Os “primeiros cristãos”, os “reformadores protestantes” e os “modernos evangélicos” diante das palavras de Jesus sobre a Eucaristia…
- “O Corpo e o Sangue do Senhor deveriam experimentar um contínuo aumento de massa à medida que, por tantos séculos, todos os dias, se tem ‘transubstanciado’ pão e vinho” (Jetônio, evangélico).- “Quanto ao fato de [o Corpo de Cristo] estar em um lugar [ou vários ao mesmo tempo, nas hóstias consagradas], já vos disse antes e vos intimo: não quero nada de matemáticas!” (Martinho Lutero).
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por finalidade aproximar o leitor de fala portuguesa dos textos patrísticos mais importantes, bem como dos textos de outros escritores eclesiásticos antigos, sobre o modo da presença de Jesus Cristo na Eucaristia (real, simbólico, virtual, dinâmico etc.). Foram acrescentados também os textos de alguns “reformadores” do século XVI.
Os textos de alguns “modernos evangélicos” são aqui expostos para compará-los com o pensamento da Igreja do primeiro milênio e com o pensamento dos “reformadores” protestantes.
Neste artigo não tratamos diretamente dos textos bíblicos sobre a Eucaristia. Para estes, remetemos aos artigos publicados em outros pontos deste Site. (…)
O que motivou este trabalho foi o surgimento na Internet de artigos que não apenas negam a realidade da presença de Jesus Cristo na Eucaristia, como também se atrevem a ironizá-la. Neste artigo esses autores – e também os nossos leitores – descobrirão se as suas palavras e doutrinas se assemelham àquelas dos antigos cristãos e até mesmo dos hereges de todos os tempos. É importante perceber nitidamente que a Igreja [Católica] não nasceu ontem; esquecer a História da Igreja é negar, na prática, a ação do Espírito Santo nestes últimos 2000 anos.
Com efeito, visto que estes “cristãos evangélicos” se aproximam das Escrituras “sem a mediação de tradições humanas” – segundo nos afirmam com notável insistência – o resultado inevitável é que cada geração de “evangélicos” deve recomeçar sua interpretação das Escrituras, como se eles fossem os primeiros a descobrir as dificuldades apresentadas pela Revelação e o texto bíblico, ou como se fossem os únicos capazes de interpretar as Escrituras “mediante uma exegese adequada”. Deste modo, obtém-se uma situação que, em qualquer outra área do saber humano, se tornaria a maior das negligências, isto é: os problemas, questões e soluções que foram feitos e fixados sobre o Evangelho no decorrer dos séculos tornam a ser tratados como se nunca ninguém os tivessem considerado antes[1].
Sobre a doutrina eucarística, os exemplos são numerosos. O discurso de Jesus em João 6, as palavras de instituição nos Sinóticos e nos testemunhos de Paulo, cuja misteriosa realidade impactou a Igreja de Deus desde sempre e provocou tanta aversão entre os inimigos da Igreja, são agora tratados pelos modernos opositores do mistério eucarístico como nunca ninguém tivesse lido as Escrituras antes deles. E querem desde logo que a Igreja, ou pelo menos os católicos menos instruídos, aceitem essas novas interpretações, que depois certamente terão que abandonar para aceitar as próximas novidades interpretativas do “evangélico” seguinte que decida estudar os textos bíblicos como se fosse o primeiro a concluir e se convencer de que a sua interpretação é a autêntica “exegese adequada”[2].
Diante desta realidade, pareceu-me oportuno apresentar ao leitor o que outras pessoas pensaram e ensinaram acerca da Eucaristia, pessoas estas que conheciam as Escrituras muito melhor que qualquer um destes “evangélicos”, e que foram tidos em vida – e também depois de falecidos – como autênticos discípulos de Cristo, estando muito mais próximos da Igreja Apostólica e possuindo o Espírito Santo tanto ou até mais que qualquer um dos que hoje se apresentam quase que como Sua atual personificação.
Citarei em primeiro lugar algumas expressões que o leitor pode encontrar nesses sites “evangélicos” e, a seguir, proporei os textos patrísticos e dos “reformadores” do século XVI: a contraposição de textos falará por si mesma. Apresentarei também os textos patrísticos que são extraídos desses Sites “evangélicos” como “simbólicos”, por serem lidos fora do contexto e sem o conhecimento das circunstâncias.
OS “CRISTÃOS EVANGÉLICOS”
Usarei textos do Site “evangélico” Conoceréis la Verdade, pertencente à denominação cristã evangélica batista. Há na Internet (…) outros artigos anti-eucarísticos, mas este Site batista apresenta as objeções mais comuns neste sentido. Aí é possível encontrar as seguintes doutrinas sobre a Eucaristia:
- “O Cristianismo evangélico afirma que [a Eucaristia] é apenas uma comemoração do momento em que Jesus representa o sentido de Seu sacrifício expiatório aos Seus discípulos. Por consequência, por ser uma ‘recordação’, o resultado é que o pão continua sendo pão e o vinho continua sendo vinho”[3].
