda: o paralítico alcançou o remédio por um desejo, mas por um desejo de trinta e oito anos: os enfermos de Santo Antônio por um instante de desejo. O desejo do paralítico, quando Cristo nasceu já havia seis anos que era desejo: os enfermos de Santo Antônio vieram depois de Antônio morto, e no ponto em que tiveram desejo tiveram saúde. Cristo acudiu a um desejo, mas quando já o desejo pudera ser desesperação: Antônio acudia aos desejos antes de chegarem a ser esperança; e quem não espera que os desejos sejam grandes, não pode deixar de ser grande: Magnus vocabitur.
§IV
O maior milagre do mundo: Cristo dar vista com lodo. O maior milagre de Santo Antônio: fazer que o lodo não enlodasse, milagre que não fez nunca a onipotência de Cristo, nem enquanto homem, nem enquanto Deus.
Um milagre fez Cristo, que foi qualificado pelo maior milagre do mundo: A saeculo non est auditum [15] - mas neste mesmo milagre deixou Cristo matéria a Santo Antônio para fazer outro milagre maior: Majora faciet. Era um cego de seu nascimento; fez Cristo um pouco de lodo com os dedos, pôs-lho no lugar dos olhos, mandou-o lavar à fonte de Siloé, e cobrou vista. Todos aqui reparam em Cristo dar vista com lodo: eu reparo em Cristo o mandar lavar. Já que Cristo fez que o lodo desse vista, por que não fez que o lodo não enlodasse? Porque Deus, quando faz milagres por elementos naturais, ainda que eleva as naturezas, não as muda nem as violenta. A água do batismo elevada santifica, mas nem por isso deixa de molhar. Assim foi o lodo: deu vista, mas enlodou, porque essa é a natureza do lodo. Ouvi um grande milagre de Santo Antônio, e muito maior, sendo português. Os portugueses enlodam sem lodo: Santo Antônio, sendo português, fez que o lodo não enlodasse. Ia uma senhora - esta o era - ia ouvir a Santo Antônio muito perto dele: era inverno: caiu no lodo. Que tais ficariam as galas! Disse-lhe o santo que se levantasse, e estavam os vestidos tão limpos e asseados como quando saíram da guarda-roupa. Nunca se viu tão limpo milagre.
Nem por sua própria Esposa o fez Cristo. Era a Esposa tão polida que, chamada a grandes instâncias de Cristo, lhe respondeu: Lavi pedes meos: quomodo inquinabo illos (Cânt. 5, 3)? - E, sendo tão ardentes os extremos com que o divino Amante suspirava sua presença, deixou passar todo o inverno, e então lhe disse: Surge, arnica mea, et veni: jam enim hiems transiit (Cânt. 2,10 s): Já agora, esposa minha, podeis sair de casa, porque já passou o inverno. - Linda paciência, para tão grande amor! Não era mais fácil fazer Cristo que, ainda que os lodos afogassem os campos, passasse a Esposa por cima deles, sem lhe ofenderem um fio de roupa? Nem com tanto amor fez Cristo tal milagre. Que o lodo não enlode, nunca a onipotência de Cristo o fez, nem enquanto homem, nem enquanto Deus. Abriu-se o Mar Vermelho para que passassem os filhos de Israel, e diz o texto que mandou Deus um vento abrasador: Ventum urentem (Ex. 10, 13) - para que secasse o lodo. Abriu-se o mar para que passassem a pé, e secou-se o lodo, para que passassem a pé enxuto. Pois, se a onipotência estava tão liberal de milagres, e a ocasião era tão apertada, que já os inimigos lhes vinham batendo nas costas, e Deus queria que não só passassem a pé, mas a pé enxuto, por que não fez que passassem pelo lodo sem se enlodarem? Pelo lodo sem se enlodarem? Isso não. Professores da limpeza, e da limpeza votada, guardar do lodo: ninguém presuma que pode entrar no lodo sem se enlodar. Mas este milagre que não fez Cristo, nem com tanto amor, nem com tanta necessidade, nem enquanto homem, nem enquanto Deus, foi um acaso de Santo Antônio: Qui fecerit.
