- “Cristo apresentou ao Pai, de uma única vez para sempre, o sacrifício de Si mesmo (Hebreus 9:24-28) e não em cada Missa, como faz novamente o sacerdote ao apresentar ao Pai um novo sacrifício de Cristo” (Guillermo Hernández Agüero, evangélico).- “Cristo não foi imolado uma única vez em Si mesmo? No entanto, quanto ao Sacramento [da Eucaristia] – que se imola pelos povos não só em todas as solenidades da Páscoa, mas também todos os dias – não mente aquele que responde, caso lhe seja perguntado, que ‘há imolação’” (Santo Agostinho, Bispo, século IV).
[Dando continuidade a esta Série, abordaremos hoje os testemunhos da obra anônima "Tradição Apostólica", Orígenes e Dionísio de Alexandria].
TRADIÇÃO APOSTÓLICA
Este é um documento de enorme importância para o conhecimento da liturgia celebrada na Igreja dos primeiros séculos. A obra é datada do início do século III (215, aproximadamente). Junto com a Didaqué, são os documentos mais importantes sobre a organização da Igreja primitiva.
Tratando da celebração da Ceia do Senhor, o documento distingue entre “pão bento” (em grego, “eulogia”) e “pão eucarístico” (em grego, “eukaristia”), e insiste no cuidado que se deve ter para com este último[18].
- “Cada um tome cuidado para que nenhum infiel prove a Eucaristia, nem algum rato ou outro animal; porque é o corpo de Cristo, que deve ser comido pelos fiéis e não deve ser menosprezado”[19].
Há uma expressão na Tradição que pode, a primeira vista, parecer [nas traduções] apoiar a opinião simbolista:
- “[O Bispo] dará graças sobre o pão para [que seja] o símbolo do corpo de Cristo; e sobre o cálice de vinho misturado para [que seja] a imagem do sangue que foi derramado por todos os que creram Nele”.
A palavra grega original que se encontra sob as palavras “símbolo” e “imagem” no texto acima – trata-se de uma mesma palavra para ambos os casos – é “antítipo”[20]. A questão é saber o que este termo significa propriamente.
“Tipo” designava, na língua helênica, o mesmo que o molde que modela uma imagem (sentido principal) ou a própria imagem já modelada (sentido secundário). Uma diferenciação posterior passou a ser usada para estes casos, apontando “tipo” para o molde e “antítipo” para a imagem; deste modo, o “antítipo” é algo que em sua própria razão de ser possui um caráter de referência essencial ao molde de onde procede. Para São Paulo, todos os acontecimentos do Antigo Testamento são “tipo” dos acontecimentos do Novo (Romanos 5,14; 1Coríntios 10,6); daí que, obviamente, o Novo Testamento é “antítipo” do Antigo. Com efeito, resta natural enxergar na Eucaristia um “antítipo” da morte de Cristo, que Ele mesmo ordenou comemorar nela. No texto acima citado, o pão e o vinho são chamados “antítipos” (imagem, semelhança) do corpo e do sangue de Cristo, porque esses elementos visíveis adquiriram, após a consagração, uma relação essencial com o corpo e o sangue de Cristo, que neles Ele Se nos dá realmente. Em outras palavras: os elementos eucarísticos são “antítipos” do corpo e do sangue de Cristo não em si mesmos – pois não o são de maneira nenhuma – mas enquanto foram feitos, sacramentalmente, o corpo e o sangue de Cristo. Longe de negar o realismo da presença real, essa expressão a supõe como fundamento da própria relação que afirma. Dava-se deste modo uma primeira resposta ao problema da persistência sensível do pão e do vinho apesar da transformação invisível que pela consagração se operou neles. Com a nova e real presença do corpo e do sangue de Cristo, os elementos do pão e do vinho adquiriram um novo sentido do sinal visível de uma nova realidade invisível, que é o corpo e o sangue do Senhor[21].
Existem outros monumentos litúrgicos em que a mesma expressão aparece. Cito alguns:
- “Te damos graças também, Pai nosso, pelo sangue precioso de Jesus Cristo derramado por nós, e pelo precioso corpo, cujos ‘antítipos’ realizamos por Ele nos ter ordenado proclamar a Sua morte” (Constituições Apostólicas 7,25,4).
- “Em lugar do sacrifício de animais, temos o [sacrifício] espiritual, incruento e místico, que é celebrado pelos ‘antítipos’ do corpo e do sangue do Senhor em memória da sua morte” (Constituições Apostólicas 6,23,5).
- “A imagem e semelhança do corpo e sangue de Cristo se realizam na celebração dos mistérios” (Gelásio, Tractatus de Duabus Naturis Adv. Eutychen et Nestorium 14).
