6. A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é « meu »; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é « dele », o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso « dar » ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles.
- A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é « inseparável da caridade », é-lhe intrínseca. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, « a medida mínima » dela, parte integrante daquele amor « por ações e em verdade » (1 Jo3, 18) a que nos exorta o apóstolo João.
- Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos. Aquela empenha-se na construção da « cidade do homem » segundo o direito e a justiça. Por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão.
- A « cidade do homem » não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo.
7. Depois, é preciso ter em grande consideração o bem comum.
- Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É o bem daquele « nós-todos », formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social. Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem.
- Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade.
Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais.
- Todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis.
- Este é o caminho institucional — podemos mesmo dizer político — da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai diretamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político.
- Aquele, como todo o empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo, prepara o eterno. A ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidadeuniversal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras.
8. Ao publicar a encíclica Populorum progressio em 1967, o meu venerado predecessor Paulo VI iluminou o grande tema do desenvolvimento dos povos com o esplendor da verdade e com a luz suave da caridade de Cristo. Afirmou que o anúncio de Cristo é o primeiro e principal fator de desenvolvimento e deixou-nos a recomendação de caminhar pela estrada do desenvolvimento com todo o nosso coração e com toda a nossa inteligência, ou seja, com o ardor da caridade e a sapiência da verdade. É a verdade originária do amor de Deus — graça a nós concedida — que abre ao dom a nossa vida e torna possível esperar num «desenvolvimento do homem todo e de todos os homens», numa passagem «de condições menos humanas a condições mais humanas», que se obtém vencendo as dificuldades que inevitavelmente se encontram ao longo do caminho.
- Passados mais de quarenta anos da publicação da referida encíclica, pretendo prestar homenagem e honrar a memória do grande Pontífice Paulo VI, retomando os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral e colocando-me na senda pelos mesmos traçada para os atualizar nos dias que correm. Este processo de atualização teve início com a encíclica Sollicitudo rei socialis do Servo de Deus João Paulo II, que desse modo quis comemorar a Populorum progressio no vigésimo aniversário da sua publicação. Até então, semelhante comemoração tinha-se reservado apenas para aRerum novarum. Passados outros vinte anos, exprimo a minha convicção de que aPopulorum progressio merece ser considerada como «aRerum novarum da época contemporânea», que ilumina o caminho da humanidade em vias de unificação.
9. O amor na verdade —caritas in veritate— é um grande desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização. O risco do nosso tempo é que, a real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a interação ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano. Só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objetivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora. A partilha dos bens e recursos, da qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurada pelo simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (cf.Rm12, 21) e abre à reciprocidade das consciências e das liberdades.
- A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e não pretende «de modo algum imiscuir-se na política dos Estados»; mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, da sua vocação.
- Sem verdade, cai-se numa visão empirista e céptica da vida, incapaz de se elevar acima da ação porque não está interessada em identificar os valores — às vezes nem sequer os significados — pelos quais julgá-la e orientá-la. - A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf.Jo8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento humano integral.
- É por isso que a Igreja a procura, anuncia incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se apresente. Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade que liberta. Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que frequentemente a encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova da sociedade dos homens e dos povos.
Carta Encíclica “Caritas in Veritate” – Papa Bento XVI