§V
O milagre de Santo Antônio para salvar ao pai, e a ressurreição de Lázaro. Onde Cristo fez um milagre, fez Santo Antônio seis milagres, e maravilhas sem conto.
Mas tiremo-nos do lodo, ponhamo-nos em Lisboa. Matou-se ali um homem: acusaram o pai de Santo Antônio, sem culpa, e o pior é que lha provaram. Condenado à morte - que naquele bom tempo na nossa terra quem matava morria, e não prevalecia a misericórdia contra a justiça, ainda que fosse procurador das cadeias um título - saiu do Limoeiro, e quando chegava já perto de sua casa, aparece no adro da Sé Santo Antônio. Embargos nunca ninguém os pôs tão de receber. - Neste adro, disse o santo, está sepultado o morto: diga ele mesmo se o matou este homem. - Levanta-se da sepultura o morto, testemunha que não era aquele o matador. Insta a justiça que descubra quem era, mas não o consentiu Santo Antônio. Morreu outra vez o defunto, ressuscitou o vivo, ficou livre o inocente, e desapareceu o autor do milagre. O caso da ressurreição de Lázaro todos o sabem. Comparemos uma com outra, e veremos que, onde Cristo fez um milagre, fez Santo Antônio seis milagres, e maravilhas sem conto.
Cristo teve novas da enfermidade de Lázaro por um escrito de Marta e Maria: Antônio teve notícia da morte de seu pai por revelação do céu; primeiro milagre. Cristo tardou quatro dias: Antônio não tardou; e, sendo português, não tardar, segundo milagre. Cristo, do Jordão onde estava, a Betânia, pôs quarenta e oito horas: Antônio de Itália a Portugal foi em uma noite; terceiro milagre. Cristo mandou levantar a campa: Antônio não mandou cavar a terra; quarto milagre. Cristo pediu fé a Marta, como sempre pedia: Antônio pediu fé [16]; quinto milagre. Cristo com uma ressurreição deu uma vida: Antônio com uma ressurreição deu três vidas: uma ao morto que ressuscitou; outra ao inocente, que não morreu; outra ao culpado, que não quis descobrir. Este foi o sexto milagre, e pudera ser o sétimo desaparecer logo o milagroso: obrar a maravilha, e não querer aplauso. Por que o não perca quem o não quis, ponderemos mais o caso. Cristo disse a Marta: Ego sum ressurrectio et vita (Jo. 11, 25): Eu sou ressurreição e vida. Cristo foi ressurreição e vida: - Antônio foi vida e ressurreição. Cristo deixou morrer a Lázaro para ressuscitar a Lázaro: Antônio não deixou morrer a seu pai para o ressuscitar depois; ressuscitou o morto para que não morresse o vivo. Cristo deu uma vida para remediar uma morte: Antônio deu uma vida para conservar outra vida.
Houve-se Santo Antônio com seu pai na vida corporal como Cristo com sua Mãe na vida espiritual: não lha deu por remédio, deu-lha por preservação. Quase estava para dizer deste venturoso pai nesta circunstância que foi mais venturoso em ter por filho a Antônio que Adão em ter por filho a Cristo, Adão foi sentenciado à morte: Morte morieris [17] - deu-lhe a vida seu filho Cristo; mas quando lha deu? Depois de executada a sentença. Não assim Santo Antônio: meteu-se entre a sentença e a execução, e deu a vida a quem lha tinha dado, podendo dizer, com palavras de Cristo, o que o mesmo Cristo não pôde dizer: Ego vivo propter Patrem, et ipse viver propter me [18].
§ VI
O docere de Cristo e o docuerit de Santo Antônio. A conversão dos vinte e dois ladrões bandoleiros por Santo Antônio e a perdição de Judas e do mau ladrão.
