“Amicus fidelis protectio fortis; qui autem invenit illum, invenit thesaurum” (Eclo 6,14) – um amigo fiel é uma poderosa proteção: quem o achou, descobriu um tesouro. Como é importante, para o cristão, ter amizades puras e sinceras! Sabemos que com Deus jamais estamos sozinhos, e encontramos nos amigos uma real prova do amor de Deus por nós, que muitas vezes nos sustenta através destas pessoas. Com estes amigos, se os corações estão unidos num mesmo propósito, caminhamos juntos rumo aos verdadeiros bens, animando-nos mutuamente a conservar-nos firmes na estrada, como viajantes que, passando por caminhos difíceis, sustentam-se uns nos outros para caminhar com mais segurança.
A amizade pode ser definida como a espécie de amor na qual se comunica algum bem. Nem todo amor é amizade, pois muitas vezes nosso amor por outrem não é recíproco ou a afeição que provém de ambas as partes não é conhecida, pela falta de comunicação entre elas. Assim, este amor mútuo entre duas almas é sustentado pelo que se comunica de uma a outra alma.
As descrições de amizade feitas pelos Santos, tanto os que aqui serão citados como outros tantos Santos da Igreja, não poderão ser entendidas senão com um profundo sentido cristão. A beleza de seus conselhos será, certamente, muito apreciada pelos que querem manter-se retos no caminho da santidade – pois também das relações que mantemos com o próximo depende nossa santificação. Entretanto, para os que buscam nos prazeres passageiros seu consolo, suas palavras soarão duras, frias e amargas, pois estão muito longe de um querer terreno; pelo contrário, as palavras dos Santos inspiram a busca da perfeição e das coisas do alto.
A grande diversidade de amizades que temos existe devido à grande quantidade de bens distintos que podem ser mutuamente comunicados. De acordo com a veracidade e perfeição destes bens é que sabemos a qualidade da amizade, pois se estes são verdadeiros, verdadeira a amizade; se falsos e vãos, igualmente será a amizade vã e falsa. E, para podermos distinguir àquilo de valor do que é vão, basta reparar no que produz o amor que temos ao amigo: “O amor do bem conveniente aperfeiçoa o amante; ao passo que o amor inconveniente ao amante lesa-o e torna-o pior” (AQUINO, Santo Tomás: Suma Teológica – Primeira Parte da Segunda Parte. Porto Alegre: Sulina, 1980. Q. XXVIII).
São Francisco de Sales, Bispo e Doutor da Igreja, compara a amizade e bens por ela comunicados ao mel. Diz haver uma espécie muito doce de mel, que, porém, por ser proveniente de flores venenosas, deixa doente e louco a quem o come. Esta seria a imagem de uma amizade falsa e má que, apesar de agradar-nos, fundamenta-se na comunicação de falsos bens e favorece os vícios: “A amizade mundana traz uma influência de palavras doces, langorosas, apaixonadas e cheias de adulação pela beleza, graças e vãs qualidades físicas. [...] Causa um desvio e desvairamento de espírito que faz titubear a pessoa na castidade e na devoção, levando-a a olhares afetados, lânguidos e imoderados, a carícias sensuais, a suspiros desordenados, a pequenas queixas de não ser correspondida, a certas meiguices levianas, afetadas e repetidas, a galantarias e beijos e a outras particularidades e fervores inconvenientes, presságios certos e infalíveis de iminente ruína da honestidade” (SALES, São Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 264 e 265). É, na verdade, um egoísmo disfarçado, cujo interesse está apenas no prazer que tem junto do amigo: mascara-se com a beleza da amizade para melhor poder gozar dos privilégios e mimos ganhos com a amizade vã.