- “E o comer Seu corpo físico seria canibalismo, um ato que Ele não aprovaria e muito menos recomendaria”[4].
Comentando as palavras de Jesus na Última Ceia, diz também:
- “Ninguém poderia ter interpretado literalmente essa declaração, pois Ele estava ali sentado, em seu corpo físico, e sujeitando o pão em suas mãos. É óbvio que o pão era simbólico”.
E ainda:
- “Podemos estar seguros de que nenhum dos discípulos de Cristo imaginou que o pão por Ele sustentado era Seu corpo literal. Que isto fosse o Seu corpo literal e, ao mesmo tempo, Cristo estar ali em seu corpo literal era impossível. Tal fantasia não ingressou na mente dos presentes e não foi inventada a não ser muito tempo depois. Certamente as palavras de Cristo não comunicaram tal coisa, nem temos qualquer razão para crer que os discípulos derivaram delas semelhante significado. Foi o Papa Pio III quem fez do ‘sacrifício’ da Missa um dogma oficial em 1215″[5].
Se lê também nesse Site expressões ofensivas e descaradas, como uma que afirma que a Eucaristia, como presença real de Jesus Cristo, seria parte de um “truque” para manter os católicos na Igreja, visto que fora da Igreja – conforme ensina a doutrina católica – não há celebração eucarística válida e, portanto, não há jeito de se receber o Corpo salvífico do Senhor a não ser participando das celebrações católicas: “O truque está aí”, conclui o apologista batista.
Assim, ou seja, pela doutrina eucarística, “o Catolicismo está separado, por um abismo intransponível, de todas as outras religiões e, especialmente, do Cristianismo evangélico”.
Em um artigo sobre a Ceia do Senhor assinado por Guillermo Hernández Agüero, publicado no Site “Conoceréis la Verdad”, se faz uma fugaz referência ao que “alguns Padres patrísticos” ensinam acerca do pão eucarístico. Não me causa espanto a magra apresentação “patrística” que ali se faz: uma das notas características do evangelismo fundamentalista é precisamente a atitude sectária de rejeitar na prática – e frequentemente também na teoria – a experiência e o pensamento dos cristãos, mártires e santos, pastores e simples fiéis que viveram antes de nós, sem excluir aquelas que são testemunhas valiosas da Igreja Apostólica e Pós-Apostólica.
Digo “magra apresentação patrística” porque esse artigo traz só 2 (duas) citações dos “Padres patrísticos” para ilustrar aos (desprevenidos) leitores do Site batista:
- “Podemos nos aprofundar mais nos Padres, mas nosso tema neste caso é sobre a Santa Ceia[6]. No entanto, há alguns Padres que podem nos dizer algo sobre o nosso tema[7]: ‘Cristo, tendo tomado o pão e o tendo distribuído aos seus discípulos, o tornou seu corpo, dizendo: «Este é meu corpo», isto é, «a figura do meu corpo»’ (Tertuliano, Contra Marcião 4:40). Tertuliano nos dá a entender que não ocorre uma transubstanciação com o pão; ao contrário, nos ensina que isso é símbolo. ‘O pão, depois da consagração, é digno de ser chamado «Corpo do Senhor», ainda que a natureza de pão permaneça nele’ (Crisóstomo, Epístola a Cesarium)[8]. O interessante disto tudo, é que nem nos próprios Padres existe uma clareza sobre a Santa Ceia e menos ainda sobre a transubstanciação”.
Estas duas citações de dois Padres é todo o material patrístico que pode ser encontrado nos artigos “eucarísticos” do Site “Conoceréis la Verdad”. O leitor entenderá o porquê quando terminar de ler a presente [série de] artigo[s].
Hernández Agüero, depois de tentar desvirtuar o testemunho geral dos Padres (para que prevaleça o seu próprio testemunho, como é óbvio, e que ele afirmará ser “o que ensina a Bíblia”), pretende que seus leitores saibam “algo” do que “alguns Padres podem nos dizer acerca do nosso tema”, mas suas duas citações dificilmente podem ser tidas seriamente como “algo”, bem como seus dois Padres apenas podem cumprir o requisito mínimo para que se possa dizer “alguns Padres”.
Pergunto então: pela mente destes “evangélicos”, o que terá ocorrido com o mar de citações onde podemos ver os “Padres patrísticos” ensinarem a doutrina da presença real? Não conhecem elas? Não querem conhecê-las? Não interessa para eles mostrar o que a Igreja pensava nos primeiros séculos? Pois se eles conhecem essas citações, estaríamos diante de uma desonestidade intelectual bastante grosseira. Mas, se pelo contrário, não as conhecem, por que falam do que não sabem, dando aos seus leitores uma visão totalmente falsa da realidade patrística? Bem além do palavreado de Hernández Agüero, em seu artigo o leitor não poderá encontrar virtualmente nada do que os “Padres patrísticos” ensinaram sobre esta matéria. Seja qual for a intenção desta indouta docência “evangélica”, a abandonamos ao juízo de Deus…
A seguir, percorrermos a História da Igreja em seus melhores expoentes – os Santos Padres, os grandes escritores e testemunhas da Fé antiga – de modo que o leitor poderá depois reconhecer qual é a doutrina que está separada “por um abismo intransponível” do que a Igreja ininterruptamente crê desde as suas origens[9]. Apresentaremos também o que os Pais do Protestantismo ensinavam acerca desse tema. E para o benefício do leitor, acrescentaremos ainda uma breve resenha biográfica dos autores citados, que será mais detalhada naqueles mais antigos e mais resumida à medida que formos avançando nos séculos.