Isto é o que Santo Antônio, em comparação das obras e milagres de Cristo fazia: Qui fecerit; agora, seguindo a mesma comparação, passemos do fazer ao ensinar: Et docuerit. - Pregava o santo na igreja de um lugar não muito povoado, quando passava por ali acaso uma tropa de vinte e dois ladrões bandoleiros, cuja crueldade por costume se exercitava em matar, e cuja cobiça por vida e profissão em roubar quanto encontrava. Souberam que estava ali pregando Santo Antônio, e, movidos da sua fama, entraram por curiosidade a ouvir o que dizia. Ao princípio se deixaram levar e enlevar da graça do pregador, e depois, penetrados pouco a pouco da força e eficácia de suas razões, se renderam de tal sorte a elas, que todos, sem se falarem, se converteram, e, confessando seus pecados ao mesmo santo, e recebendo com promessa da emenda a competente absolvição, assim como tinham entrado a ouvir pecadores, saíram da pregação penitentes. E que direi eu à vista deste caso tão raro em outro menor no número, mas, por todas as suas circunstâncias, mais notável na pessoa?
Um ano e três meses havia que Cristo, Senhor nosso, começara a pregar a Judas, quando disse: Nonne ego vos duodecim elegi, et ex vobis unus diabolus est [19]? - E em todo este tempo não deixou ocasião de lhe bater ao coração, argüindo o mau e traidor pensamento com que já traçava a sua venda, porque já o Senhor se tinha passado de Judéia para Galiléia, sabendo que os judeus tratavam de lhe tirar a vida: Quia quaerebant eum Judaei interficere [20]. - Finalmente, chegado o dia em que a morte de Cristo, e a traição e venda de Judas se havia de efetuar, sete vezes - como já tenho notado noutra ocasião - o admoestou, e lhe pregou claramente o Senhor que desistisse de tão ímpia e cruel maldade. E sem se deixar render de tão repetidas pregações, como ladrão saiu do Cenáculo, como ladrão concertou a venda, como ladrão recebeu o preço, como ladrão entregou a seu Mestre, e como ladrão rebentou, e morreu impenitente. E que, não bastando em mais de um ano tantos dias e tantas pregações de Cristo para converter um ladrão, tão alumiado antes na fé do verdadeiro Deus, e não podendo ignorar que o era o mesmo Cristo, Santo Antônio em um só dia, e com uma só pregação, ou parte dela, convertesse vinte e dois ladrões, quase sem notícia de Deus, costumados a viver de roubos e homicídios!
Duas coisas dificultam aos homens de semelhante vida a conversão e emenda dela: o pejo de confessar o pecado, e a obrigação de restituir o alheio. Judas já tinha confessado o seu pecado: Peccavi, tradens sanguinem justum [21] - mas o alheio ainda o não tinha restituído, porque, ainda que tomou a lançar no Templo os trinta dinheiros: Retulit triginta argenteos [22] - estes dinheiros foram o preço da venda, mas não a restituição do vendido, O que Judas vendeu e entregou foi a liberdade de Cristo, e esta não a restituiu: antes, porque viu que o levavam atado e preso, sem se livrar das mãos dos judeus, como outras vezes tinha feito, desesperado se enforcou. O mesmo sucede a outros ladrões, que nem eles se enforcam a si, nem a justiça a eles. Facilmente confessam o pecado, porque roubar o alheio já não é ação tão vil e afrontosa, depois que a nobreza e dignidade dos que a usam a tem feito quase honra. Mas, tendo tantas artes e ardis para tomar o alheio na vida, encomendam a restituição a seus herdeiros, e nenhum tem valor para a fazer por si mesmo na morte.
