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"O modo de comunicar o sinal da paz na Santa Missa"


DEPARTAMENTO DAS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS
DO SUMO PONTÍFICE
O modo de comunicar o sinal da paz na Santa Missa
São Pedro e São Paulo, apóstolos
"Quando o leitor acabou, aquele que preside toma a palavra para incitar e exortar à imitação dessas belas coisas. Em seguida, levantamo-nos todos juntamente e fazemos orações por nós mesmos [...] e por todos os outros [...]. Terminadas as orações, damo-nos um ósculo uns aos outros" (Justino de Nablus, Apologia I, 65). Estas palavras de São Justino, escritas por volta de 155, apresentam-nos pela primeira vez o sinal da paz durante a Santa Missa.
Um primeiro aspecto que chama a nossa atenção, ao lermos este antiquíssimo testemunho, é o momento em que tal gesto tem lugar dentro da celebração: na conclusão da Liturgia da Palavra e antes da apresentação dos dons. Um segundo ponto que podemos evidenciar é o modo em que é realizado: "Damo-nos um ósculo uns aos outros". Esta expressão nos liga subitamente a diversos trechos do Novo Testamento, em que se fala da saudação feita com o ósculo santo, o beijo da caridade (ex: cf. Rm 16,16; 1Cor 16,20; 2Ts 5,26; 1Pd 5,14). Com efeito, por vários séculos o modo de dar a paz foi o ósculo, o beijo. Ele era dado entre os fiéis do mesmo sexo, com exceção dos catecúmenos - segundo a advertência da [obra que leva o nome de] Tradição Apostólica. Deste modo se desenvolvia a saudação da paz entre os fiéis na Igreja antiga. Mais tarde, a paz partirá do celebrante e se dará segundo a hierarquia (assim parece testemunhado já no Ordo Romanus I [do fim do séc. VII ou início do séc. VIII]). No séc. IX, o celebrante beija o altar, como sinal da paz comunicada por Cristo, e a transmite ao diácono; deste passa ao subdiácono e em seguida a alguns membros do clero. Em algumas ocasiões, alguns fiéis beijavam o "porta-paz", de que falaremos mais adiante.
Não é claro nem mesmo para os estudiosos em que momento o beijo foi substituído pelo abraço, mas parece certo que em todas as liturgias, ocidentais e orientais, percebe-se um processo de estilização do gesto em si. No que diz respeito à liturgia latina, o beijo na boca - atestado por inúmeros documentos até o Pontifical de Patrizio Piccolomini (+1496) e Giovanni Burcardo (+1506) - aterna-se com o beijo sobre o ombro, que se encontra às vezes no séc. XV e no Pontifical de Durando, do fim do séc. XIII. No último decênio do séc. XV, introduz-se ainda o beijo no rosto. Um último toque deste processo de estilização do gesto da paz encontra-se no séc. XIV, no qual alguns missais, por exemplo o de Bayeux, mencionam a prescrição de dar a paz através de um instrumento particular, o "osculatório" (osculatorium). Este intrumento de transmissão da paz era às vezes uma patena, um evangeliário, mas mais frequentemente uma "tabula pacis".