A descrição de falsa amizade assusta, mas sabemos que este tipo de relação é muito comum, e conhecida da maior parte de nós, até daqueles que não gostariam de tê-las, mas acabam deparando-se com elas sem as terem procurado. Ou mesmo, quantas vezes não fundamos nossa amizade em vãos elogios, que em nada nos enriquecem, mas apenas servem para robustecer nosso orgulho? Quantos não são os que se deixam levar num jogo de palavras doces e apaixonadas, mas que sabem ser irresponsáveis? Estes tipos de amizade“convertem-se e rematam-se em palavras e pedidos carnais e torpes; ou, no caso de negativa, em injúrias, calúnias, imposturas, tristezas, confusões e ciúmes, que bem depressa vão parar em brutalidades e desvarios”(SALES, São Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 266). Estas não são raras amizades pelas quais passamos e, se não quisermos o amargor que este mel venenoso deixa na boca, cabe a nós não permitir que estas relações se construam ou sejam mantidas. Se a amizade não se fundamenta na honestidade, no respeito, na mútua comunicação de bens verdadeiros, resultado de um objetivo conjunto da busca pelo Bem, jamais será verdadeira amizade, que enriquece aos amigos que se amam.
Se não é possível que uma amizade seja frutífera e se suas bases são vãs, não há razão para fazer caso do que é tão prejudicial a ambos e tão contrário ao amor de Deus. “Ah! me dirás tu, mas não será ingratidão romper tão desapiedadamente com uma amizade? Oh! quão ditosa é a ingratidão que nos torna agradáveis a Deus!” (SALES, São Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 270). Deixar que esta falsa relação se extingua não será apenas um bem para si, como para o outro que igualmente perde com ela e cai em tortuosos caminhos pela falsa amizade construída.
Em sua carta aos Filipenses, São Paulo diz trazer no coração aqueles que o ajudaram em suas necessidades (Cf. Fl 1,7). Assim, ter o amigo no coração é o modo como o possuímos. Segundo o Doutor Angélico, Santo Tomás de Aquino, “é próprio dos amigos quererem as mesmas coisas, alegrarem-se e entristecerem-se com elas. [...] E, enquanto quer e age por causa do amigo como por causa de si mesmo, quase considerando-o como identificado consigo, desse modo o amado está no amante” (AQUINO, Santo Tomás: Suma Teológica – Primeira Parte da Segunda Parte. Porto Alegre: Sulina, 1980. p. 1234, Q. XXVIII).
São Francisco de Sales também dá à verdadeira amizade seu devido lugar. Diz ele que devemos ter grande amor e caridade cristã para com todos, mas apenas travar amizade com aqueles cujo convívio seja proveitoso, tanto para si quanto para o amigo a quem se ama. Isso, longe de ser uma relação de interesses, como nas falsas amizades já descritas, é a afeição sincera e honesta que devemos manter pelo outro ao ter comunicados bens verdadeiros, os quais precisamos almejar. “Ah! quanto é bom amar já na terra o que se amará no céu e aprender a amar aqui estas coisas como as amaremos eternamente na vida futura. Não falo, pois, aqui simplesmente do amor cristão que devemos ter a nosso próximo, todo e qualquer que seja, mas aludo à amizade espiritual, pela qual duas, três ou mais pessoas se comunicam mutuamente as suas devoções, bons desejos e resoluções por amor de Deus, tornando-se um só coração e uma só alma” (SALES, São Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 260). Em contraste com as vãs relações, “a amizade santa tem uma linguagem simples, singela e sincera e só louva as virtudes e dons de Deus, único fundamento em que se apóia” (SALES, São Francisco: Filotéia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 265).
Algumas das verdadeiras amizades que podemos ter são relações de ciências, honestas e louváveis, ou amizades fundamentadas nas virtudes, e outras que não podemos negligenciar, que nos surgem devido aos nossos deveres ou que a natureza nos impõe, que são os colegas de trabalho, estudos, vizinhos e familiares; com estes podemos manter boas relações e, com um pouco de esforço e afeição mútua, fazer frutificar belas amizades com estes que nos acompanham no dia-a-dia. Outra espécie de amizade é a matrimonial, que longe de ser aquela falsa amizade baseada unicamente nos desejos carnais, é verdadeira e santa amizade, pela qual se comunica a vida, os bens, as afeições e indissolúvel fidelidade. Há, ainda, as que São Francisco de Sales classifica como preciosíssimas, cujo objeto da comunicação mútua e doce é a religião, a devoção e o amor de Deus, e que, com laço tão firme que une os amigos, em Deus eternamente durarão.