Dois ladrões teve Cristo na morte, que nem tinham necessidade de confessar a culpa, nem obrigação de restituir. Estes foram aqueles dois em meio dos quais o Senhor foi crucificado. Não tinham necessidade de confessar a culpa, porque o pregão e o suplício a manifestava; nem obrigação de restituir o alheio, porque, pregados a um pau, nus e despidos, a mesma desnudez e impossibilidade os desobrigava da restituição. E contudo, desejando Cristo converter a ambos, e oferecendo por eles todo o seu sangue, só converteu a um. Caso horrendo, estupendo, tremendo, e digno, se não houvera outra causa, de na terra se quebrarem as pedras, e no céu se escurecer o sol. É possível que um homem condenado à morte, e tal morte, sem honra, sem remédio, sem esperança, nem de vida, mais que duas horas, em um monte coberto de caveiras, pregado em uma cruz, com tantas mortes, e a sua e de seu companheiro à vista, se não queira converter! O maior dia que houve no mundo foi aquele em que o Filho de Deus atualmente estava remindo o gênero humano, desde Adão até o último homem, e que este, estando tão junto a Cristo, e Cristo prometendo o paraíso ao companheiro, e o companheiro, com o seu exemplo e palavras pregando-lhe a fé e a salvação, e sobretudo, que, correndo do corpo do Salvador quatro fontes de misericórdia em seu sangue, por obstinação da própria vontade se não queria aproveitar dele! Mas era ladrão, e é tal, tão cruel, tão ímpio, e tão desumano o exercício de um homem a outro, de sua própria natureza, despojar de seus trabalhos e suores, tirando-lhe talvez a vida, que não há dureza de mármore tão dura, nem de diamante tão impenetrável, ainda ao mesmo sangue de Cristo, como a de um tal coração. Se Cristo convertera estes dois ladrões, ainda a conversão de Santo Antônio ficava superior em vinte; se convertera também a Judas, em dezenove; mas quando Cristo no maior dia, e na maior ação de sua vida, de três ladrões não converte mais que um, que de vinte e dois não fique um só por converter, mas que todos os vinte e dois se convertam a uma pregação de Antônio! Bem se deixa ver quanto maiores foram suas obras que as do mesmo Cristo, assim como no fazer, no ensinar: Et docuerit.
§ VII
A admirável diferença com que se houveram no modo de ensinar o supremo Mestre e o grande discípulo. Cristo e os judeus hereges. Santo Antônio e o dia em que o mar fez o mais formoso lanço na terra, do que a terra o tinha feito nunca com as redes no mar.
Mais. Pregava Cristo a verdade aos judeus, mas eles, como filhos do pai da mentira, não só a não queriam crer, mas de nenhum modo ouvir. Supunha-os o Senhor criaturas racionais, que eram, ou deviam ser, e como tais os quis persuadir com razões, e dois eficazes argumentos. Primeiro: Qui ex Deo est, verba Dei audit. Propterea vos non auditis, quia ex Deo non estis (Jo. 8, 47): Quem é de Deus, ouve a palavra de Deus: vós não a quereis ouvir, logo não sois de Deus. - E se não sois de Deus, de quem sois? - Segundo argumento: Se não sois de Deus, logo sois do demônio, e do demônio, não servos e seguidores somente, senão filhos: Vos ex patre diabolo estis [23]. - Responderam: Nós somos filhos de Abraão - e, replicando Cristo: Se sois filhos de Abraão, fazei obras dignas de tal pai - então saíram com a sua e terceira conseqüência: Tulerunt ergo lapides, ut jacerent in eum (ibid. 59): Tomaram pedras para apedrejar o Senhor, o qual, escondendo-se dentro em si mesmo, e fazendo-se invisível, saiu do Templo. Pudera-os cegar, mas teve por melhor fazer-se invisível, para que com os olhos abertos vissem como em espelhos, nas pedras que tinham na mão, a dureza da sua rebeldia.
O mesmo sucedeu a Santo Antônio com os hereges, cuja vaidade e soberba não só fazia pouco caso da sua doutrina, mas se retirava, e fugia de a ouvir. E que faria Antônio neste caso? Far-se-ia também invisível? Não o sofria seu zelo. Vai-se diante dos mesmos hereges à ribeira do mar, chama em voz alta aos peixes: - Peixes, vinde ouvir a palavra de Deus, já que os homens lhe negam os ouvidos. - A esta voz - coisa maravilhosa! - começou a ferver todo o mar, e os peixes em cardumes, cada qual segundo a sua espécie, a nadar diretamente aonde os chamava a voz. Os mais pequenos se puseram ordenadamente junto à praia, os outros mais afastados um pouco, e os maiores, que demandavam maior fundo, no último lugar, e todos com as cabeças fora da água aguardavam atentos o para que aquela voz os chamara. Sossegado o mar, e quieto todo o auditório, começou Santo Antônio a lhes pregar aqueles benefícios divinos, que, sem os entenderem, tinham recebido da mão de seu Criador. - Vos fostes - dizia - as primeiras criaturas sensitivas que Deus produziu; os vossos olhos, os primeiros que descobriram e viram a luz do mundo; o vosso elemento, o segundo, mais vasto que toda a terra, diáfano, transparente e penetrável; muitos de vossos corpos, os maiores de todos os viventes, vestidos uns de escamas prateadas e douradas, outros de peles de diferentes cores, ásperas ou lisas. Enfim, parentes em primeiro grau do sublime coro das aves, nascidas na mesma pátria das águas, onde muitas, desprezando as alturas do ar, vivem juntamente convosco, pelo que todos deveis infinitas e contínuas graças ao Criador. - Tudo isto viam e ouviam os hereges, pasmados e atônitos do silêncio e atenção com que os peixes mostravam por seu modo assentir a tudo o que o santo pregava, desfazendo-se pouco a pouco, e abrandando-se as pedras, que tinham não nas mãos, como os judeus, mas nos corações obstinados.
