Imagem: Vitrais da Abadia de
St-Dennis e o efeito da luz sobre eles. Os vitrais das catedrais
medievais representavam a Teologia da Luz e simbolizavam a Criação, com
suas múltiplas formas e cores.
A longa noite dos mil anos. Assim muitos
haviam pintado com pesadas tintas o período que se estende da queda do
Império Romano do Ocidente nas mãos dos bárbaros hérulos em 476 à queda
do Império Romano do Oriente com a tomada de Constantinopla pelos turcos
otomanos em 1453. Outros marcos divisórios foram propostos, é verdade,
mas fundamentalmente a Idade Média é considerada o período contido entre
os séculos V e XV da era cristã.
O termo nasceu de forma pejorativa.
Esses mil anos seriam uma época mediana, separada por duas gloriosas
épocas de esplendor cultural, a Antiguidade Clássica e os tempos da
Renascença. O Iluminismo aumentou a carga pejorativa com seu
característico anticlericalismo, criando a imagem de uma era estagnada,
onde o dogmatismo clerical tudo dominava e impedia a liberdade e o
progresso do conhecimento humano. Nem é necessário deter-se longamente
na igualmente conhecida simplificação anacrônica feita pelo marxismo, no
qual a Idade Média seria uma época de senhores feudais exploradores e
de servos explorados, conformados pelo “ópio” que lhes era fornecido
através do discurso religioso da Igreja. Por outro lado, o romantismo
fantasiou essa época com cavaleiros e damas quase imaculados e castelos e
armaduras engenhosamente desprovidos de qualquer praticidade.
A verdade é que geralmente vemos uma
dessas duas imagens de Idade Média. O pessimismo de uma época imobilista
sem liberdade e progresso ou o fantasioso cotidiano de cavaleiros
sempre heróicos com uma longa rotina de salvar donzelas, rodeados por
criaturas fantásticas.
Permitam-me dizer-lhes que a Idade Média
é uma construção artificial, uma forma de classificar o tempo conforme
determinados critérios, que os homens usam para diferenciar um
determinado tempo de outro. Seja como for, o nome “Idade Média” se
consolidou, tendo sido adotado por historiadores e homens de toda sorte,
sejam eles anacrônicos, idealistas ou devotados a entender a época que
estudam dentro de seu próprio contexto. Como História diz respeito não
somente ao tempo, mas também ao espaço, é preciso recordar que a
catalogação do período medieval refere-se com maior propriedade ao
ambiente da Europa Ocidental e parte do Mediterrâneo.
Contudo, mil anos são muita coisa. Para
melhor estudar a Idade Média, os estudiosos a subdividiram. Baseando no
sistema socioeconômico do feudalismo (atualmente os historiadores já
distinguem entre feudalismo e senhorio, abandonando o critério
marxista), dividiram o período medieval entre Alta Idade Média
(desenvolvimento e apogeu do feudalismo) e Baixa Idade Média (crise e
desestruturação do feudalismo), no qual o século XI apareceria como um
marco divisório.
Posteriormente, os historiadores
adotaram uma nova divisão, levando em conta aspectos mais complexos:
Antiguidade Tardia (do século V ao VII, ou mesmo iniciando-se nos
séculos II-III, no qual se observam a desestruturação do Império Romano
do Ocidente e a formação dos reinos romano-bárbaros), Alta Idade Média
(séculos VIII-X, característicos pelo ressurgimento da idéia de Império
na Cristandade ocidental com as dinastias carolíngia e otônida,
surgimento e formação do senhorio e do feudalismo), Idade Média Plena ou
Central (séculos XI-XIII, marcados pelo surgimento e auge da Cavalaria,
pelo ápice do poder temporal pontifício, surgimento das universidades,
crescimento da vida urbana e comercial, Cruzadas, etc.) e Baixa Idade
Média (séculos XIV-XV, onde se destacariam a crise e desestruturação do
feudalismo, uma maior centralização do poder nos reinos, o declínio do
poder temporal do Papado e novas formas de pensamento que conduziriam à
chamada Renascença ou Renascimento. Também poderíamos notar nesse
período a expansão ultramarina européia e a queda do Império Romano do
Oriente).
As luzes de que não falam
Tendo explicado brevemente em que
consiste a Idade Média, gostaria agora de apontar quatro características
dessa longa época que não se coadunam com a imagem de uma Idade das
Trevas.
Interesse pelo saber: No
ano de 1277 morria um homem em um acidente causado pelo desabamento de
um balcão para estudos e observações científicas que havia feito em sua
residência: essa residência era o palácio papal de Viterbo e esse homem
era Pedro Hispano, João XXI, o único papa português da História. O
conhecimento era valorizado por grande parte dos homens da Idade Média,
especialmente pelos clérigos, que julgavam a instrução dos demais como
uma de suas funções. Desde a Antiguidade Tardia os mosteiros foram
centros de preservação do conhecimento antigo dos gregos e romanos. Mas
esses mosteiros não somente preservavam e copiavam as obras antigas,
como também refletiam sobre elas e teciam comentários sobre as mesmas.