Exemplos de porta-paz
É no Missal de São Pio V, e em particular no Ritus servandus in celebratione Missæ (X, 3 [1962]), que se encontra a institucionalização do "osculatório": "se a paz é dada, [o sacerdote] beija o altar no meio e o instrumento da paz que lhe foi dado pelo ministro que está ajoelhado à sua direita, ou seja, do lado da Epístola, e diz: 'A paz esteja contigo'. O ministro responde: 'E com o teu espírito'. Se não houver quem receba do celebrante a paz com o instrumento, desta forma, não se dá a paz...". No que diz respeito à Missa solene, os ministros - diz o Missal de 1570 - aproximam mutuamente a face esquerda, sem se tocar, abraçando-se a uma certa distância. Como dizia com precisão a Sagrada Congregação dos Ritos, este abraço consiste em que "o diácono põe seus braços sob os braços do celebrante" (SRC 2915, Tuden., 23/05/1846, t. 2, p. 337).
Trecho do Ritus servandus de 1962 falando do instrumento da paz.
Trecho do Ritus servandus de 1570 falando do abraço da paz.
Diácono dá a paz a um clérigo, em Missa na Forma Extraordinária do Rito Romano
Diácono dá a paz ao subdiácono, em Missa na Forma Extraordinária do Rito Romano 
Diácono dá a paz ao subdiácono, em Missa na Forma Extraordinária do Rito Romano 
Na editio typica tertia do Missal Romano (2008), é deixado livre o modo de dar a paz e se delega às Conferências Episcopais* a faculdade de estabelecer, "de acordo com a índole e os costumes dos povos, o modo de realizá-lo" (IGMR, n. 82, cf. n. 390). Recorda-se porém que convém que "cada qual expresse a paz de maneira sóbria apenas aos que lhe estão mais próximos" (IGMR, n. 82). O celebrante pode dar a paz aos ministros, permanecendo no presbitério. O mesmo far-se-á caso queira dar a paz a alguns dos fiéis (cf. Instrução Redemptionis Sacramentum, n. 72).
Bento XVI recorda que "nada tira ao alto valor do gesto a sobriedade necessária para se manter um clima apropriado à celebração, limitando, por exemplo, a saudação da paz a quem está mais próximo" (Exort. Apost. Sacramentum Caritatis, n. 49). Este esclarecimento faz-se muito oportuno, porque é preciso recordar que a paz cristã tem sua fonte em Deus por meio de Jesus Cristo (cf. Jo 14,27; 16,33; Rm 1,7; Ef 2,14; Fl 4,7; Cl 3,15, etc.). O termo paz é entendido como compêndio de todo bem, dom messiânico por excelência e fruto do Espírito Santo.
É certo que o gesto da paz possui uma clara dimensão horizontal, que já notávamos em São Justino; porém desde tempos muitos antigos se encontra nele uma forte dimensão vertical. Não é uma simples paz humana já conquistada, ou que pode ser encontrada através da amizade ou da solidariedade. Trata-se, ao invés, da paz de Cristo ressuscitado - dele que é a nossa paz - comunicada através de seu Espírito, artífice da paz dos corações de todos os fiéis na Igreja. Na realidade, não pode haver paz que não tenha sua origem na Trindade. "A assembléia litúrgica tira sua unidade da 'comunhão do Espírito Santo', que congrega os filhos de Deus no único corpo de Cristo. Ela ultrapassa as afinidades humanas, raciais, culturais e sociais" (Catecismo da Igreja Católica, n. 1097).
Seria desejável que houvesse um retorno às intuições de alguns protagonistas do movimento litúrgico: recuperar o gesto da paz entre os fiéis, o qual só procede de Deus mesmo, como simbolizam o beijo do altar e a ordem hierárquica em sua transmissão. Assim recordava Pius Parsch: "O beijo da paz é sobretudo um símbolo sublime da comunhão dos fiéis entre si e com Cristo. Já que o beijo da paz provém do altar, que representa Cristo, é Cristo, portanto, que beija aqueles que participam do Santo Sacrifício; e este beijo se transmite de um a outro, fazendo de todos os fiéis uma unidade íntima que incorpora Cristo" (Sigamos la Santa Misa, L. Gili, Barcelona, 1954, p. 128). E Romano Guardini insistia na necessidade da transmissão "per ordinem" do rito da paz, como se prescrevia no Missal de 1570, dado que permite sublinhar que na liturgia a verticalidade se sobrepõe à horizontalidade: "aquilo que nos mantém unidos uns aos outros é a presença de Deus" (Cf. R. Guardini, El espíritu de la liturgia, Cuadernos Phase 100, Barcelona 1999, p. 34).

Obs: as imagens não constam no original.
*: Na edição brasileira da IGMR lemos a seguinte nota: "A CNBB, na XI Assembléia Geral de 1970 decidiu que 'o rito da paz seja realizado por cumprimento entre as pessoas do modo com que as mesmas se cumprimentam entre si em qualquer lugar público'". Particularmente, considero esta nota muito liberal. Talvez aqui esteja a raiz do comportamento distraído e irreverente de tantos fiéis neste momento da celebração.

Apêndice (para a Forma Extraordinária do Rito Romano)
As regras para dar a paz, segundo o Servo de Deus Pe. João Baptista Reus:
O modo de dar a paz obedece às seguintes regras (Miss.; Cær. Ep.):
1. Quem dá a paz, não faz inclinação antes, mas só depois, exceto o Celebrante.
2. Quem recebe a paz, tem de fazer inclinação antes e depois.
3. Quem dá a paz, põe as mãos juntas aos ombros do outro.
4. Quem recebe a paz, põe as palmas das mãos debaixo dos braços do outro, sinistris genis sibi invicem appropinquantibus (aproximando um ao outro a face esquerda).
5. Pax tecum. Resposta: Et cum spiritu tuo, mesmo se o que dá a paz não for diácono. Pois é o espírito do Celebrante, que se comunica.
6. Os leigos não podem receber a paz por abraço nem com uma patena (decr. 269; 416), mas só pelo porta-paz beijado por quem dá e por quem recebe a paz.

Fonte: REUS, Pe. João Baptista. Curso de Liturgia. III Edição. Pág. 375.

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