Um, chamado Bonivilho, o mais sábio e ardente disputador de sua seita, era o que mais admirava o que estava vendo, e quase não cria. Notava que Antônio, para os ensinar a crer, os não mandava, como Salomão, à escola das formigas ou das abelhas, animais ou bichinhos que na pequena esfera de seu corpo, e na grande astúcia de seu engenho, imitam as mais bem-ordenadas repúblicas; mas os ensinava com o exemplo dos peixes, cujo confuso governo é totalmente despótico e tirânico: comendo os grandes aos pequenos, os maiores aos grandes, e os mesmos maiores sendo comidos de outros de tão portentosa grandeza, que os podem engolir e devorar de um bocado. Era mais que admirável, nesta condição de comunidade, a ordem, quietação e sossego com que não só atendiam ao que o santo pregava, mas, depois de receberem sua bênção, sem se lembrarem da fome ou costume, se apartavam em paz, e se retirava cada espécie no seu cardume ao lugar donde ali tinham vindo. Assim, dentro da Arca de Noé, olhava o lobo para o cordeiro, e o falcão para a pomba, com tal temperança do instinto e apetite natural, como esquecidos do que eram ou tinham sido antes.
Penetrado, pois, Bonivilho, como mestre dos demais, desta consideração, e comunicando-a aos companheiros, todos, ou quase todos, cederam da sua dureza, convertendo-se, e pedindo perdão ao santo. Cristo, Senhor nosso, de pescadores de peixes fez pescadores de homens; mas Santo Antônio fez pescadores dos homens, não os pescadores, senão os peixes. E aquele foi o dia em que o mar fez o mais formoso lanço na terra, do que a terra o tinha feito nunca com as redes no mar. Sendo admirável a diferença com que, no mesmo caso de não serem ouvidos dos homens, se houveram no modo de ensinar o supremo Mestre e o grande discípulo. Cristo escondeu-se em si mesmo: Antônio não se escondeu, Cristo fez-se invisível; Antônio fez que vissem todos e ouvissem, como era ouvido. Cristo saiu-se do Templo: Antônio não se saiu da campanha ou da estacada. Cristo desenganou-se de não reduzir com razões a homens racionais: Antônio resolveu-se a convencer racionais com animais brutos e sem razão. Cristo deixou de gastar e multiplicar palavras com os que as não queriam ouvir; e Antônio persuadiu aos mesmos com aqueles animais que entre todos são mudos, e com o seu silêncio. Enfim, os judeus ficaram deixados com as pedras na mão, e os hereges com a dureza dos corações convertida de pedras em homens. Assim o tinha Deus prometido por Ezequiel aos reduzidos de Babilônia: Auferam ab eis cor lapideum, et dabo eis cor carneum [24].
§ VIII
As maravilhas do docuerit de Santo Antônio no demônio. O extraordinário caso do noviço que roubou ao santo seu livro de pregações.
Tendo mostrado Santo Antônio a maioria do seu ensinar - et docuerit - primeiro em homens, e depois em brutos, só lhe resta em quem fazer clara a mesma demonstração. Em quem? Não em outrem, senão no mesmo demônio.
