O vocábulo árabe kalãm significa literalmente discurso, mas também pode descrever um certo tipo de teologia filosófica — o tipo que contém argumentos de que o mundo não pode ser infinitamente antigo e, portanto, tem de ter sido criado por Deus. Esse tipo de argumento tem tido um apelo amplo e duradouro tanto entre cristãos como entre muçulmanos. Sua forma é simples e direta.
- Seja o que for que venha a existir, precisa de uma causa para que possa existir.
- O universo começou a existir.
- Portanto, o universo tem uma causa.
Vejamos a primeira premissa. (A maioria das pessoas consideraria essa afirmação não apenas como provavelmente verdadeira, mas como certa e obviamente verdadeira.)
E a segunda premissa? É verdadeira? O universo — a coleção de todas as coisas restritas ao espaço e ao tempo—teria começado a existir num determinado momento? Essa premissa recentemente recebeu um apoio poderoso da ciência natural— a partir da chamada cosmologia do Big-Bang. Também há argumentos filosóficos a favor dela. Vejamos quais.
Será que uma tarefa infinita pode ser realizada ou completada? Se, para alcançar determinado fim, etapas infinitas tivessem de precedê-lo, será que poderemos algum dia alcançar o fim? É claro que não — nem mesmo em um tempo infinito. Isso porque o tempo infinito não teria fim assim como as etapas. Em outras palavras, nunca alcançaríamos o final da sequência. A tarefa nunca poderia e nunca seria completada. Entretanto, o que podemos dizer do passo imediatamente anterior ao fim? Será que poderíamos alcançá-lo? Bem, se a tarefa é realmente infinita, então uma infinidade de etapas também tem de preceder o penúltimo passo. Portanto, a etapa que antecede à derradeira também nunca poderia ser alcançada.
E o mesmo aconteceria com a etapa anterior a ela. De fato, nenhuma das etapas na sequência poderia ser alcançada, porque um número infinito de etapas deveria preceder cada uma; sempre será necessário passar por uma de cada vez antes de chegarmos na etapa desejada. O problema acontece quando supomos que uma sequência infinita pode alcançar, por uma sucessão temporal, qualquer ponto.
Se o universo nunca teve início, ele sempre teria existido. Então, seria infinitamente antigo. Mas, para isto ser verdade, então uma quantidade infinita de tempo teria de ter passado antes do dia de hoje, por exemplo. E um número infinito de dias deveriam ter sido completados — um dia sucedendo o anterior, um milésimo de tempo sendo acrescentado ao que veio antes dele — para que o dia atual pudesse acontecer. Entretanto, isso criaria um paralelo idêntico ao problema da tarefa infinita, pois, se o dia de hoje foi alcançado, então uma sequência infinita de eventos históricos o teria levado a este ponto no presente.
Isto significa que, se a tarefa foi completada até este ponto, em qualquer instante no presente, o todo do passado precisa ter acontecido. Contudo, uma sequência infinita de etapas nunca poderia ter alcançado este momento presente ou qualquer outro antes dele. Logo, ou o dia atual não foi alcançado, ou o processo para que isso acontecesse não foi infinito. Além disso, obviamente o dia de hoje está acontecendo. Então, o processo para alcançá-lo não foi infinito. Em outras palavras, o universo teve início, portanto ele tem uma causa para que pudesse vir a existir, ou seja, um Criador.
Primeira questão: Os cristãos acreditam que irão viver para sempre com Deus. Logo, eles creem num futuro infinito. Por que então o passado também não pode ser sem fim?
Resposta: Esse questionamento responde a si próprio. Os cristãos acreditam que sua vida com Deus nunca irá terminar. Isso significa que jamais formarão uma série infinita completa, ou seja, um futuro infinito é potencialmente—mas nunca realmente—infinito. Isso significa que, embora o futuro nunca deixe de expandir-se e aumentar, ainda assim sua extensão real sempre será finita. Entretanto, isso só pode ser verdade se toda a realidade criada teve início num determinado momento.
Segunda questão: Como podemos saber que a Causa geradora do universo ainda existe? Talvez, ela tenha dado início ao universo e deixado de existir.
Resposta: Lembremos que buscamos uma Causa para a existência espaço-temporal. Essa Causa criou todo o universo de espaço e tempo, e estes, em si mesmos, têm de ser parte dessa criação. Portanto, a Causa não pode ser outro ser espaço-temporal. (Se assim fosse, todos os problemas a respeito da duração infinita surgiriam novamente.) Ela tem de estar, de alguma maneira, fora dos limites e das limitações do espaço e do tempo.
É difícil compreender como um Ser assim poderia deixar de existir. Sabemos como um ser pertencente ao universo deixa de existir. Ele chega a um instante no tempo em que é fatalmente afetado por algum agente externo. Entretanto, essa realidade é apropriada para nós e para todos os seres que estão limitados ao tempo e ao espaço. Um Ser que não esteja limitado não pode vir a ser ou deixar de ser. Ele já existia, ainda existe, e tem de existir eternamente.
Terceira questão: Mas essa Causa seria Deus, um Ser, e não simplesmente uma coisa?
Resposta: Suponhamos que a causa do universo tenha existido eternamente e que não fosse pessoal; que ela teria dado origem ao universo não por escolha própria, mas simplesmente por existir. Nesse caso, seria difícil imaginar um universo que não fosse infinitamente antigo, uma vez que todas as condições necessárias para a existência dele existiriam por toda a eternidade. Entretanto, de acordo com o argumento kalãm, o universo não pode ser infinitamente antigo. Portanto, a hipótese de uma causa eterna impessoal parece levar a uma contradição.
Então, qual a solução para a questão? Um universo que tenha surgido como resultado de uma escolha pessoal e totalmente livre. Uma Causa eterna poderia ter dado início a um efeito temporalmente limitado. É claro que o argumento kalãm não encerra tudo que os cristãos acreditam a respeito de Deus. Mas reforça a ideia central da crença cristã em Deus: a de que o universo não é eterno e que teve começo; que existe um Criador do céu, da terra e de tudo mais. O argumento também nos ajuda a contestar a teoria que a maioria dos ateus deseja manter: a de que o universo surgiu a partir de um todo de matéria auto-sustentada em mudança infinita, em um tempo eterno.