Já entre os séculos VI e VII, o Livro das Etimologias fora escrito pelo
bispo Isidoro de Sevilha, buscando compilar todo o conhecimento de seu
tempo. No século XII, o cônego Hugo da Abadia de São Víctor, na França,
escrevia em uma de suas obras exortando seus alunos a buscarem o estudo,
sem desprezar nenhuma forma de conhecimento. Com o surgimento das
universidades, a troca de informações e escritos e o debate de idéias,
frequentemente acalorado, se intensificou. Esse interesse pelo saber
traduziu-se também no âmbito prático: os estudos jurídicos em Direito
Romano e Canônico produziram códigos de leis e o século XIV, famoso pela
tenebrosa Peste Negra, nos legou dois artefatos de atual utilidade: o
relógio mecânico e os óculos.
Amor à Beleza: A Idade
Média teve vários estilos artísticos e amou a beleza como reflexo da
ordem e da bondade divinas. Lembravam-se os homens do medievo de Santo
Agostinho ao dizer que Deus tudo havia feito com número, peso e medida. A
Criação era vista como uma construção ordenada, fruto da inteligência
divina. A Criação também era vista como uma bela polifonia, onde todas
as criaturas cantavam, em suas distintas vozes, a Glória de Deus. Um dos
homens mais austeros da Igreja, o monge Bernardo de Claraval, escreveu
em um sermão o mais encantador elogio da beleza do corpo humano. A
beleza das igrejas românicas e góticas ainda hoje nos impressiona pela
monumentalidade e doce harmonia da unidade de suas formas. Mesmo em suas
épocas de maior dificuldade, o período medieval produziu obras
artísticas de incrível sensibilidade e beleza.
Dinamismo: Dinamismo é uma
palavra que, a meu ver, define a essência da Idade Média. A começar
pelas cortes itinerantes de seus monarcas que tardaram a se fixar em
capitais. Na política, nas artes, no meio erudito predominam as
transformações. Quando no século XII o abade Suger decide fazer uma
reforma para ampliar sua abadia de St-Dennis, na França, gera uma
arquitetura completamente nova, visando expressar em suas linhas e em
sua obsessão pela entrada de luz no edifício a Teologia da Luz, fruto da
redescoberta dos tratados de influência neoplatônica do Pseudo-Dionísio
Areopagita. Pela mesma época, a sobreposição de vozes em cima da
tradicional melodia do cantochão gregoriano abria o caminho para a
polifonia na música. Se pensarmos em ambientes bastante heterogêneos
como os reinos da Península Ibérica ou as cidades italianas, esse
dinamismo torna-se ainda mais notável. Entretanto, o dinamismo mais
característico foi o das universidades: o homem de saber medieval era um
cidadão da Cristandade, deslocando-se frequentemente em busca do
conhecimento e dos mestres famosos.
Incorfomismo: Em muitos
livros didáticos vemos aquela visão herdada pelo marxismo de que o homem
medieval era conformado com os males e injustiças que sofreria por
resignar-se à vontade da Providência Divina. Não é apenas uma notação
estulta de Providência e aceitação da vontade divina, como também um
desconhecimento de alguns fatos e elementos da Idade Média. Os tão
propagados abusos do clero recebiam na época críticas de homens da
Igreja mais ácidas do que de muitos reformadores protestantes, como as
críticas escritas no século XI pelo cardeal e monge beneditino Pedro
Damião. A jovem Catarina de Siena criticava os vícios da Cúria
Pontifícia e a relutância de Gregório XI em retornar à Roma na frente do
próprio papa e seu Colégio Cardinalício. A consciência de que a moral e
a ética deveriam ser também vividas no âmbito da política era algo
bastante conhecido dos homens de saber medievais. Uma farta literatura
de Espelhos de Príncipes, tratados moralizantes destinados aos monarcas,
floresceu ao longo de toda a Idade Média. Os vícios dos homens,
especialmente os de poder, eram apontados por eclesiásticos e explorados
como argumento pelos movimentos heréticos. As danças da morte, a qual o
povo igualmente tinha acesso, escarnecia dos pecados dos homens de
todas as condições que esqueciam-se frequentemente de que a morte um dia
lhes pediria contas.
A “Idade da Luz”?
A medievalista Régine Pernoud, desejosa
de desmistificar a Idade Média enquanto um período tenebroso, chamou-a
de “Idade da Luz”. Naturalmente, a historiadora não era ingênua para
achar que o medievo fora perfeito e nem mesmo o papa Leão XIII nutria
tal suposição quando indiretamente referiu-se ao período medieval como
“um tempo em que a filosofia do Evangelho governava as nações”.
É importante que, ao refutarmos o mito
da Idade das Trevas, não cultivemos uma mentalidade arqueologista e
romântica como a dos criadores da arte neogótica, que viam na Idade
Média a perfeição cristã, tratando tudo o que a antecedera como mera
preparação e tudo o que a sucedera, lamentável decadência. A Idade Média
foi um período com qualidades e defeitos como os demais. O que a
diferencia de outros tempos é uma maior influência que os valores
cristãos exerceram sobre o âmbito social e institucional, tendo isso
contribuído para muitas melhorias, embora não fosse possível,
naturalmente, erradicar todos os males nesse campo onde joio e trigo se
misturam até que chegue a colheita.
É bom sempre termos diante de nossas
consciências que a melhor época que há é aquela na qual estamos
inseridos, pois foi aquela na qual Deus nos colocou e aquela na qual
temos a capacidade de trabalhar por mudanças e melhorias. Essas
melhorias não nascem de grandes ações, mas sim de nossa conduta diária,
que pode fazer a diferença.
Texto de Rafael de Mesquita
Diehl, professor e historiador formado pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR) e mestrando pela mesma universidade.