Assombrado o demônio, e raivoso das maravilhas com que Santo Antônio, entre católicos e hereges, despovoava o inferno, determinou, quem tal imaginara! - desarmá-lo. Tinha o santo reduzido a lição da Sagrada Escritura a um livro de lugares-comuns e matérias particulares, do qual se valia, principalmente quando havia de pregar sem novo estudo, e de repente. Este livro lhe desapareceu da cela, e houve mister Santo Antônio outro Santo Antônio, que, perdido, lho deparasse. Porque estas graças de Deus, que os teólogos chamam gratis datas, ou é fidalguia dos que as recebem, ou limitação com que Deus as concede, que nunca as possam exercitar consigo, senão com outros. Assim vemos em São Roque, que, tendo a graça de curar todos os apestados, ele morreu de peste; e em São Pedro, que, dando saúde fora de sua casa a todos, não a deu dentro dela a sua sogra, que gravemente estava enferma de febres. E pudéramos alegar aqui ao mesmo Cristo, que, fazendo tantos milagres em toda a parte, só na sua pátria diz o evangelista expressamente que não podia: Non poterat ibi virtutem ullam facere [25]. - E que foi feito daquele livro de Santo Antônio? Ainda o demônio com maior astúcia lho tinha, não tirado, mas persuadido a outrem que ocultamente o furtasse. Foi-se ter com um noviço, que devia ser pouco humilde, e de altos ou altíssimos pensamentos, e disse-lhe interiormente: - Não vês a grande fama de Fr. Antônio, que leva todo o mundo pós si com suas pregações? Pois eu te ensinarei meio com que faças tua toda a sua fama, armando-te a ti, e tirando-lhe as suas armas a ele: na sua cela tem um livro, de que tira quanto prega; entra lá ocultamente, tira-o, e esconde-o onde ninguém te veja nem o saiba; e logo, saindo-te da religião, pois és noviço, com o teu talento, de que tanto presumes; e com o seu pecúlio, serás outro Santo Antônio.
Pareceu bem ao noviço o conselho, como inventado e dado por quem lhe conhecia o humor. Deixa o hábito, sai-se com o livro roubado, e, como pela falta que fez no noviciado fosse conhecida e averiguada a sua fugida, então revelou Deus ao santo todo o engano do demônio, e o extraordinário modo de tentação, com que o tinha tirado do estado religioso para o mundo, e posto no caminho certo do inferno. O intento de desarmar a Santo Antônio com o furto do livro foi recebido com riso de todos os que o souberam, como se Santo Antônio fosse pregador de cartapácio, e, como Arca do Testamento que era, não tivesse dentro em si mesmo as tábuas de ambas as leis, isto é, de todas as Escrituras, assim da lei escrita como da graça. O que sentiu o santo, estranhamente compadecido, como pai e pastor, foi a perda daquela ovelha. E como nos parece que procuraria reduzi-la ao rebanho? Porventura iria ele a buscá-lo, como o seu zelo tão facilmente acudia aos mais estranhos? Não. Mandaria ao menos algum religioso, dos mais antigos e espirituais, que com verdadeiros conselhos o reduzisse outra vez? Também não. Finalmente, encomendaria esta empresa a um par de leigos robustos, e de boas mãos, que, quando não quisesse por vontade, o trouxessem por força? Nem isto fez o santo, porque em caso tão extraordinário quis que fosse também novo e inaudito o remédio. Quer reduzir e restituir à religião o noviço, mas não por meio de outrem, senão do mesmo demônio, que o tinha enganado.
Cristo, na última tentação disse ao demônio: fade retro [26]: Torna atrás - e assim o fez Santo Antônio com notável propriedade: - Já que tu, demônio, foste o que maquinaste desde o seu princípio toda esta tramóia: fade retro: Torna agora atrás, e pois tu a começaste e fizeste, tu és o que a hás de desfazer. - Já se vê qual seria o desgosto e raiva do demônio, considerando não só desfeita a sua máquina, mas a afronta de ser pelo mesmo autor dela. Não pôde porém deixar de obedecer a Santo Antônio, pelo poder que tinha sobre todo o inferno. Vai, como sinaladamente lhe era mandado, espera o ]noviço em uma ponte, donde ou se havia de lançar ao rio ou tornar atrás, e assim preso, e ambos envergonhados, se vieram lançar aos pés de Santo Antônio. Oh!! maravilha nunca vista, e com razão estimada na mesma Escritura por impossível!