Se o amor apaixonado tende a enfraquecer, esta amizade em Deus é uma afeição constante, que, erguida através do amor a Sua Majestade e sustentada pelas virtudes, é tranqüila e moderada. Há uma confiança recíproca, que provém antes da confiança no Senhor, que faz compartilhar projetos, pensamentos e desejos de perfeição e procurar ajudar e corrigir os defeitos do outro quanto se pode. Alegra-se pelo bem do amigo, inclusive o obtido por outras amizades, pois não há espaço para ciúmes ou inveja.
Amar o amigo não significa amar suas imperfeições, nem querer que seus próprios defeitos sejam comunicados e louvados pelos outros, uma vez que a amizade é uma associação do bem, não do mal. Aquele que ama, inclusive, não desejará enganar o amigo, seja com palavras ou comportamentos dissimulados e mentirosos, seja pela omissão, pois não há amizade sincera e cristã sem a unidade da Verdade e do Amor. Antes, quererá comunicar-lhe sempre a verdade, por não existir coisa boa fora dela. Isso se aplica, inclusive, nas muitas vezes que precisamos ser duros com os erros daqueles que amamos, pois melhor é causar-lhe alguma dor passageira pelo conhecimento da Verdade que deixar que se afunde em seus erros e pecados por medo de perder o amigo. Analisando a situação corretamente, já perde o amigo aquele que diz amá-lo, porém permanece na mentira, pois falso é o amor, e, portanto, também falsa a amizade, que não se constrói na verdade: jamais existirá verdadeiro amor na mentira. E se a amizade baseia-se também no desejo de ver o amigo gozando do Sumo Bem e feliz, então a Verdade será indispensável: “Muitas vezes ouvimos a voz daqueles que se dizem felizes, porque descansam em leito de rosas e flores variadas. Ou ainda, deleitam-se com os mais variados perfumes. Mas existe algo mais perfumado, mais agradável que o sopro da Verdade? E duvidaríamos nós de nos dizer felizes quando a aspiramos?” (AGOSTINHO, Santo: O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995. p. 120).
Os amigos, amando-se deveras, auxiliam-se mutuamente na correção das imperfeições. “O amor de amizade quer o bem do amigo, e por isso quando é intenso leva a nos insurgir contra tudo que repugna ao bem do amigo” (AQUINO, Santo Tomás: Suma Teológica – Primeira Parte da Segunda Parte. Porto Alegre: Sulina, 1980. p. 1237, Q. XXVIII). Assumindo isso em nossas vidas, não deixarão de ocorrer as muitas vezes que precisaremos ser inconvenientes perante o amigo, ou mesmo aos olhos da sociedade, por não permitir que um erro seja difundido, em especial contra a fé. Mas corriqueiras acusações de julgamento não devem nos afligir, pois sabemos que acusar a verdade não é julgar; é sim correção fraterna, estimulada pela Santa Madre Igreja, e dever de todos nós. E aqui a máxima de que devemos amar o pecador, mas jamais seu pecado, encontra seu pleno sentido. Indo além, poderíamos afirmar que quem ama o pecado daquele a quem diz amar, ou omite a negação deste pecado se está a seu alcance fazer algo para que o amigo se emende, não o ama com sinceridade, mas apenas mantém, por conveniência, esta falsa relação de amizade. O verdadeiro amigo saberá reconhecer em nosso esforço por corrigir-lhe, ainda que muitas vezes não concorde com a correção, uma manifestação sincera de amor, que se preocupa com o bem estar do outro e busca levá-lo sempre mais às coisas boas e belas.
