Sem dúvida, o mito mais persistente sobre a relação da ciência com a religião em geral, e ao catolicismo em particular, é que sempre foram, são agora, e serão para sempre trancados em um antagonismo fundamental. Este mito distorce nossa compreensão da história, especialmente quando se orienta historiadores. Um dos livros mais distorcido da história, e também um dos mais influentes, foi o História do conflito entre religião e ciência, de John William Draper, publicado em 1874.
Draper nasceu na Inglaterra em 1811, mas emigrou para a América em 1832. Ele era um cientista extraordinário, fazendo contribuições fundamentais à química, astronomia, botânica, medicina, bem como o desenvolvimento científico e uso da fotografia. Mas ele é mais lembrado por sua História do conflito entre religião e ciência e foi extremamente influente na formação de nossas versões acadêmicas e populares do “mito da guerra”.
Como as obras de história da ciência ao longo do último quarto de século claramente demonstraram, embora Draper foi, certamente, um excelente cientista, como um historiador da relação da Igreja com a ciência ele era um mero propagandista anticatólico. Parte da autoridade do livro repousava sobre consideráveis avanços científicos de Draper. Como poderia um homem tão inteligente e um bom cientista não estar certo sobre tudo o que disse? Devemos acrescentar que a outra fonte de autoridade de seu livro foi externa: o clima de antagonismo para com a Igreja que permeava em uma época cada vez mais secular. Pessoas – algumas pessoas – queriam ouvir exatamente o que Draper tão apaixonadamente queria dizer, e assim trataram sua obra como autoritária.
Mas Draper não foi o primeiro a transmitir o mito da guerra. Pouco antes dele, Andrew Dickson White, o fundador da Universidade Cornell, tinha promulgado uma famosa conferência pública: “Os campos de batalha da ciência”, que foi publicado no New York Daily Tribune em 18 de dezembro de 1869. Não contente com esta primeira salva, White mais tarde iria forjar um compêndio de dois volumes dos pecados do cristianismo contra a ciência em A História da Guerra da Ciência com a Teologia na Cristandade (1896). Para ser justo com White, ele acreditava que a ciência estava em conflito apenas com a “teologia dogmática” ao invés da religião em si (embora a noção da religião ‘pura e sem máculas’ de White significava simplesmente aquela despojada de todo o conteúdo dogmático, o que significava que já não era o cristianismo). E nenhuma instituição, aos olhos de White, poderia ter sido mais dogmática do que a Igreja Católica.
Mas ainda não chegamos de volta à origem do mito da guerra. A tese histórica geral de White, de que havia um conflito essencial “entre duas épocas na evolução do pensamento teológico e científico humano – o teológico e o científico - era mais ou menos uma repetição de um argumento filosófico anterior feito pelo filósofo francês Auguste Comte (1798-1857) de que a história está necessária e inevitavelmente se movendo através de três épocas distintas: a teológica, a metafísica e a científica (ou positivista). Ou, dito de outra maneira, a história foi passando da superstição religiosa à filosofia e, finalmente, a ciência. Para o bem do progresso, a ciência deve substituir a religião.
Comte não foi original também, mas estava simplesmente codificando a radical noção iluminista, percorrendo todo o caminho de volta para o século 17, de que uma nova idade da razão tinha amanhecido e que era hora de jogar fora as correntes da religião e do catolicismo em particular. O ateu enrustido Thomas Hobbes forneceu um ataque particularmente animado sobre a Igreja Católica em seu Leviatã (1651), chamando-a de fonte de escuridão intelectual, por causa de sua crença na alma imaterial e espíritos (reforçada pela “vã filosofia” de Aristóteles) e era um obstáculo à aceitação do materialismo que Hobbes defendia como fundamento adequado da nova ciência.
À medida que o número de adeptos do materialismo filosófico crescia, o antagonismo à religião (especialmente o catolicismo) cresceu com ele. Este materialismo filosófico formou a base de um novo materialismo científico: o duvidoso ponto de vista filosófico de que ser racional significa afirmar que a realidade material é a única realidade definia a própria ciência. Ser científico significava ser um materialista e, já que o materialismo nega as realidades espirituais, ser científico significa, portanto, negar que existe um Deus puramente espiritual, que os seres humanos têm alma, e que as almas vivem após a morte em um estado de bem-aventurança ou a condenação. Essa é a fonte da secularização da ciência, que tanto alimentou e alimenta o mito de que a Igreja está em guerra com a ciência.