NOTAS:
[0] Trabalho dedicado a Silvana, Adrián, Carlos e Pablo, José Luis e Claudio, que ou já regressaram ao lar (=a Igreja Católica), ou então já estão a caminho… Perseverança! OBS.: [A] Os comentários que aqui são feitos têm por finalidade esclarecer o contexto histórico das citações ou ressaltar algum aspecto importante. As citações bíblicas que aparecem nos textos entre colchetes ou parêntesis são sempre acréscimos; o que segue entre colchetes nos textos patrísticos ou de outros autores são acréscimos feitos para se compreender o contexto. [B] O artigo [completo] contém textos de 80 autores patrísticos e ainda alguns outros. (…)
[1] Devemos, no entanto, matizar esta afirmação, já que na verdade ninguém consegue se libertar de toda espécie de tradição na hora de ler as Escrituras, de modo que até os “evangélicos” “mais bíblicos” receberam, juntamente com as Escrituras, uma certa chave de interpretação. Tendo deixado isto bem claro, também é correto o que afirmamos, a saber: as correntes “evangélicas” fundamentalistas pretendem fazer uma leitura das Escrituras ignorando tudo o que os outros cristãos antes deles pensaram sobre as mesmas; costumam a chamar isso de “leitura sem preconceitos”.
[2] A expressão “exegese adequada” aplicada aos textos eucarísticos encontra-se pelo menos no Site “Conoceréis la Verdad”, onde se afirma, no artigo “A Teoria da Transubstanciação”, que o crente deveria rejeitar a interpretação da Igreja Católica baseado no “senso comum” e numa “exegese adequada”. Resta averiguar com base em quê se poderia chamar “adequada” a exegese desse Site e “não adequada” ou “falta de senso comum” à exegese de Justino [de Roma] e Inácio de Antioquia (séculos I e II), ou a de Agostinho [de Hipona] e João Crisóstomo (séculos IV e V), ou a de Tomás de Aquinho (século XIII), para mencionar apenas alguns.
[3] O autor dessas linhas se apresenta tacitamente como o portavoz do Cristianismo evangélico… Pode então ser comparado, por exemplo, com o que Lutero pensava sobre este tema (ver mais adiante, nesta série de artigos).
[4] As acusações de canibalismo, repetidas aqui pelo “evangélico” batista, não são senão repetição das mesmas acusações feitas pelos pagãos anticristãos dos dois primeiros séculos. Uma coincidência que não deixa de causar surpresa!
[5] A presença real de Cristo na Eucaristia e o aspecto sacrificial da celebração, ainda que intimamente ligadas, são dois aspectos diferentes do mistério eucarístico, que o autor batista aqui confunde. Quão errônea é a afirmação segundo a qual a interpretação realista das palavras da Última Ceia são tão tardias quanto o século XIII poder-se-á comprovar ao longo [desta série de artigos]. Além disso, o que é de 1215 (ou mais exatamente 1202) é o surgimento da palavra “transubstanciação” em um documento da Igreja. E, finalmente, o Papa Pio III reinou em 1503 e não em 1215. Logo, o Papa em questão é, na verdade, Inocêncio III.
[6] O que até aqui Hernández Agüere fez em seu artigo não foi “aprofundar” nos Padres, mas tentar desautorizá-los por suas supostas “contradições”.
[7] Há “alguns Padres que podem nos dizer algo sobre o nosso tema” – diz Hernández, citando [só] DOIS Padres. Espero que após ler este artigo, o sr. Hernández Agüero possa encontrar mais alguns que possam nos “dizer algo” sobre o nosso tema.
[8] Retornaremos a estas citações de Tertuliano posteriormente.
[9] Uma coleção mais ampla de textos em espanhol encontramos em “A Presença Real de Cristo na Eucaristia”, de José A. de Aldama, Edicep, Valência, 1993; empregarei este livro em muitas citações. [Em inglês, temos] também “The Faith of the Early Fathers”, em 3 volumes, de William A. Jurgens. A melhor coleção em espanhol é, sem dúvida, “Textos Eucarísticos Primitivos”, do Pe. Jesús Solano (sj), em 2 volumes. Uma coleção mais simples, porém com muitíssimo material apologético, temos em “Bíblia y Eucaristia”, de Ernesto Bravo (sj). O fato totalmente indiscutível é que qualquer cristão que queira saber o que ensinaram antes de nós todos os melhores líderes do Cristianismo primitivo acerca da presença de Cristo na Eucaristia terá que recorrer à literatura católica. Por que será?