É importante, portanto, não confundir a amizade ímpia, da qual inicialmente foi tratada, com os pecados que certamente cometerão os amigos vez ou outra, mas que não são o objeto da amizade. “Não devemos privar dos benefícios da amizade aos amigos que pecam, enquanto tivermos esperança de virem a emendar-se, como diz o Filósofo. Antes, devemos auxilia-los para recuperarem a virtude, mais do que ajudaríamos a recuperar o dinheiro que tivesse perdido. [...] Amamos aos pecadores com caridade, não por querermos o que eles querem ou nos alegrarmos com o que eles se alegram. Mas para os levarmos a querer o que nós queremos, e alegrarem-se com o que nos alegramos. Donde a dizer a Escritura: Voltar-se-ão para ti e tu não te voltarás para eles (Jer 15,19)” (AQUINO, Santo Tomás: Suma Teológica – Segunda Parte da Segunda Parte. Porto Alegre: Sulina, 1980. p. 2237, Q. XXV). E, através destes amigos que ajudamos, podemos tornar real nossa missão como discípulos de Cristo, já que a todos nós foi dado o dever de levar o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo ao mundo todo. Uma só alma que se volta ao Pai, como a ovelha perdida de um rebanho, já é motivo de festa nos Céus. Se colocarmos sentido sobrenatural em todas nossas relações de amizade, ao menos um pouco de Deus nossos amigos poderão conhecer através de nós: por nossa amizade sincera, gestos de amor desinteressados, nosso testemunho de vida.
“Para que este nosso mundo caminhe por um trilho cristão - o único que vale a pena -, temos de viver uma leal amizade com os homens, baseada numa prévia leal amizade com Deus” (ESCRIVÁ, São Josemaria: Forja. São Paulo: Quadrante, 2005. p. 288, Ponto 943). A amizade, principalmente na vida secular, coopera na formação de uma sociedade mais cristã, se traz consigo os valores profundamente católicos que lhe são próprios: o bem mútuo por amor de Cristo, a busca das virtudes, a fidelidade, a confiança, a verdadeira paz. É comum ouvir falar em fraternidade, mas necessário faz que não se tire dela o seu sentido cristão: amamos nossos irmãos por amor a Deus. Se Cristo amou-nos tanto, a ponto de doar sua vida por nós, é este amor que devemos ter como modelo, inclusive na amizade: “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15,13). É no serviço e no testemunho de cada dia que provamos nosso amor aos amigos.
As amizades humanas são reflexo da amizade que devemos ter com Nosso Senhor: esta amizade é a caridade, pela qual Ele nos comunica a sua felicidade. Toda e qualquer relação de afeto que construirmos deve levar em conta os dois mandamentos do Senhor: amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças e ao teu próximo como a ti mesmo (Cf. Mc 12,29-31). Se as bases de nosso amor ao próximo, e aos que são mais chegados, os amigos, são Jesus Cristo, então este amor nos servirá para melhor viver ainda aqui neste mundo e para ganhar os Céus. “Sem amigos não podes viver e se não for Jesus teu amigo acima de todos, estarás mui triste e desconsolado. [...] Antes ter o mundo todo por adversário, que ofender Jesus. Acima de todos os teus amigos seja, pois, Jesus amado de modo especial” (KEMPIS, Tomás: Imitação de Cristo. São Paulo: Círculo do Livro. p. 68).
Dito tudo isto, para os cristãos que se decidirem pela vida de santidade e por Deus construírem suas amizades e, através dos amigos, quiserem aproximar-se mais de Nosso Senhor, as palavras do Eclesiástico encontrarão o devido sentido em suas vidas: “Um amigo fiel é uma poderosa proteção: quem o achou, descobriu um tesouro. Nada é comparável a um amigo fiel, o ouro e a prata não merecem ser postos em paralelo com a sinceridade de sua fé. Um amigo fiel é um remédio de vida e imortalidade; quem teme ao Senhor, achará esse amigo” (Eclo 6,14-16).