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O Esperto - Gustavo Corção




O  ESPERTO

Deixando o limiar dos gabinetes onde se manipulam as conveniências políticas da nova ordem, da direita ou da esquerda, en­contramos hoje nas ruas, nas esquinas, nas casas, um difuso maquiavelismo, espécie de barbaria a varejo, elevada à categoria de su­prema virtude social. O cidadão de nossos dias gaba-se de ser esperto. É verdade que tudo conduz a esse resultado, pois a vida das cidades vai se tornando, dia a dia, mais in­trincada e problemática, e portanto mais sel­vagem, do que a vida dos selvagens. A con­quista de um lugar no bonde tem qualquer coisa da abordagem de um junco por piratas malaios; a compra de um pão requer a as-túcia do caçador.

Já vai longe, esbatido numa lembrança quase irreal, o tempo em que um homem, an­dando na cidade em compras ou em boêmia, tirava o relógio do bolso e dizia aos amigos, com simplicidade, essa frase prodigiosa: "Vou para casa". E ia. Ia para casa com o espí­rito livre; ia andando com plenos direitos à distração e ao sonho, sentindo-se legítimo herdeiro de um imenso patrimônio que, en­tre outras maravilhas, constava de bondes dóceis e de padarias fartas.

Hoje, tudo se arma em problema: e é nisso, exatamente nisso, que consiste a selva-geria. O selvagem é selvagem porque não tem o espírito livre. O civilizado é civilizado porque não sente a presença e os entrecho-ques da maquinaria que move a cidade. O selvagem é selvagem porque sua maior vir­tude é a astúcia. O civilizado é civilizado na medida em que pode manter uma candura municipal. É lícito dizer, portanto, que o mundo se torna bárbaro, quando em política, na vida das ruas, e no interior das casas, reina um imperativo de tecnicalidades, acei­tas e glorificadas, para todos cs atos simples que o homem já havia superado. O selvagem é o técnico por excelência; o selvagem é o mais tecnicológico e tecnicocrático dos ho­mens. Se é rústica a sua engenharia, rigoro­samente técnica e spengleriana é a sua con­cepção tática da vida.


A lei supera a esperteza e o amor supera a lei; e tanto na lei como no amor a base é o senso da reciprocidade e o reconhecimento do outro enfaticamente exaltados até o pro­pósito do sacrifício. O assassino e o ditador são criminosos, cada um em seu gênero, por­que negam a reciprocidade, rompem um pacto, e julgam que um ímpeto de suas von­tades pode ser uma lei, ou um decreto-lei, dentro do mundo dos homens. Mas o ditador é pior do que o assassino, já pôr causa da im­punidade em que se instala, já pelo próprio resultado material que se traduz, mais cedo ou mais tarde, não em um cadáver esfa­queado que a ronda da madrugada descobre num ângulo escuro da cidade, mas em mi­lhões de cadáveres esqueléticos que o lápis da estatística insere num gráfico.

É difícil determinar com precisão a re­lação de causa e efeito entre a esperteza po­lítica que triunfa na ditadura e a esperteza generalizada do povo. Parece-me que o fenô­meno progride por meio de avanços alterna­dos, ora de um lado ora do outro, até o dia em que a atmosfera popular de esperteza, isto é, de desmoralização, se transforma num apelo, numa invocação, num imprecatório apetite de tirania. Nasce então o mágico, não menos responsável, mas mais explicável. E ao cabo de uma dezena de anos agoniza uma nação.

A legislação de uma sociedade tem uma dura contingência: ninguém pode alegar igno­rância da lei. Todo mundo sabe que não seria possível legislar deixando para as mais simples infrações essa escapatória que, por fim, certamente, atingiria os mais graves de­litos. Mas também todo o mundo sabe que quase todo o mundo ignora o conteúdo dos códigos. Não somente o homem simples, mas o próprio civilizado será mais civilizado na medida em que ignorar a lei e nela viver com simplicidade e desembaraço. Entre os poucos feitos gloriosos que lego a meus filhos, e de que me gabo, está o de ter sido um dia preso na passagem He uma fronteira por falta de passaportes, e estão as miúdas infrações em que repetidamente caí por uma incapacidade irremediável de compreender os.caprichos de minha prefeitura, consignados em misteriosos papéis cobertos de caracteres ilegíveis e de iluminuras com monstros aquáticos.

Na base de uma legislação há um binômio indispensável: de um lado, a lei deve ter a medida do homem, deve estar impregnada do espírito que mora nos mais simples e antigos instintos populares; de outro lado, o povo que a recebe deve possuir, além desse vivo instinto, a corajosa disposição de aceitar a dureza da lei em nome do bem comum. Quando falta um desses elementos começa a corrida para um reajustamente que se torna cada vez mais difícil, pois onde perdem a força os mandamentos e a noção de bem comum, debalde tentarão os técnicos inter­pelar minuciosos artigos para apertar as ma­lhas da lei. O abismo se torna cada vez maior e o cidadão, perdendo a inocência cívica, ten­de para o esperto, e dessa tendência, como numa incubação, surge o triste herói dessa triste cidade: o mais esperto. E quando numa tarde embandeirada, entre fanfarras e discur­sos,, o pajé astuto toma conta do poder, po­demos dizer que está partido aquele fio esten­dido entre as colinas do ontem e as invisíveis montanhas do amanhã. E podemos marcar, com a precisão dos cálculos de eclipse, as datas da fome, da desolação e da desmorali­zação .

A esperteza é feia, é ignóbil, mas é sobre­tudo estéril; fecunda é a inocência. Fecunda é a fidelidade. Os homens de nossos dias es­pezinham a inocência e a fidelidade. E per­dem a memória. E tornam-se espertos. O esperto é o homem de longa malícia e curta memória; seus impulsos são breve como um   piscar de olho; suas  reações são as elementares, as glandulares, de que são capazes os ratos.



(Três Alqueires e Uma vaca - Gustavo Corção)

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