Extraído de: RIBEIRO, Carina. Revista IstoÉ, pg 70-72, ed 2088, 18/11/2009
O endividamento crônico atinge milhões de brasileiros e pode ser uma porta de entrada para o vício do consumo compulsivo
Nunca foi
tão fácil conseguir crédito. Às vésperas do Natal, o mercado pouco exige
do pagador. A compra é parcelada a perder de vista, sem entrada. O
financiamento, pré-aprovado, é quase ilimitado. Para quem sabe gerir
dinheiro, isso significa boas oportunidades. Para quem gasta sem pensar e
adquire o que não precisa, pode ser a perdição total. Neste grupo, os
mais vulneráveis são os compradores compulsivos, parte significativa dos
22% dos brasileiros que possuem dívidas impagáveis e de 85% das
famílias que têm despesas superiores ao rendimento, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Neste caso, o consumismo
desenfreado é uma doença.
Um dos
sinais de desequilíbrio é o alto grau de irritação diante da
impossibilidade de comprar e a impulsividade do ato. “São pessoas que
compram sozinhas, optam por objetos repetidos, sem utilidade, e escondem
as aquisições dos familiares”, afirma Tatiana Filomensky, coordenadora
do grupo de atendimento dos compradores compulsivos no Hospital das
Clínicas de São Paulo. “Eles saem para comprar um terno e voltam com uma
televisão.” Seis anos atrás, apenas três pacientes estavam em
tratamento. Neste ano, são 24 e há 50 nomes em lista de espera.
A aquisição
de produtos idênticos ou inúteis e o medo de encarar os débitos são
características do consumista patológico. É o que ocorre com a
administradora M.S., 40 anos, que coleciona bijuterias, sapatos, bolsas e
calças do mesmo modelo e da mesma cor. Há quatro anos, quando sua
dívida chegou a R$ 25 mil, ela decidiu frequentar os Devedores Anônimos
(DA), em São Paulo. “O guardaroupa estava cheio e nada me interessava”,
diz a administradora, que ganhava R$ 5 mil e gastava R$ 500 em cada ida
ao shopping. Ela lamenta não ter construído um patrimônio nem priorizado
a família. “Comprava tudo para mim e nada para o meu filho. Hoje me
culpo por isso”, diz.
Diante da
vergonha do endividamento crônico, é comum que os compulsivos escondam a
fatura bancária dos familiares. “Eu não queria admitir a dívida e
escondia as compras da minha esposa”, afirma o físico C.A., 61 anos. Uma
de suas manias é preencher o freezer até o limite com os mesmos
alimentos, das mesmas marcas, mesmo ciente de que não serão consumidos
no prazo de validade. “Se o freezer não estiver lotado, tenho a sensação
de escassez”, explica o físico, que há um ano entrou para o DA. Para
quitar parte de suas dívidas, certa vez conseguiu um empréstimo de R$ 9
mil - e gastou o valor em três dias. “Nem lembro o que comprei.” A
necessidade de manusear valores o levava diariamente ao caixa
eletrônico. “O barulho da maquininha liberando o dinheiro me fazia bem”,
diz o físico, que fazia saques duas vezes por dia. “Me sentia mal em
aniversários e casamentos porque tudo era de graça. Corria das festas
para lojas para comprar.” O resultado: três cartões de crédito
estourados, eletrôcheque especial no limite e uma dívida de R$ 22 mil.
A compulsão
por compras costuma vir acompanhada de outros vícios, segundo pesquisa
da Universidade da Carolina do Norte (EUA). “Há um parentesco entre as
diversas formas de manifestação”, diz o psiquiatra Miguel Roberto Jorge,
da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Por exemplo: um jovem
que compra de forma impulsiva pode migrar para o alcoolismo ou vício em
jogos na terceira idade.
Grande parte
dos endividados crônicos sofre de consumo compulsivo, mas há os que
entram neste rol por incapacidade de gerir seu negócio ou sua conta
bancária. O empresário W.P., 50 anos, deve 15 vezes seu patrimônio. O
rombo financeiro comprometeu a renda de toda a família e surpreendeu a
esposa e os filhos, que desconheciam a situação. A dívida destruiu um
casamento de 25 anos e levou os familiares a cogitar a interdição
judicial. “Fui expulso de casa”, conta. O caos foi o resultado de
empréstimos e créditos com sete instituições financeiras. Ele foi parar
no hospital quando a sua dívida aumentou 85% com a bola de neve dos
juros. “Me afundei. Recorri a agiotas e sofri ameaças.” Apesar de não
dispor mais de bens pessoais para se desfazer, o empresário acredita que
ainda pode quitar a dívida. Enquanto isso, se esforça para pagar a
fatura mínima do cartão de crédito. O advogado José Serpa Júnior,
especialista em direito do consumidor, alerta que o pagamento mínimo é
uma das armadilhas que dão falso conforto ao endividado. “Em um ano o
débito triplica”, explica. Entre as recomendações do tratamento médico
para compulsivos está não pagar a conta do cartão. “É uma forma de o
paciente ter o nome sujo e não poder obter o crédito”, afirma Tatiana
Filomensky.
O poder das
instituições financeiras diante dos superendividados tem sido
questionado pela Justiça. Em duas sentenças inéditas, o Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro condenou obanco Itaú por fornecer crédito
consignado acima das possibilidades dos endividados crônicos. “Não se
trata de fazer apologia à figura do mau pagador ou de instituir o calote
público, mas de analisar a responsabilidade financeira pela má
concessão de crédito em valor muito superior à capacidade de
endividamento do cliente”, afirma o relator, o desembargador Marcos
Torres. Segundo especialistas, os idosos são as maiores vítimas nesses
casos. “Eles são um filão pelo crédito descontado na folha”, afirma o
advogado José Serpa Júnior.
É o caso do
ex-auxiliar judiciário É o caso do ex-auxiliar judiciário Davi Prado
Bortolato, 66 anos, que se aposentou com R$ 4.650, mas só recebe R$ 800
líquidos. Viciado em em préstimos, não resiste a um dinheiro fácil.
“Abria a conta em um banco para cobrir o outro. No final, estava
enrolado com seis financeiras”, diz Davi, que alega ter sido seduzido
pela promessa do crédito sem juros para a terceira idade. O descontrole
financeiro se tornou uma dívida de R$ 40 mil. “A raiz do endividamento
está na distorção do que é essencial, necessário e supérfluo e nas reais
condições de pagamento”, afirma Ari Ferreira de Abreu, especialista em
contabilidade e finanças familiar. “O fútil é importante, traz
felicidade”, diz o professor. “Desde que não comprometa o que é
essencial.”