- “Aceita, Pai, estes dons (=o pão e o vinho consagrados na Eucaristia) para a glória do teu Cristo e envia sobre este sacrifício o teu Santo Espírito, testemunha dos sofrimentos do Senhor Jesus, para que Ele mostre que este pão é o corpo de Cristo e este cálice é o sangue de Cristo, de tal modo que os que dele participam se fortaleçam para a santidade, alcancem a remissão dos seus pecados, sejam afastados do maligno e dos seus enganos, possam se encher do Santo Espírito, possam ser dignos do teu Cristo e possam obter a vida eterna, vida que cresce na reconciliaçao dos que fizeste partícipes” (Constituições Apostólicas 8,12,22).
O sentido destes textos supõe a mudança que sofrem o pão e o vinho na consagração. Por ela, o que era pão e vinho são agora o corpo e o sangue do Senhor; contudo, ao permanecer igual em seu aspecto visível de pão e vinho, recebem uma nova relação com o corpo e o sangue de Cristo ali realmente presentes e é isso o que expressam os textos com palavras como “figura”, “imagem”, “semelhança”, “antítipo”: para os olhos naturais, continuam sendo vistos pão e vinho; estes são uma “imagem” do corpo e sangue de Cristo, porque sobre eles foi pronunciada a “eucaristia” e já não são apenas pão e vinho[23].
São João Damasceno (séc. VIII) entendeu o problema de modo diverso e oferecia esta solução:
- “Se alguns chamaram o pão e o vinho de figuras [="antítipos"] do corpo e do sangue do Senhor – como disse Basílio, o Portador de Deus (=Teóforo) – os chamaram assim não após a consagração, mas antes da consagração, dando este nome à oblação em si” (Da Fé Ortodoxa 4,13).
Isto indica que a fé da Igreja universal era unânime em dar para a presença do corpo e do sangue do Senhor na Eucaristia um valor real e não meramente simbólico.
Finalmente, note-se que os adversários da presença real nem sequer poderiam usar em suas homilias as expressões aqui citadas – que poderiam parecer indicar uma interpretação “simbólica” para o nosso tema – já que as mesmas incluem o conceito de “sacrifício” eucarístico, ou o de “celebração dos mistérios”, que jamais são aplicáveis aos cultos que giram em torno da pregação [como os cultos protestantes], sem a existência de um altar e do sacrifício eucarístico.
ORÍGENES
Nascido em 185, em Alexandria, de família cristã. Seu pai foi martirizado durante a perseguição de Septimio Severo. Conheceu Hipólito de Roma. Excelente pregador e catequista. Morreu em Cesareia, por volta do ano 253, em virtude dos maus tratos provocados pelos perseguidores da Fé. Suas obras foram abundantes. Algumas de suas doutrinas ultrapassaram as da Igreja, mas tratam-se de especulações pessoais sobre os mistérios, coisa que o próprio Orígenes se encarregou de assinalar. Seu desejo de interpretar os textos bíblicos com excesso de alegoria e simbolismo costuma provocar confusão em mais de um de seus ensinamentos. Apesar de tudo, é considerado como um dos melhores teólogos da Antiguidade.
No caso de Orígenes, deve-se levar em conta o seu sistema interpretativo, para não retirar as expressões eucarísticas do seu contexto natural. Para compreender o pensamento sacramental de Orígenes, é necessário considerar três fatos:
a) Sua concepção tipológica (as instituições do Antigo Testamento são figuras das realidades invisíveis do Novo).
b) Sua preferência em insistir mais na pregação do que na liturgia.
c) O interesse que, por influxo platônico, tem para ele os sinais visíveis do culto como sinais das realidades sobrenaturais.
b) Sua preferência em insistir mais na pregação do que na liturgia.
c) O interesse que, por influxo platônico, tem para ele os sinais visíveis do culto como sinais das realidades sobrenaturais.
Tendo isto em vista, Orígenes jamais nega a realidade da Eucaristia e se é verdade que por essa concepção e preferência está ele inclinado a minimizá-la, seu testemunho – por isso mesmo – tem um valor muito maior[24]. Não se trata de uma antinomia entre realismo e simbolismo; afirma-se um simbolismo ulterior ao que previamente se admite como uma realidade. Há em Orígenes um perfeito paralelismo entre a realidade da Eucaristia e seu ulterior simbolismo em ordem a outras realidades, por um lado, e o sentido literal da Escritura e seu sentido tipológico, por outro. Ele não nega o sentido literal e nem o realismo eucarístico; estes dois são a base necessária para o simbolismo e a tipologia[25].
