“Como disse o próprio Marx, “materialismo abstrato”
e “espiritualismo abstrato” tocam-se,e não se trata deescolher um ou outro, mas “a verdade que une os dois”para aquém da sua separação” (E. Mounier. O Personalismo. Lisboa, Morais Editores, 1970, p. 48).
Fala-se muito de marxismo, e, no entanto, a grande maioria das pessoas não conhece seu sentido mais profundo. Julga-se comumente que Karl Marx foi um materialista ateu e nada mais. Todavia, não é preciso dizer que tais afirmações são superficiais. Desconsidera-se simplesmente a relação fundamental entre G. W. F. Hegel e Marx, ou ainda entre L. Feuerbach e Marx.
As causas da incompreensão de uma teoria tão ostensivamente divulgada são diversas. Contudo, G. V Plekhânov, que é um marxista “anti-romântico, iluminista, evolucionista”[1], como nos afirma Michel Löwy, indica-nos as causas principais. Segundo Plekhânov, os leitores atuais não estão preparados para compreender e servir-se da obra de Marx.
“E por quê? Por múltiplas razões. Uma das mais importantes é que atualmente se conhece muito mal não só a filosofia hegeliana, sem a qual é difícil assimilar o método de Marx, mas também a história do materialismo, sem a qual não é possível ter uma idéia clara da doutrina de Feuerbach, que foi, em filosofia, o predecessor imediato de Marx, e que forneceu, em considerável medida, a base filosófica da concepção de mundo de Marx e Engels.”[2].
Realmente, Hegel e Feuerbach são fundamentais para a compreensão da cosmovisão de Marx e Engels. Foi Hegel quem forneceu o método dialético que será a base do sistema de Marx, assim como ele nos confessa no Posfácio à segunda edição alemã de O Capital em 1873:
“Ao tempo em que elaborava o primeiro volume de “O Capital”, era costume dos epígonos impertinentes, arrogantes e medíocres, que pontificavam, nos meios cultos alemães, comprazerem-se em tratar Hegel, tal e qual o bravo Moses Mendelssoh, contemporâneo de Lessing, tratara Spinoza, isto é, como um “cão morto”. Confessei-me, então, abertamente discípulo daquele grande pensador, e, no capítulo sobre a teoria do valor, joguei, varias vezes, com seus modos de expressão peculiares. A mistificação por que passa a dialética nas mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. Em Hegel a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do invólucro místico.”[3].
De fato, já em 1844, nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, Marx procurava a tal “substância racional” na dialética hegeliana:
“Lo que importa en la Fenomenología de Hegel y su resultado final – la dialéctica de la negatividad definida como principio motor y generador – consiste en eso: Hegel capta la autogeneración del hombre como un proceso, la objetivación como oposición, como alienación y como supresión de esta alienación; de este modo, capta la esencia del trabajo y concibe al hombre objetivo, verdadero (puesto que es hombre real), como resultado de su propio trabajo.”[4].
Charles Wackenheim afirma, ao comentar os Manuscritos Econômicos Filosóficos, que: “Lo que en definitiva busca Marx es la ley de “devenir” hsitorico; cree hallar su princípio en la dialéctica hegeliana.”[5].
Na posse desse princípio hegeliano, que no dizer de F. Engels é “absolutamente revolucionário”[6], Marx estruturará seu sistema, que é na verdade uma secularização do monismo hegeliano.
“El monismo del Yo o de la Idea, Marx lo substituye por el monismo de la realidad social. Después de Feuerbach, transfiere explícitamente el absoluto divino al hombre concreto y a la humanidad. Su crítica del idealismo apunta a todas las manifestaciones del espíritu “abstraídas” de la praxis social. Sería más justo decir que Marx se opone al espiritualismo en nombre de un monismo idealista invertido. Lo que él condena en Hegel, por ejemplo, es la primacía del Espíritu, la Idea considerada como origen de lo real, pero en modo alguno los postulados fundamentales del idealismo hegeliano.”[7].
Essa afirmação que C. Wachenheim faz ao comentar o sentido do ateísmo nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, é extremamente interessante, pois além de esclarecer a ligação entre Hegel e Marx, mostra qual é o sentido da “crítica” que Marx faz a Hegel, crítica essa que não implica numa negação do idealismo, numa negação do espírito, mas sim, uma negação do espiritualismo, da primazia do Espírito, ou seja, da Idéia, sobre o real, constituindo apenas uma inversão do idealismo hegeliano.
