Muito mais veloz, o mundo de hoje impõe novas regras que impactam questões existenciais. A contemporaneidade traz embutido o mal-estar característico de uma sociedade asfixiada. Ser autocentrado, inseguro e superficial parece a única opção. Mas não é.
Por Kelly de Souza, Revista da Cultura #74
Um homem vagueia inquieto pelas ruas de São Petersburgo. Sofre com a ideia de ser ou parecer ridículo. Sempre teve a consciência de que sua vida fora ridícula. Durante a caminhada, devaneia acerca da vida, de sua inutilidade e de como tudo lhe é indiferente. Para ele, tanto faz o mundo existir ou não. Pouco a pouco, se convence de que daí em diante não haverá mais nada. A revelação o leva à ideia de suicídio. Em seu apartamento, o homem afunda-se em uma cadeira e coloca uma arma na mesa ao lado. Hesita pela incômoda sensação de culpa. Adormece e sonha com a sua redenção. “O Sonho de um Homem Ridículo”, conto de Fiodor Dostoiévski, de 1877, retrata como as aflições da alma podem chegar ao ápice.
Longe de São Petersburgo, outro homem deseja morrer. Não um personagem, mas um escritor-personagem que tornou pública, pelo Facebook, sua dor de amor perdido. Numa noite fria de agosto, o poeta Fabrício Carpinejar, autor de "Espero Alguém", sofria, tomava whisky, escutava música alta, caminhava enjaulado pela casa e refletia: ”Sabe aquele momento em que você descobre que a pessoa que amou é uma estranha, uma ingrata? Sabe quando o passado é uma miragem? Quando tudo desmorona e você tenta segurar as paredes da memória? Estava decidido a morrer.”.
Nesse ínterim, viu em cima da mesa um salame italiano e um queijo de Colônia, deixados por sua empregada Cléo. Arriscou provar, se empanturrou e, ao contrário do protagonista dostoievskiano, não foi o sono que dissipou sua ideia de morte, mas a comilança de um bom queijo com salame. Foi a partir daí que se questionou: “Que morte é essa que não resiste a um salamito?”. A esperança, diz ele, só precisa ter fome.
Nesse ínterim, viu em cima da mesa um salame italiano e um queijo de Colônia, deixados por sua empregada Cléo. Arriscou provar, se empanturrou e, ao contrário do protagonista dostoievskiano, não foi o sono que dissipou sua ideia de morte, mas a comilança de um bom queijo com salame. Foi a partir daí que se questionou: “Que morte é essa que não resiste a um salamito?”. A esperança, diz ele, só precisa ter fome.
Mais de um século separam as aflições descritas por Dostoiévski e Carpinejar e, ainda assim, não estão distantes umas das outras. Sofrer por amor, por liberdade, por conflitos de origem social, religiosa e sexual sempre estiveram na pauta dos grandes pesquisadores da mente humana. Freud, em seu “O Mal-estar da Civilização”, que o diga. Todavia, os psicanalistas de hoje garantem que o sufoco deixou de ser “apenas” isso. O complexo de Édipo e as tormentas psicossexuais que tanto ocuparam as mentes em décadas passadas transformaram-se em “uni-duni-tê” dos divãs atuais.
As marcas da contemporaneidade têm adicionado outras manifestações ao mal-estar humano, e essas são características da sociedade pós-moderna. Não se trata apenas de um capricho. “O que está em jogo é a perda de sentido da vida, a sensação de irrealidade, a futilidade da existência, a crise de identidade, o medo do aniquilamento. (...) São novas formas de adoecimento que ganham espaço progressivo na cena social atual”, explica a pesquisadora Paulo Kegler, mestre em psicologia clínica pela PUC do Rio Grande do Sul.
Para o filósofo Luiz Felipe Pondé, autor de "Guia Politicamente Incorreto da Filosofia", a velocidade na sociedade atual é cada vez maior, e não poucas vezes você para e pensa: “Afinal, estou correndo para onde, mesmo?”.
Não corremos para lugar nenhum, corremos simplesmente porque somos impelidos a correr. É assim que funciona agora. Mais velozes e dinâmicas, as novas situações, práticas e vivências têm também perturbado as questões existenciais. Somos autocentrados, inseguros e superficiais. Somos menos do que antes ou mais do mesmo? Afinal, o que atormenta hoje a psique humana?
Não corremos para lugar nenhum, corremos simplesmente porque somos impelidos a correr. É assim que funciona agora. Mais velozes e dinâmicas, as novas situações, práticas e vivências têm também perturbado as questões existenciais. Somos autocentrados, inseguros e superficiais. Somos menos do que antes ou mais do mesmo? Afinal, o que atormenta hoje a psique humana?
