Todo o homem, por mais santo que seja, tem imperfeições, visto que foi feito do nada; de forma que não prejudicamos aos santos, se, ao narrarmos as suas virtudes, contamos também os seus pecados e imperfeições . Aqueles que ocultam os defeitos e faltas dos santos , com o pretexto de os honrar, fazem mal, porque não contam o princípio da sua conversão, com medo que diminua a estima em que temos a sua santidade. Todos os grandes santos, escrevendo as vidas de outros santos, narraram sempre as faltas e imperfeições, pensando, e com razão, dar nisto tanta glória a Deus e aos seus mesmos santos como narrando as suas virtudes.
O grande São Jerônimo, escrevendo em epitáfio, os louvores e as virtudes de Santa Paula, explica claramente as suas imperfeições, condenando com toda a lisura muitas das suas ações e sendo sempre claro e sincero ao escrever as suas virtudes e defeitos, pois sabia que uma coisa lhe era tão útil como a outra; porque vendo os defeitos dos santos e a sua vida, bastá-nos, para conhecermos a vontade de Deus, que lhes perdoou; e nos ensina a evitá-los e a fazer deles penitência como os santos fizeram, assim como lemos as suas virtudes para o imitar.
Quando os mundanos querem elogiar as pessoas que estimam, contam sempre as suas graças, virtudes, perfeições e excelências, dando-lhes todos os títulos e dignidades honrosas, procurando encobrir os seus pecados e imperfeições, e esquecendo tudo o que os poderia tornar desprezíveis. Mas a Santa Igreja nossa mãe faz o contrário; porque embora ame muito os, seus filhos, contudo, quanto os quer louvar e exaltar, conta exatamente os pecados que cometeram antes da conversão, para dar mais honra e glória á majestade d'Aquele que os santificou, fazendo brilhar sobre eles a sua infinita misericórdia, pela qual os levantou da sua miséria e pecados, enchendo-os de graça e dando-lhes o seu santo amor, afim de chegarem a santidade.
É fora de dúvida que a Igreja, contando e escrevendo os pecados dos santos, não tem intenção senão de nos mostrar que não quer que nos admiremos e aterremos com os pecados passados e as misérias presentes, contanto que tenhamos uma resolução firme e inabalável de pertencer a Deus, e de abraçar a perfeição, e todos os meios que nos podem adiantar no amor divino, fazendo com que esta resolução seja eficaz, e produza obras. As nossas misérias e fraquezas, em vez de nos aterrarem, devem-nos humilhar e lançar nos braços da misericórdia divina, que será tanto mais glorificada, quanto maiores forem as misérias, contanto que delas nos emendemos; o que devemos esperar mediante a graça de Nosso Senhor.
O grande São Crisóstomo, falando de São Paulo, louva-o o mais que pode e fala dele com tanta honra e estima, que é coisa admirável a narração das virtudes, graças, prerrogativas, excelências e perfeições de que Deus encheu a alma daquele santo apóstolo: mas, após isto, este mesmo Doutor, para mostrar que essas graças não vêm dele mas da infinita bondade de Deus, fala também dos seus defeitos, e narra com exatidão os seus pecados e imperfeições.
Vede, diz ele, como este grande perseguidor da Igreja, Deus fez um vaso de eleição, e como transformou este grande pecador, fazendo de um lobo uma ovelha; vede como encheu de graças a este ambicioso e iracundo, tornando-o tão submisso, que chega a dizer: "Senhor! Que vos agrada que eu faça?" E tão humilde que diz ser o menor dos apóstolos e o maior dos pecadores; que se faz tudo para todos, é para os ganhar para Jesus: "Quem está doente, diz ele, com o qual eu não esteja doente? Quem está triste, com o qual eu não me entristeça? Quem está alegre com o qual eu não me alegre também? Quem se escandaliza com que eu não me escandalize?" Os antigos Padres, ao contarem a vida dos santos, eram exatos em contar os pecados e faltas deles, para exaltarem e glorificarem a bondade divina, fazendo ver a eficácia da graça por cujo meio se converteram.
(São Francisco de Sales)