Em vista disso, poderíamos nos interrogar sobre qual seria o verdadeiro sentido do pretenso materialismo marxista?
Todavia, tal afirmação de C. Wackheneim, que está baseada nesses escritos de 1844, remete-nos novamente ao famoso Posfácio da segunda edição alemã de O Capital, de 1873, onde Marx refere-se novamente a essa inversão do sistema hegeliano:
“Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento, - que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de idéia, - é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado.”[8].
Essa afirmação estabelece um paralelo perfeito com sua posição nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, visto que Marx considera seu método o oposto do método de Hegel exatamente porque o fator ideal (Idéia) não é o criador do real, do material, mas sim um produto da própria matéria. Ora, como sabemos que o sistema de Marx tem por base a dialética hegeliana, a matéria poderia gerar ou criar dialeticamente o ideal, o espiritual. Deste modo, C. Wackenheim tem razão ao afirmar que, na verdade, Marx se opõem a um “espiritualismo” que considera o espiritual independente do real, em nome de um idealismo invertido, que permanece, portanto, sendo uma relação dialética entre matéria e espírito.
Isso poderia assustar e mesmo apavorar um simplório discípulo de Marx, entretanto, jamais incomodaria Karl Marx ou Friedrich Engels, pois tanto para Marx quanto para Engels o termo “materialismo” significa uma determinada relação entre matéria e espírito.
“Auguste Cornu, em sua grande obra sobre Karl Marx depreendeu as noções essenciais que Marx tomou à filosofia clássica alemã; a união da realidade espiritual e da realidade material e sua ação recíproca, a imanência radical do espírito na história, a idéia do devir, a contradição como motor deste devir.”[9].
Após citar o clássico Karl Marx et Friedrich Engels[10], de Auguste Cornu, Roger Garaudy, que foi militante e teórico marxista, afirma: “O que Marx trará de novo, com relação a todas essas concepções idealistas e utópicas do comunismo, é, antes de mais nada, a união indissolúvel do espírito e do mundo.”[11].
Paul Foulquié, tratando do Materialismo Histórico, afirma: “Marx é materialista. Mas como as teorias só se põem opondo-se, é bom precisar a que teoria ele diretamente se opõem: não é ao espiritualismo, que admite no homem um espírito ao mesmo tempo que um corpo; é ao idealismo, que rejeita a matéria e só admite o espírito.”[12].
Portanto, o termo “materialismo” para Marx e Engels indica uma determinada relação entre matéria e espírito, e os estudiosos não poderiam – caso quisessem ser fiéis ao pensamento de Marx e Engels – chegar à outra conclusão, pois esse conceito de materialismo está nas obras dos criadores do Materialismo Histórico. E Engels, em sua obra Ludwig Feuerbach e o fin da filosofia clássica alemã, afirmou claramente que o materialismo é:
“una concepción general del mundo basada en una interpretación determinada de las relaciones entre el espíritu y la materia”[13].
Nessa mesma obra, Engels, tratando do que ele considera o problema cardeal de toda filosofia, faz ainda uma divisão dos filósofos entre idealistas e materialistas, na qual ele se expressa exatamente como Marx no Posfácio da segunda edição alemã de O Capital:
“Los filósofos se dividían en dos grandes campos, según la contestación que diesen a esta pregunta. Los que afirmaban el carácter primario do espíritu frente a la naturaleza, y por tanto admitían, en última instancia, una creación del mundo bajo una u otra forma (y en muchos filósofos, por ejemplo en Hegel, la génesis es bastante más embrollada e imposible que en la religión cristiana), formaba en el campo del idealismo. Los otros, los que reputaban la naturaleza como lo primario, figuran en las diversas escuelas de materialismo.”[14]
Veja-se que Engels não nega o espírito, mas apenas sua primazia em relação à matéria. Como Marx, Engels exige que a natureza, a matéria, tenha primazia, isto é, estabeleça uma relação de prescipuidade com relação ao espírito. Engels e Marx, como dialéticos que são, não vêem o idealismo como uma negação da matéria, ou o materialismo como uma negação do espírito, mas, segundo eles, o que distingue idealismo e materialismo são as determinadas relações que cada um estabelece entre matéria e espírito.