Consumo, ilusão e tédio
Retrato do efêmero, o contemporâneo é marcado pela fluidez e pela incerteza, pelo princípio da autonomia, pela crença de que tudo é possível e pela presença notável da depressão. Sedimenta-se o apelo à velocidade, à constante produção e ao contínuo consumismo. Os objetivos a serem perseguidos são frágeis e mudam com muita frequência. O mundo atual é recheado de interrupção, instantaneidade, incoerência, surpresa e é permeado por estímulos constantes.
Se você não considera suas relações pessoais tão efêmeras, antes de respirar aliviado, atenção: o consumo também é um mal da psique contemporânea. A professora Isleide Fontenelle, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica a forma como o consumo organiza as ilusões de nossa época: “Trata-se de uma cultura pautada pela lógica do mercado e fortemente influenciada pelas tecnologias de comunicação”. Para ela, a grande ilusão que a cultura de consumo começou a organizar foi “uma ressignificação de um ideal moderno, uma ilusão de um eu autoconstruído, um eu como projeto autônomo, individual”.
Em outras palavras, a marca de um produto determina o que é a identidade, ou seja, como definimos a nós mesmos e aos outros a partir das marcas que consumimos. “É nessa sociedade cada vez mais sem limites e que faz um empuxo em direção ao gozo sem fim que começam a surgir formas de patologias”, explica a professora.
Patologias, essas, presentes não só em adultos. Clarice Krohling Kunsch, do Instituto de Psicologia da USP, estudou as relações entre padrões de consumo e o tédio em crianças. Tédio que se caracteriza pela falta de iniciativa e espontaneidade. “É quando ela pode fazer alguma coisa e não quer; ela fica apática, desinteressada”. A causa deriva de vários fatores, como a superproteção, o controle exagerado e o uso em excesso de eletrônicos.
Possivelmente, por ter coisas demais, fazer coisas demais, liberdade demais, ser consultada demais (‘o que você vai querer ganhar de presente de Natal?’), a criança não se satisfaz e não assume a própria vida em nenhum aspecto: contraditoriamente, falta-lhe autonomia. Com isso, a vida se torna desinteressante e ela se entedia.
O Totem Tecnológico
A pesquisadora Lauren Colvara, do Núcleo de Estudos Filosóficas da Comunicação da ECA-USP, explica como a forma de nos organizarmos socialmente e subjetivamente com a tecnologia pode modificar as nossas relações sociais. O conceito do “tecnotoemismo” remete à obra “Totem e Tabu”, de Freud. “O totem é algo em que você se refugia. Tinha uma caracterização religiosa nas tribos arcaicas. Para se construir o totem, era escolhido um animal cujas características o povo queria ter ”. Lauren ressalva que, apesar de “não estarmos mais em uma nação de sociedade arcaica, estamos começando a nos organizar a partir da máquina".
Desejo, espetáculo e narcisismo? Lauren dá uma pista: grande parte dos usuários das mídias sociais está menos preocupada com a interação (e menos ainda com a experiência real) do que em aparecer perante o seu grupo de uma determinada maneira, de sinalizar que está "feliz" sem necessariamente estar, entre outros comportamentos focados na imagem que a pessoa quer ter de si mesma. Um jogo de faz de conta, um blefe, uma picardia.
Para a professora Lêda Gonçalves de Freitas, da Universidade Católica de Brasília (UNB), a “sociedade espetacular” é uma sociedade de voyeurismo. E, por ser assim, cria sofrimentos. “Há uma construção de dores”. A principal, já descrita por Freud, tem a ver com a decrepitude do corpo, o envelhecimento, as doenças e a não aceitação dessa inevitabilidade.
A retomada de consciência individual, na busca de uma vida mais equilibrada, com mais tempo para o lazer, trabalho, estudo e melhor uso do tempo livre, é a proposta do "Movimento Devagar", analisado em pesquisa da Escola de Comunicações e Artes da USP. Surgido na Europa nos anos 1990, o movimento tem por base um conceito comportamental e não temporal. De acordo com a autora, a publicitária Marília Barrichelo Naigeborin, trabalho e consumo podem gerar um círculo vicioso. "Quanto mais você consome, mais você precisa do trabalho. A relação fica extremamente mercantil. Às vezes, você almeja uma vida simples, mas o dinamismo e a pressão do mercado acabam exigindo outro estilo de vida", diz.
A filosofia da desaceleração tem em si uma tensão embutida. Como ser sereno, viver num ritmo mais tranquilo, devagar, se estamos inseridos em um contexto contemporâneo veloz? Obviamente, não dá para simplesmente abrir mão do mundo em que vivemos. "Sendo assim, precisamos constantemente jogar com isso", diz Marília. Esse estado transitório, entre o veloz e o devagar, incomoda, impacienta e desorienta. Mas é justamente nessa "estação avançada", nessa busca infinita do equilíbrio sensorial, que talvez encontremos a consciência sobre o que é importante ou descartável, o que nos faz bem ou mal, o que nos flagela ou eleva. Ser contemporâneo é inevitável, mas sucumbir é opcional.