Toda a conversão de uma alma a Deus depois de o ter deixando, é sobre toda a natureza; mas nenhuma mais dificultosa que a do religioso. Não lhe dá outro nome a Escritura Sagrada que de impossível: Impossibile est eos qui semel illuminati, et prolapsi sunt, rursus renovari ad poenitentiam [27]. - E que este impossível, não só confirmado, mas atado e reatado com tão particulares circunstâncias, se desfizesse por meio do mesmo demônio, e tomasse ele a trazer e meter na religião c) que por tão extraordinários meios tinha tirado dela! E que isto não obrasse Santo Antônio por si mesmo, ou por outro religioso, senão por meio de um demônio! Só iria escola de Santo Antônio se pode achar tal modo de ensinar: Et docuerit.
§ IX
O que Cristo não, fez por um demônio, pregador da sua divindade, fez Santo Antônio por outro demônio, depravador da sua religião.
E se não, vejamos o que fez Cristo, cujo domínio, império e desprezo em tratar os demônios, tão freqüentes em seu tempo na Judéia e; Galiléia, foi verdadeiramente admirável; mas nenhuma ação sua tão soberana, guie possa fazer paralelo a esta de Santo Antônio. A ação mais devota, e ao parecer mais santa do demônio, foi a daquele que deu em ser pregador de Cristo, e publicar que era Deus. E que fez então o Senhor? Porventura converteu por meio desta pregação do demônio a todo o mundo, que ele lhe tinha oferecido no deserto: Haec omnia tibi dabo [28]? - ou, quando menos, a um homem? Nem por pensamento. O que fez foi não só mandar-lhe que se calasse, mas emudeceu totalmente: Obmutesce [29]. - Não assim Santo Antônio. O que Cristo não fez por meio de um demônio, pregador da sua divindade, fez Santo Antônio por outro demônio depravador da sua religião: não o privou do instrumento da língua, antes acrescentou-o de uma espada nua, com que ameaçasse o noviço fugitivo. Como se dissera: - Tu me quiseste desarmar para tentar o religioso, pois eu te armarei, para que tu mesmo desfaças o que tinhas feito.. Se, depois de lançado Adão do paraíso, pusera Deus por guarda dele a mesma serpente que o tentara, fora grande propriedade e energia do castigo; mas não fiou Deus do demônio tal gênero de obediência. É verdade que também deu a espada, mas a quem? A um querubim: Cherubim et flammeum gladium [30] - porque a ação da espada não está na espada, senão na mão de quem a meneia. Mas não foi assim a de Santo Antônio. Mete a sua espada na mão do demônio, seguro de que não obraria a espada o que quisesse a mão, senão a mão, posto que muito a seu pesar, o que quisesse a espada. Assim foi, e não em menor, ou menos dificultoso caso, que em um já qualificado por impossível.
Enfim, que não converteu Cristo por meio do demônio a pecador algum, nem gentio, nem cristão, e muito menos religioso. É grande o número de religiosos, não só noviços, que cada dia deixam o hábito, senão também dos professos, que, depois de o serem, apóstatas e fugitivos, renunciam e abominam o que votaram e prometeram a Deus. E quando alguns se emendam, e tomam verdadeiramente à religião, quem os converte? Converte-os o mesmo Cristo com os impulsos de sua graça, converte-os com os indultos de seu Vigário, o Sumo Pontífice, converte-os enfim com meios vários e extraordinários de sua onipotência. Porém, que um religioso pervertido se converta à religião por meio do demônio, e do mesmo demônio que o perverteu e incitou a sair dela, esta maravilha só Santo Antônio a fez neste caso, acabando de mostrar, primeiro nos homens, depois nos brutos, e ultimamente no mesmo demônio, a grandeza e maioria de suas obras, não só consideradas em si, mas comparadas com o mesmo Cristo, assim como já vimos no fazer: Fecerit - e agora acabamos de ver no ensinar: Et docuerit.