Há em Orígenes muitos textos em que alude a celebração eucarística; insiste especialmente nas disposições para se receber o corpo do Senhor. Indubitavelmente, ele entende esse corpo do Senhor no sentido literal:
- “Se sobes com Ele para celebrar a Páscoa, te dará o cálice do Novo Testamento e também o pão da bênção; conceder-te-á Seu próprio corpo e Seu próprio sangue” (Sobre Jeremias, Homilia 19,13).
- “Antes, como um enigma, o maná era um alimento; agora, realmente, a carne do Verbo de Deus é o verdadeiro alimento, como Ele diz: ‘Minha carne é verdadeira comida e Meu sangue é verdadeira bebida” (Sobre Números, Homilia 7,2).
Porém, esse corpo e sangue do Senhor, que são algo real na Eucaristia, são ao mesmo tempo símbolo de algo diferente, que pode também ser chamado, em sentido espiritual, de corpo e sangue do Senhor. Por isso, Orígenes chama o corpo de Cristo na Eucaristia de “corpo típico e simbólico”; não porque não seja real, mas porque também é um sinal, um símbolo.
Em outro lugar, Orígenes exorta:
- “Vós que assistís habitualmente os divinos mistérios sabeis como, quando recebeis o corpo do Senhor, o guardais com cuidado e veneração, para que não caia nenhuma só partícula e não desapareça algo do dom consagrado. Porque se por negligência cai alguma coisa, credes ser réus – e com razão[26]. Porém, se dedicais tanto cuidado para conservar o corpo – e tens razão em fazê-lo – como podereis pensar que é algo menos ímpio descuidar da Palavra de Deus?” (Sobre Êxodo, Homilia 13,3).
Em outro ponto, comenta Números 23,24, onde se lê: “Não dormirá até que coma a sua presa e beba do sangue dos feridos”. O próprio tom da frase – diz Orígenes – faz abandonar a letra [do texto] e buscar a alegoria:
- “Que nos digam: que povo é esse que tem o costume de beber sangue? Isso foi o que, também no Evangelho, os judeus que seguiam o Senhor, ao ouvi-Lo, se escandalizaram (…) Porém, o povo cristão escuta e segue Aquele que diz: ‘Se não comerdes a Minha carne e não beberdes o Meu sangue, não tereis vida em vós, porque a Minha carne é verdadeiramente comida e Meu sangue é verdadeiramente bebida’”.
E continua e conclui o alexandrino:
- “Verdadeiramente Quem dizia isto foi ferido por nossos pecados, como disse Isaías (…) Porém, é dito que bebemos o sangue de Cristo não apenas no rito dos Sacramentos, como também quando recebemos as palavras de Cristo, em que se encontram a Vida” (Sobre Números, Homilia 16,9).
Com efeito, Orígenes passa do real – que claramente afirma – para um sentido mais místico nas passagens que comenta[27].
DIONÍSIO DE ALEXANDRIA
Discípulo de Orígenes. Chefe da escola catequética de Alexandria em 231; Bispo de Alexandria em 248. Morreu em 265. Dele restaram duas cartas inteiras e vários fragmentos citados por outros autores.
Em uma carta ao Papa, em que explica o porquê de não reiterar o batismo dos hereges, diz:
- “É precisamente isto o que não me atrevi a fazer, dizendo [a um ancião que me insistia para que lhe renovasse o batismo], que lhe bastava a comunhão [eucarística] em que era admitido há tanto tempo. Quem participou da Eucaristia e pronunciou o ‘Amém’ com os demais, tendo se aproximado do altar e estendido as suas mãos para receber o alimento sagrado, e o tendo recebido e participado do corpo e sangue de Nosso Senhor, a esse eu não me atreveria a refazê-lo desde o início [administrando-lhe novamente o batismo]” (Carta ao Papa Sisto II; cf. Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 7,9,4).
NOTAS:
[18] O “pão bento” é conservado nas celebrações do Rito Bizantino, mas não nas do Rito Romano.
[19] Espero que esta afirmação da Igreja dos primeiros séculos aplaque o medo de Hernández Agüero, que propõe: “Pensemos agora: se por acaso um rato, por descuido, vier a comer uma hóstia consagrada, falando no bom sentido, poderíamos dizer então que ‘comeu Deus’?” Fiquemos apenas com a parte em que o rato não come o pão eucarístico, porque é o Corpo de Cristo e deve ser tratado como tal. Porém, o argumento do “rato comendo Deus” não parece ter debilitado a fé da Igreja primitiva na presença real.
[20] Neste antigo documento ocorre em outras passagens o uso da palavra “antítipo”: o pão do ágape, segundo a Tradição, “é uma ‘eulogia’, não uma Eucaristia, ‘antítipo’ do corpo do Senhor” (distinção mais do que importante para não confundir o ágape fraterno com a Eucaristia propriamente dita); e também: “Recebeste o cálice em nome de Deus como o ‘antítipo’ do sangue de Cristo”.
