Francis van Bossuit, Suzana e os juízes anciãos (1700)
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Parece que o juiz pode licitamente relaxar a pena:
1. Com efeito, está dito na Carta de Tiago: “Haverá juízo sem misericórdia para quem não fez misericórdia” (2, 13). Ora, ninguém é punido por não ter feito o que não podia licitamente fazer. Logo, qualquer juiz pode fazer misericórdia, relaxando a pena.
2. Além disso, o juízo humano deve imitar o divino. Ora, Deus relaxa a pena a quem se arrepende, pois “não quer a morte do pecador”, como diz a Escritura ((Ez 18, 23). Logo, também o homem, na função de juiz, pode relaxar a pena àquele que se arrepende.
3. Ademais, é lícito fazer o que é útil a alguém e não prejudica a ninguém. Ora, absolver da pena o réu lhe é vantajoso e não faz mal a ninguém. Logo, o juiz pode licitamente fazê-lo.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, prescreve-se no livro do Deuteronômio, a respeito de quem leva outros à idolatria: “Teu olho será sem piedade para ele, não o pouparás, não o esconderás, mas o matarás sem tardar” (13, 8-9). E a propósito do homicida: “Morrerá. Não terás dó dele” (19, 12-13).
Do que se estabeleceu, se evidenciam dois dados a observar na conduta do juiz. Primeiro, ele deve se pronunciar entre um acusador e um réu. Segundo, ele não profere a sentença de sua própria autoridade, mas como investido da autoridade pública. Logo, uma dupla razão interdiz ao juiz absolver da pena o réu. A primeira vem do acusador, que tem, às vezes, o direito de exigir a punição do réu, por exemplo, pelo dano que lhe causou. Então, nenhum juiz pode relaxar essa pena, pois todo juiz deve assegurar a cada um o seu direito.
A outra razão diz respeito ao Estado, em nome do qual se exerce a justiça e cujo bem exige que os malfeitores sejam punidos. Contudo, há uma diferença entre os juízes inferiores e o juiz supremo, o príncipe, investido da plenitude do poder público. Pois o juiz inferior não tem o poder de absolver da pena o réu, indo de encontro às leis a ele impostas pelo superior. Nesse sentido, a propósito da palavra do Evangelho de João: “Não terias sobre mim poder algum” (19, 11), comenta gostinho: “Deus dera a Pilatos um poder subordinado ao de César, de modo que, de maneira alguma estava livre de absolver o acusado”. O príncipe, porém, investido dos plenos poderes no Estado, pode licitamente absolver o réu, contanto que a vítima da injustiça queira perdoar, e ele julgue que daí não resultará qualquer dano para a utilidade pública.
Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. O juiz pode exercer sua clemência nas causas deixadas ao seu arbítrio. Nesse caso, “é próprio do homem de bem procurar suavizar os castigos”, segundo o parecer do Filósofo. Mas, nas matérias determinadas pela lei divina ou humana, não lhe cabe fazer misericórdia.
2. Deus tem o supremo poder de julgar, e a ele compete julgar todo pecado cometido contra qualquer que seja. Por isso pode perdoar a pena, tanto mais que a pena é devida ao pecado principalmente porque vai contra Deus. Contudo, só perdoa a pena tendo em conta o que convém à sua bondade, que é a fonte de todas as leis.
3. O juiz que perdoasse a pena de maneira desordenada causaria dano à comunidade, à qual é proveitoso que se punam os crimes, a fim de evitar os pecados. Por isso, no livro do Deuteronômio, depois de fixar a pena do sedutor, se acrescenta: “Assim, todo Israel, ao sabê-lo, temerá e já não tornará a fazer tal maldade em teu meio” (13, 11). O perdão indevido prejudicaria também a vítima da injustiça, pois com o castigo infligido a seu agressor, recebe uma compensação, consistindo em certa reparação de sua honra.
Suma Teológica II-II, q.67, a.4