§ X
Quando Cristo se diminui, e faz menor que Antônio, injustiça manifesta é, por não dizer sacrilégio, que haja quem o diminua ou reduza a um nome diminutivo. O extraordinário milagre de Santo Antônio na Basílica de São João de Latrão, quando quiseram substituir sua estátua pela de S. Gregório Magno. Conclusão.
Este é aquele santo, ou aquele famoso herói entre todos os santos, que, chamando-se Antônio, o vulgo de Roma, acrescentando-lhe uma letra ao nome, e chamando-lhe Antonino, de tão grande o fez pequeno. Tire-se-lhe esta letra, tão injustamente acrescentada, e ficará reduzido - que é o que eu só pretendo - à sua natural ou sobrenatural grandeza. Assim tirou Deus a Sarai aquele último i, com que a fez muito maior do que era; e assim, tirado a Antonino o último n, ficará restituído ao que é, e sempre foi. Ele se fez menor por amor de Cristo, e lhe pagou esta grande resolução com se fazer em sua presença menor que ele. Como se dissera com o Batista: lllum oportet crescere, me autem minui [31]. - E, quando Cristo se diminui e faz menor que Antônio, injustiça manifesta é, por não dizer sacrilégio, que haja quem o diminua ou reduza a um nome diminutivo, para lhe tirar, não digo já a maioria, senão a igualdade de grande. Será justo que nós lha tiremos, quando o Evangelho lha dá: Hic Magnus vocabitur?
Só fala com o vulgo romano a humildade pouco presumida da minha apologia; mas, se ela tivera atrevimento para se apresentar aos pés de Sua Santidade, tenho por certo que pacificamente sairia melhor despachada. O papa Nicolau IV tinha colocado a estátua de Santo Antônio na mesma ordem e série em que na Basilica de São João de Latrão se vêem as dos apóstolos [32]; e, parecendo-lhe a Bonifácio VIII que aquele lugar tão alto não competia a um santo de tão pouca antigüidade, como era em seu tempo a de Santo Antônio, ordenou que fosse tirada dele, e posta ali a de São Gregório Magno. Eis aqui como o sobrenome de Magno já então se impugnava a Santo Antônio. Mas vejamos como ele o defendeu. Levantaram os oficiais os andaimes por ordem de um pontífice, para porem naquele lugar outro, e ao primeiro golpe do picão, que tocou no capelo a Santo Antônio, levantou a mão a estátua com tal impulso, que os pedreiros e os andaimes, com ruído que assombrou toda Roma, vieram abaixo, tendo-se por grande milagre do mesmo santo que todos os que tinham subido àquela obra se levantassem vivos e sem lesão, ficando ele porém no seu lugar, sem ser substituído por outro, posto que sumo, e tão grande pontífice, como bem declara o título e sobrenome de Magno. E são já três pontífices, um que lho deu, outro que lho quis tirar, e o terceiro, que o não substituiu.
Em nossos dias se acrescentou a este número o quarto, que foi Urbano VIII. Houve também em Roma quem tivesse por demasiada a devoção da Escala Santa, por onde todas as segundas-feiras, desde a aurora até o meio-dia, estão subindo de joelhos, desde o pé do Capitólio até o alto da Ara Caeli, em contínua devoção, homens e mulheres, a venerar a imagem de Santo Antônio. Mas que responderia a discreta urbanidade daquele grande pontífice? Respondeu Urbano que ele não queria pleitos com Santo Antônio, de que em São João de Latrão tinha já o aviso. Vede se tenho eu razão de que a minha apologia saísse com o merecido despacho, se chegasse a se pôr aos pés de Sua Santidade.
Tomando ao vulgo - se vulgo se pode chamar o romano, com que só falo - para que lhe não pudesse dizer hoje Tertuliano que se apressou em dar o nome de Magno a Santo Antônio do Egito - em quem eu também o reconheço e venero - saiba que nesta tão justa restituição imitará não menos que ao mesmo Deus, o qual, depois de começar a se povoar o limbo dos padres em Abel, esperou dois mil e trezentos anos para lhe dar o nome de seio de Abraão, a que, entre todos os patriarcas, era tão devido, como a Santo Antônio, pelo que fez e ensinou, o de Magno: Hic Magnus vocabitur [33].
LAUS DEO