No século 18, o chamado Século das Luzes, este mito foi generalizado entre os agitadores intelectuais. Para observar um exemplo importante, Paul Henri Thierry Baron d’Holbach (1723-1789) uniu um materialismo inabalável com um ateísmo indisfarçável. D’Holbach incluíu entre seu círculo de radicais iluministas luminares como Jean-Jacques Rousseau, Benjamin Franklin, Adam Smith e David Hume.
Em seu famoso Sistema da Natureza (1770), d’Holbach afirmou a animosidade fundamental entre a religião e bem natural do homem. “A fonte da infelicidade do homem é a sua ignorância da Natureza”, declarou d’Holbach na primeira página. O homem é apenas “uma obra da Natureza. Ele existe na Natureza. Ele é submetido às leis da Natureza. Ele não pode se livrar delas”, declarou, salientando que não há nada fora da natureza material. Nossa alienação de nosso ser natural começou com o surgimento da religião, quando nossos olhos e esforços estavam voltados deste mundo para algum mundo imaginário. A ciência materialista sinaliza um retorno ao estudo da natureza como a única arena da verdade, o que vai nos curar da alienação de nosso bem natural.
As ideias de D’Holbach desenvolveram uma óbvia antipatia histórica: a ciência nos leva para a frente, para a felicidade e salvação; a religião nos arrasta para trás, para a alienação, ignorância e superstição. É fácil ver como o esquema d’Holbach, inteiramente derivado de seus pressupostos materialistas, pode fornecer a estrutura para as histórias posteriores sobre a relação da ciência com a religião no século 19, como vimos com Draper e White. Mas, novamente, essa ideia não era original. Ele apenas elaborou o básico, a noção iluminista radical de que a religião e a razão, o sobrenatural e o natural, estavam trancados em um fundamental antagonismo.
Aqui voltamos a um ponto essencial sobre a história: a relação entre as predileções e pesquisas de um historiador. Se um historiador despreza a religião e está convencido de que a religião é infantil ou perniciosa, a adoração a Deus é uma tola superstição, a religião nos faz infeliz, todos os padres são fraudes, e religião é a causa de todas as guerras, então ele naturalmente vai reunir todas as instâncias possíveis em que a religião parece ser infantil, com consequências perniciosas, o que implica uma tola superstição, causa de misérias, e ele também vai tentar aludir a ocorrências de sacerdotes fraudulentos e guerras religiosas. Muitas das provas serão reais – o pecado original é uma doutrina cristã essencial – mas muitas vão ser uma distorção, e muito do que iria contar em favor da religião será totalmente ignorado.
Podemos entender como o antagonismo do Iluminismo em relação à religião iria produzir uma história da ciência como Draper e White, que parecia mostrar que a ciência e a religião sempre estiveram em conflito – com a ciência materialista sendo o farol de luz e a religião a falta dela, o poder resistente das trevas. Isto foi m grande parte o resultado de reunir apenas as evidências que se encaixavam na premissa de defender essa hipótese, como se fosse uma conclusão.
Se, por outro lado, estes pressupostos forem descartados, e as provas forem recolhidas, sem a visão distorcida desses críticos pseudo-históricos, surge uma imagem muito diferente da relação da religião com a ciência. Sabemos disso a partir do último quarto de século de novas pesquisas sobre a história da ciência, na qual os historiadores têm acumulado montanhas de evidências que contradizem a tese superficial da guerra entre ciência e religião de Draper-White (e vamos demonstrar isso em postagens posteriores aqui).
No entanto, também podemos ver que há alguma verdade na visão de que há um certo tipo de antagonismo entre o cristianismo e a ciência moderna. Na medida em que muitos defensores da ciência moderna foram materialistas doutrinários, tem havido conflito, pois o materialismo e o cristianismo estão em desacordo essenciais, e devem permanecer assim para sempre. Não devemos então nos surpreender como a adesão ao materialismo cresceu e se espalhou e o antagonismo de e para o cristianismo aumentou. O materialismo, por definição, exclui qualquer realidade imaterial. O cristianismo, por definição, não pode cumprir essa exclusão. Mas a noção – advinda de Thomas Hobbes, passando pelo radical Iluminismo de Draper e White e até o presente – de que a história demonstra antipatia completa entre o cristianismo e a ciência é um mito, que é tão pernicioso quanto é falso.
Fonte: A Igreja Católica e a ciência – respostas às questões e exposição dos mitos - de Benjamin WikerTradução: Emerson de Oliveira