Por que visões utópicas e irrealistas são tão atraentes e inspiradoras para muitas pessoas ao passo que a simples promessa de liberdade — o que de fato permitiria que a sociedade se tornasse muito mais aprimorada — é tão frequentemente desconsiderada?
Um dos mais prolíficos defensores da liberdade no século XX, o escritor americano Leonard Read, tentou responder a esta questão.
Em seu livro Let Freedom Reign (Deixe a Liberdade Reinar), Read argumenta que a incapacidade das ideias pró-liberdade de arregimentar mais seguidores do que o estatismo utópico decorre em grande medida do fato de que são os fins idealizados, e não os meios considerados, o que frequentemente motiva as pessoas. Ao contrário das visões utópicas, a filosofia da liberdade reconhece que um sistema de livre mercado é um "servo amoral" que não irá gerar apenas resultados perfeitos e inquestionáveis. Já o estatismo utópico, ao contrário, promete um mundo perfeito, sem dificuldades, sem a necessidade de esforço, e sem máculas. Por essa razão, as ideias pró-liberdade já lidam desde o início com uma desvantagem em termos motivacionais.
Uma boa ilustração da "vantagem" da utopia estatista sobre a liberdade é a afirmação utopista de que tal arranjo irá gerar uma igualdade de resultados (igualdade essa que, supõe-se, irá ocorrer em um alto nível de prosperidade). Esta motivação, por sua vez, leva à criação de todo um conjunto de justificativas para se restringir cada vez mais a liberdade. Mas a realidade, ao contrário da quimera estatista, é que algumas formas dedesigualdade são as principais geradoras de surpreendentes benefícios sociais. Apenas pense nos maciços ganhos oriundos da divisão do trabalho, em que a especialização entre as pessoas com capacidades distintas e desiguais — tudo coordenado por meio de arranjos voluntários de mercado — gera um enorme aumento da produtividade e da prosperidade.
Em vez de deplorar toda e qualquer desigualdade de resultados, seria muito mais sensato dizer que, enquanto houver liberdade, "a desigualdade irá existir, felizmente!". Como disse o próprio Read,
Liberdade e igualdade são mutuamente antagônicas. A ideia de igualdade se baseia na antítese da liberdade: coerção pura. É impossível ser livre quando a igualdade é politicamente manipulada.
Não são as nossas semelhanças, mas sim nossas diferenças que dão origem à divisão do trabalho e aos complexos processos de produção e comercialização que ocorrem no mercado. É vantajoso nos especializarmos e comercializarmos com outros especialistas. Ao servirmos aos outros — e aos nos tornarmos cada vez mais capacitados e aprimorados (desiguais) no processo —, estamos servindo aos nossos próprios interesses.
A desigualdade entre indivíduos é um fato inquestionável, e a liberdade de incorrer em arranjos voluntários permite aos indivíduos de uma sociedade alcançar de maneira mais efetiva seus desejos. Justamente por isso, atribuir resultados indesejados — tais como todos os possíveis desvios em relação a uma igualdade idealizada — a arranjos voluntários denota uma incompreensão da realidade. Estes possíveis desvios ocorrem justamente porque vivemos em uma realidade que os utopistas simplesmente não aceitam.
E a realidade é que vivemos em um mundo de escassez. Se vivêssemos em um mundo de plena abundância, haveria de tudo para todos. Mas como não vivemos no Jardim do Éden, temos de aprender a nos virar da melhor maneira possível. A divisão do trabalho e o sistema de mercado são uma das melhores maneiras de sobrepujar os problemas gerados pela escassez. Por isso, restringir arranjos voluntários — exceto aqueles que envolvam fraude e violência contra inocentes — é uma atitude incapaz de solucionar os reais problemas gerados pelo incontornável fato de que vivemos em um mundo de escassez. Quaisquer tentativas de se restringir arranjos voluntários irão apenas afetar a capacidade do mercado de coordenar os planos produtivos de pessoas que possuem habilidades profundamente distintas. Esta tentativa equivocada de se alcançar uma utopia impraticável irá apenas causar estragos.
Os defensores da liberdade têm de lidar com o fato de que os mercados são servos amorais que capacitam as pessoas a fazer aquilo que mais querem. Não se deve crer de maneira inabalável que os mercados irão efetuar apenas coisas boas e inspiradoras. No entanto, vale enfatizar que, sempre que eles fizerem coisas ruins, eles estarão apenas refletindo os desejos de indivíduos. Com efeito, se o ser humano fosse completamente "reformado", os mercados não teriam como fazer mal nenhum. Mas essa é a própria definição da utopia. "Reformar" o ser humano de maneira coerciva, por meio de decretos, felizmente é impossível e ainda assim não eliminaria as causas de tais malefícios. Ademais, as restrições aos mercados que ocorreriam neste processo iriam justamente abolir este servo amoral que nos permite alcançar um arranjo muito mais benéfico e satisfatório do que aquele alcançável por quaisquer outros meios.
Há uma distinção crucial entre os fins utópicos e "inspiradores" e os meios que tais fins necessariamente envolvem. Os meios coletivistas que as utopias requerem dependem da coerção; por isso, são imorais. Consequentemente, é impossível que tais utopias sejam moralmente defensáveis.
Como escreveu Read,
Examine cuidadosamente os meios empregados em termos de certo e errado, e a moralidade dos fins revelar-se-á por si só.
Por mais sublimes e grandiosos que sejam os objetivos, se os meios empregados são depravados, o resultado final necessariamente será um reflexo dessa depravação.
Os meios utilizados para se alcançar objetivos individualistas servem como um poderoso impulso rumo ao florescimento material, intelectual, moral e espiritual do indivíduo. Aqueles que formam a sociedade são os beneficiários secundários. Se vamos nos ajudar uns aos outros, vamos primeiro nos ajudar a nós mesmos utilizando aqueles meios que se qualificam como moralmente corretos.
Fins visionários ou utópicos inspiram algumas pessoas a implantar fracassos estatizantes, sacrificando a liberdade em prol de inúmeras "boas causas". Concentrar-se na moralidade dos meios (voluntários versus coercivos) e não nos objetivos declarados tem de ser a postura correta. Uma vez que os meios utilizados pelas "soluções" estatizantes são imorais, tais sistemas são moralmente inferiores a arranjos voluntários.
A liberdade produz arranjos voluntários que evoluem e prosperam tão logo os direitos do indivíduo sobre si próprio e sobre sua propriedade são protegidos. A liberdade fornece os meios para se alcançar tudo que há de melhor e que é realmente alcançável em uma sociedade. À medida que prosperamos, cada um de nós tem mais a oferecer aos outros, sem a necessidade de atos imorais. E tudo aquilo que a liberdade historicamente já alcançou — que está muito além da capacidade de visualização de qualquer pessoa, e que abre um amplo leque de possibilidades ainda desconhecidas — nos fornece amplos motivos para confiarmos nela em detrimento de todas as alternativas coercivas.
Defender a liberdade é uma atitude que requer a capacidade de "ver" todo aquele bem despercebido (e frequentemente inimaginável) que só pode ser alcançado quando se libera a capacidade das pessoas de criar e inovar de maneira pacífica. É necessário também ser capaz de "ver", entender e articular os inerentes fracassos dos meios coercivos e imorais empregados com o intuito de se alcançar objetivos utópicos, os quais são inalcançáveis, não obstante o uso de tais meios. Com esta visão, a liberdade pode ser reconhecida e entendida como algo muito mais inspirador do que qualquer alternativa coerciva e estatizante.
Hans F. Sennholz (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos. Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou. Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997. Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.