[21] O tema foi estudado detalhadamente por A. Wilmart, em seu artigo “Transfigurare”, Bulletin d’Ancienne Littérature et d’Archeologie Chrétiennes 1 (1911), pp. 285-288.
[22] Avalie-se o peso desta afirmação: o pão e o vinho eucarísticos produzem nos que os recebem: fortaleza para a santidade, remissão dos pecados, afastamento do maligno, recepção do Espírito Santo em plenitude, o sermos dignos de Cristo e a obtenção da vida eterna. Poderia tudo isto ter por causa um símbolo? É claro que não. Portanto, a fé que representa este importante documento da Antiguidade cristã é uma fé na presença real do Corpo e Sangue de Cristo nos elementos eucarísticos. Quem são os que representam esta fé hoje? E quem são aqueles que a combatem?
[23] Não se deve esquecer que a Teologia, isto é, a reflexão sobre os mistérios da fé, vai se desenvolvendo de maneira gradual: a Igreja recebe o mistério e reflete sobre ele, guiada pelo Espírito, sem eliminar os elementos que transcendem sua capacidade intelectiva – os mistérios propriamente ditos – ainda que busque obter deles um conhecimento e uma compreensão cada vez maiores. Neste processo secular, a Teologia avança também na expressão das verdades que recebeu e que transmite de geração a geração, atormentada precisamente por expressões que davam margem à dúvida ou confusão, ou somente imperfeitas em demasia. Assim ocorreu com todos os dogmas da Igreja, não apenas com a Eucaristia; pense-se, por exemplo, na evolução das expressões acerca da humanidade e divindade do Senhor: só com o passar dos séculos e após disputas que muitas vezes se tornaram violentas, a Igreja foi capaz de expressar o mistério de uma maneira mais perfeita, coisa que não exclui uma melhor expressão no futuro. Quando o Concílio Niceno-Constantinopolitano abordou a pessoa divina de Jesus e suas naturezas divina e humana, estava expressando com autoridade o que por séculos foi motivo de debates e lutas de não pequena monta, visto que as Escrituras pareciam dar razão para as duas partes em questão manter posições contrárias; e na pregação do mistério da Encarnação, aqui e acolá soavam expressões que a Igreja, iluminada pelo Espírito da Verdade, foi discernindo, esclarecendo e definindo.
[24] Estes pensamentos não são ideias minhas. Podem consultar-se os melhores estudiosos de Orígenes e os Padres do seu tempo; p.ex.: H. U. von Balthasar, “Le Mysterion de Origène”, in: Recherches de Science Religieuse 26 (1936), pp. 513-562; 27 (1937), pp. 38-68; H. de Lubac, “Histoire et Esprit. L’intelligence de l’Écriture d’après Origène” (Paris 1950), pp. 355-358; H. Crouzel, “Origène et la structure du sacrement”, in: Bulletin de Littérature Ecclésiastique 63 (1962), pp. 81-104 ; L. Lies, “Wort und Eucharistie bei Origenes” [Innsbrucker theologishe Studien, 1] (Innsbruck-Wien-München 1978), pp. 97-148 ; J. Daniélou, “Origène” (Paris 1948), p. 74. Todos estes autores são as autoridades mais importantes no estudo de Orígenes em nosso tempo.
[25] Sobre a antiga concepção de “símbolo” que não nega a realidade mas a afirma, projetando-a para uma outra realidade superior, veja-se A. von Harnack, “Lehrbuch der Dogmengeschichte”, t. 1 (Tübingen 1909), p. 476.
[26] Neste espírito, a Igreja sempre protegeu os sagrados elementos eucarísticos contra toda espécie de profanação, maltrato ou roubo. Daniel Sapia, webmaster do Site batista “Conoceréis la Verdad”, quer desacreditar este interesse da Igreja, quando cita ironicamente a preocupação de Mons. Estanislao Karlic, então presidente da Conferência Episcopal Argentina, quando tomou conhecimento do roubo cometido contra uma senhora que levava consigo a eucaristia para um doente. Comentou o webmaster batista: “O Redentor da humanidade era carregado ‘na carteira da mulher…’”.
[27] Esta última citação de Orígenes confirma o que sugerimos anteriormente: a fé na presença real de Jesus na Eucaristia não exclui um discurso mais amplo, simbólico, que podemos encontrar nos Padres (e também em pregadores católicos atuais); o texto citado, p.ex., nunca poderia ser pronunciado por um “evangélico”, pois ele não poderia dizer: “bebemos o sangue de Cristo no rito dos Sacramentos”, enquanto que um católico poderia, sem nenhum problema, pronunciar a frase inteira: “bebemos o sangue de Cristo não apenas no rito dos Sacramentos, como também quando recebemos as palavras de Cristo”.