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Do antropocentrismo ao pântano

Por Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa – Capela Santa Maria das Vitórias



Será possível compreender ou aceitar que isto...

...tenha se tornado isto?

A OBJEÇÃO que com frequência se formula contra o restabelecimento da liturgia romana tradicional como o rito ordinário da Igreja é que tal rito é expressão de uma cultura ultrapassada, esclerosada, incapaz de cativar a sensibilidade do homem de hoje. É claro que essa objeção não leva em conta as razões teológicas em favor da liturgia de sempre e contra os desvios doutrinários do rito reformado, conforme ressaltaram abalizados estudos feitos por teólogos, liturgistas e ilustres prelados. Trata-se de uma objeção superficial de cunho antropológico, psicológico ou, talvez, sociológico, que não considera devidamente o problema cultural, este, sim, o verdadeiro desafio para a evangelização do homem moderno.

Como se sabe, alguns dos “profetas” da nova teologia, condenada por Pio XII na encíclica Humani Generis, diziam que o discurso teológico devia deixar de lado os princípios metafísicos, que se tinham tornado ininteligíveis ao homem moderno, e abrir-se à grande contribuição que a psicologia, a sociologia, a antropologia cultural e outras ciências modernas poderiam dar-lhe e garantiriam à Igreja um êxito espetacular no cumprimento de sua missão em nossos tempos, visto que o homem moderno tem sua sensibilidade e seu gosto voltados para essas disciplinas.

Ora, a receita da nova teologia foi adotada, mas, infelizmente, a Igreja, que já estava combalida havia tantos séculos por um humanismo e liberalismo anticristãos, ficou ainda mais debilitada ao abeberar-se dessas fontes que exaltavam a liberdade do homem moderno mais “consciente” de sua individualidade e aptidão para transformar a realidade; – ao abeberar-se dessas fontes que exaltavam também a cultura democrática laica dos nossos dias, que seria, até, uma cultura mais cristã que a dos séculos passados da cristandade, na medida em que seria mais aberta aos ideais de igualdade, justiça social, liberdade, autonomia e outros valores semelhantes que não teriam sido devidamente cultivados nos tempos da cristandade.

Não é necessário apontar os frutos amargos produzidos por tal discurso de exaltação da cultura moderna. As estatísticas provam a calamidade resultante do fato de a cultura secular ter sido assimilada pela Igreja, sobretudo a partir do Vaticano II. Tampouco é necessário provar que tal discurso se tornou realmente o discurso oficial da Igreja e não algo marginal, abusivo, ou simples desvio de correntes dissidentes. Basta recordar o que disse Paulo VI no final do concílio, o que disse o cardeal Ratzinger à revista "Jesus" e o que diz quase a toda hora Francisco I.
O que interessa a um católico hoje é ter ideias claras sobre o significado da cultura, a fim de defender a pureza da sua fé e evitar erros perniciosos, como os promovidos pelos mestres e epígonos da nova teologia.

Que é cultura? Pode um católico defender uma cultura desvinculada dos princípios metafísicos? Que é uma cultura cristã? Tentarei dar minha modesta contribuição sobre um assunto tão importante para o homem de fé de nossos dias, que, infelizmente, apesar da facilidade de acesso à informação, não tem muitas vezes os elementos e critérios necessários para um juízo seguro sobre o problema.

Cultura, como dizem bons autores, é tudo aquilo que o homem produz em sociedade, com vista ao seu aperfeiçoamento pessoal ou melhoria da sua vida. É tudo aquilo que o homem acrescenta à natureza, colocando-a a seu serviço e para seu aperfeiçoamento como ser racional. É tudo aquilo que o espírito humano concebe ou realiza, seja contemplando o mundo (a religião, a filosofia, a literatura, as artes plásticas etc), seja aperfeiçoando ou pondo a serviço do homem os recursos naturais (desde a domesticação dos animais, o cultivo da terra, a tecelagem, a construção de moradias, até a mais avançada ciência meteorológica apta a prevenir as mais graves catástrofes da natureza). Ou ainda, cultura é tudo aquilo que o homem faz consigo mesmo para melhorar sua qualidade de vida: alimentação, higiene, vestuário, cuidado com a saúde física e psíquica. Cultura, portanto, diz um autor, é um termo análogo, no sentido de que se refere tanto ao cultivo da natureza quanto ao cultivo do espírito humano.