Logo em seguida, após definir as expressões idealismo e materialismo, Engels declara peremptoriamente:
“Las expresiones idealismo y materialismo no tuvieron, en un principio, otro significado, ni aquí las empleamos nunca con otro sentido.”[15].
Portanto, para Marx e Engels, o materialismo deve ser entendido no sentido restrito que expusemos acima, não podendo ser confundido com àquela visão de mundo do século XVIII, que segundo Engels é mecanicista[16] e antidialética[17].
“Feuerbach tenia indiscutiblemente razón cuando se negaba a hacerse responsable de ese materialismo: pero a lo que no tenía derecho era a confundir la teoría de los predicadores de feria con el materialismo en general.”[18].
Eis o materialismo dos criadores do “Socialismo Científico”!
Na verdade, “materialismo” é um termo tático, que visa ao mesmo tempo atrair materialistas primários e grosseiros,e esconder o monismo dualista herdado do idealismo alemão.
Essa verdadeira face do marxismo, que ligando-se ao idealismo pertence portanto à esfera do romantismo, não é desconhecida dos estudiosos e nem mesmo de autores marxistas. Michel Löwy, por exemplo, que insiste em utilizar o método dialético marxista[19], foi obrigado a afirmar: “Alvin Gouldner tem, portanto, razão ao insistir nos “importantes componentes românticos” no pensamento de Marx e Ernst Fisher, em sublinhar que este último integrou em sua obra “a revolta romântica contra um mundo que transformou tudo em mercadoria e degradou o à condição de objeto”[20].
O pseudo-materialismo de Marx, que é na verdade uma secularização do monismo dualista hegeliano, encaixa-se perfeitamente na dimensão romântica indicada pelos autores acima citados. Deste modo, pois, podemos compreender porque Eric Voegelin pode afirmar:
“O ponto de partida para o movimento do pensamento de Marx parece ser a posição gnóstica herdada de Hegel.”[21].
[1] M. Löwy. Romantismo e Messianismo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1990, p.23.
[2] G. V. Plekhânov. Os princípios Fundamentais do Marxismo. São Paulo, Ed. Hucitec, 1978, p. 10 (o negrito é nosso).
[3] K. Marx. O Capital: crítica da econimia política. São Paulo, livro primeiro, vl. I, ed. 8, Ed. DIFEL, 1982, pp. 16-17.
[4] MEGA I, 3, p.156 (E 30) apud C. Wachenheim. La quiebra de la religión según Karl Marx. Barcelona, Ediciones Península, 1973, p. 226 (o negrito é nosso).
[5] C. Wachenheim. La quiebra de la religión según Karl Marx. Barcelona, Ediciones Península, 1973, p. 224
[6] F. Engels. Ludwig Feuerbach y el fin de la filosofia clasica alemana. < www.ucm.es/info/bas/es/ >. 19/11/2004.
[7] C. Wachenheim. op. cit. p. 262 (o negrito é nosso).
[8] K. Marx. O Capital: crítica da econimia política. São Paulo, livro primeiro, vl. I, ed. 8, Ed. DIFEL, 1982, p. 16.
[9] R. Garaudy. Karl Marx. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967, pp. 34-35 (o negrito é nosso).
[10] No parecer de E. J. Hobsbawm essa obra de A. Cornu “parece definitiva”. E. J. Hobsbawm. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 2004, p. 457.
[11] R. Garaudy. op. cit. p. 35.
[12] P. Foulquié. A Dialéctica. Portugal, Publicações Europa-América, 1978, p. 54 (o negrito é nosso).
[13] F. Engels. Ludwig Feuerbach y el fin de la filosofia clasica alemana. < www.ucm.es/info/bas/es/ >. 19/11/2004.
[14] F. Engels. Idem.
[15] F. Engels. Idem.
[16] F. Engels. Idem.
[17] F. Engels. Idem.
[18] F. Engels. Idem.
[19] M. Löwy. op. cit. p. 17.
[20] M. Löwy. op. cit. p. 19-20.
[21] E. Voegelin. Estudo de Idéias Políticas – de Erasmo a Nietzsche. Lisboa, Ed. Ática, 1996.
Para citar este texto:
Ronaldo Mota - "O pseudo-materialismo de Karl Marx"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/index.php?secao=veritas&subsecao=historia&artigo=pseudo_mat_marx&lang=bra