É inegável que o mundo moderno, desprezando a metafísica e a teologia, alcançou um grande progresso material e melhorou as condições físicas da vida do homem na Terra. Mas é inegável também que tão extraordinário progresso apresenta uma flagrante desordem, que reverte em prejuízo do seu próprio autor. Trata-se, com efeito, de uma cultura e de um progresso de um homem que recusa ordenar-se ao seu Criador e teima em voltar-se a si mesmo como se fosse a medida e o fim de todas as coisas. Trata-se de uma cultura que não se desenvolve a partir de uma contemplação de um cosmo bem ordenado por uma Inteligência Ordenadora, onde todas as coisas têm o seu devido fim que o homem, ser inteligente, deve conhecer, respeitar e colaborar para seu aperfeiçoamento. Mas, ao contrário, é uma cultura que se desenvolve a partir de uma concepção de um mundo caótico em que o homem se julga um semideus para fazer tudo que quiser.

Completamente diferente é a cultura que se desenvolveu ao longo dos séculos da cristandade. Acolhendo toda a sabedoria dos gregos e dos romanos e à luz da Revelação divina, o homem, regenerado pela Graça Divina, construiu uma cultura e uma civilização a partir da concepção de mundo em que tudo estava bem ordenado e tinha um fim, porque era obra da criação de um Deus bom e providente. E tal visão de ordem refletia-se em toda a realidade: na vida pessoal, na vida familiar e social. Com efeito, todas as atividades humanas tinham de estar ordenadas para a glória de Deus e salvação da alma, sem que se incorresse no erro de um espiritualismo exagerado característico do maniqueísmo e do catarismo. A cultura cristã não desprezava, como se pensa, a realidade material, a corporeidade do homem, pois, ao contrário do erro de antigos filósofos como Sócrates e Platão, o corpo não era considerado um cárcere da alma. Na cultura cristã, prevaleceu o bom senso de uma concepção de homem que afirmava a unidade substancial composta de corpo e alma espiritual imortal. A cultura cristã não acorrentou a inteligência e a imaginação do homem do seu tempo. Realmente nas universidades o homem medieval gozava de plena liberdade para fazer suas investigações, experiências e produzir belas obras de arte que até hoje admiramos na Europa.

Por outro lado, cumpre dizer que se a cultura é produto do homem, o homem não deixa de ser influenciado fortemente por ela. Não determinado, mas influenciado e condicionado por ela. São poucos os homens realmente capazes de modificar ou reformar a cultura do seu tempo, mas são legiões aqueles que por ela são fortemente marcados. E aqui bate-se o ponto. Os homens da Igreja tinham de estar mais atentos para a malícia da cultura revolucionária moderna que afasta o homem de Deus e o deforma, não obstante todo o palavrório de exaltação do homem. É necessário que as autoridades se esforcem por preservar os católicos da influência da cultura moderna anticristã. Todos vemos como o homem hoje se degrada espantosamente: a violência, as piores grosserias, vulgaridades e perversões nas relações humanas, embrutecimento, hedonismo são os “valores” da cultura da liberdade e do individualismo. De fato, do altar da religião antropocêntrica ruma-se rapidamente para um pântano em que a humanidade se perderá.

Dentro desta realidade que se retrata, talvez com exagero de cores mas sem desfigurá-la, o rito romano tradicional da Missa é sem dúvida um antídoto contra os inúmeros males dessa cultura de morte e ajudará o homem a submeter-se a Deus, a descobrir o seu verdadeiro lugar dentro do mundo, a respeitar a ordem estabelecida por Deus, verdades estas tão bem expressas nas suas cerimônias encantadoras e cheias de mistério.


Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa
Anápolis, 12 de junho de 2014
Festa de São Barnabé Apóstolo,
dentro da Oitava de Pentecostes

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