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Dar esmolas: preceito da Igreja



UM DOS PRECEITOS aos quais os católicos estão obrigados, não só durante a Quaresma mas também durante todo o ano, – e em todo o tempo de suas vidas, – é o de assistir os pobres e sofredores em suas necessidades, seja com ajuda material, conforto psicológico e emocional, dedicando ao menos um tempo mínimo para confortar (seja auxiliando concretamente ou ao menos ouvindo) àqueles que não tem ninguém ao seu lado e a dizer-lhes uma palavra de esperança.

Sim, dar esmolas é um preceito da Igreja. Jesus mandou dar esmola, mas precisamos entender o conceito de esmola. Qual seria a a maneira mais correta, justa, humana e socialmente responsável de dar esmolas? Dar dinheiro aos pedintes nas ruas ou colaborar com alguma instituição de caridade confiável, preferencialmente ligada à Igreja?

Essa discussão é controversa e merece atenção especial. Particularmente, venho sentindo o problema na pele de modo especial nos últimos anos, pois o número de moradores de rua em São Paulo vem crescendo assustadoramente. Em 2010, o FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) já apontava um crescimento de 57%(!), e de lá para cá a situação certamente se agravou ainda muito mais. Em 2012, o Censo do IBGE dizia que entre 0,6 e 1% da população brasileira é constituída de moradores de rua! Isso nos dá a impressionante estimativa de 1,8 milhões de moradores de rua no território nacional(!). São quase dois milhões de pessoas jogadas debaixo de viadutos, espalhadas pelas calçadas, dormindo ao relento, estendendo as mãos nos cruzamentos, nas portas das casas, das igrejas...

Um quadro, de fato, assustador. E o lado mais cruel dessa história é que qualquer cidadão minimamente consciente desta imensa metrópole chamada São Paulo, que abriga por certo uma das maiores parcelas desta imensa população de rua, sabe muito bem que a uma parte importante destes pedintes é formada por aproveitadores, vadios por opção e/ou alcoólatras/consumidores de drogas,que por sua vez ajudam a sustentar o tráfico.

A outrora elegante Avenida Paulista é o mais perfeito exemplo: suas largas calçadas encontram-se atualmente tomadas por esmoleiros, homens e mulheres, crianças e idosos, mães com bebês a tiracolo... Especialmente à noite, o passeio público tornou-se uma grande chateação. Não se andam dez metros sem que alguém lhe pare para pedir dinheiro.

Muitos viciados são recolhidos das ruas pela Prefeitura e levados para centros de desintoxicação e ressocialização, – cujos serviços lamentavelmente deixam muito a desejar, o que é um outro grave problema, – mas não aceitam permanecer ali, nem querem ajuda de espécie alguma no sentido de buscar a reabilitação. Outros (e são muitos) rejeitam ajuda mesmo de suas próprias famílias, e simplesmente se recusam a sair das ruas, onde não precisam obedecer regras e sempre têm, até com facilidade, quem lhes dê dinheiro e comida. Diversas reportagens e estudos já demonstraram que não são raros os pedintes que, nas ruas, chegam a ganhar bem mais do que boa parte dos nossos trabalhadores assalariados. Viver nas ruas, para muita gente, é um estilo de vida, uma opção, um negócio. 

O nosso atual governo entende que é "um direito" de todo cidadão morar na praça, na rua, debaixo do viaduto, como se fosse um amontoado de lixo, urinando, defecando e fazendo sexo na via pública, muitas vezes se drogando à vista de todos, às vezes cometendo pequenos furtos, num suicídio lento e progressivo... Onde bem entender. Já o cidadão comum, achacado por uma quantidade colossal de impostos (somos recordistas mundiais) deve se submeter a tudo sem reclamar. O seu direito de viver numa cidade minimamente humanizada, por certo, tem menor importância.


Cartaz da campanha "Criança quer futuro", da prefeitura de Curitiba (PR)
Talvez a pior faceta desta grande tragédia esteja no fato de queas maiores vítimas das esmolas irresponsáveis são as crianças. Muitas famílias recebem do Governo Federal uma ajuda mensal em dinheiro (em 2/2012, o valor era de R$200,00) para que seus filhos deixem de vender produtos nas ruas. Entretanto, muitos abrem mão deste benefício e preferem continuar a explorar seus filhos, expondo-os aos perigos das ruas, porque é mais lucrativo. Muitas dessas crianças, quando voltam para casa sem ter conseguido vender, são barbaramente espancadas. Então, quando compramos produtos de crianças nas ruas, em vez de ajudar, podemos estar reforçando ainda mais as correntes da miséria e da exploração.

Algumas pessoas dizem que compreendem este grave problema, e por isso não dão dinheiro, e sim comida. A intenção é boa, mas na prática dá no mesmo: torna-se apenas um outro jeito de incentivar a pessoa a se acomodar na situação de pedinte. Que criança ou adolescente vai querer ficar num abrigo, quando as ruas oferecem tantas falsas vantagens imediatas? Com tanta gente "boazinha" disposta a sustentá-la, mantê-la exatamente do jeitinho que ela está, na rua, na indigência, com acesso a todos os prazeres e vícios do mundo, ela nunca vai se animar a mudar o rumo de sua vida.

Sim, ao dar esse tipo de esmola estamos ajudando, mas num sentido diferente: ajudamos a manter essa criança nas ruas, e assim o seu destino é quase certo: prostituição, vício, delinquência, crime e morte precoce. 

A esmola irresponsável torna mais difícil para as pastorais e equipes humanitárias convencerem as crianças dos aspectos negativos da rua. "É uma concorrência desleal", diz a coordenadora da Comissão Municipal de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Júlia Obst.

Aqui termina a questão da caridade cristã e começa o problema social. É nítido que a grande maioria da população de rua (ao menos aqui de São Paulo) está nessa situação por opção própria. Minha experiência em pastorais e a vivência em casas de acolhida me levaram a perceber que, quando damos esmola na rua, diretamente ao pedinte, ajudamos no agravamento da situação. É triste, mas boa parte dessa população não quer ajuda e nem quer se ajudar.



As imagens acima são da campanha "Esmola não ajuda", da
Secretaria de Assistência Social de Ribeirão Preto
Sei que a certos ouvidos esta fala soa, talvez, um pouco radical, principalmente da parte de um cristão, e muitos serão rápidos em me chamar de desumano, em julgar que me falta caridade e todo esse tipo de coisa, mas vejo claramente um povo que é muito “bonzinho” nos momentos errados, mas que não tem consciência, capacidade ou vontade para enxergar o que há debaixo do tapete, as realidades mais profundas. Concordo com as campanhas "Esmola Não Ajuda", da Secretaria de Assistência Social de Ribeirão Preto, e "Criança quer futuro", da Prefeitura de Curitiba, com cujas imagens ilustrei este artigo. 

Faço questão de dizer, porém, que sim, existem as exceções, existem certos momentos em que encontramos pessoas que realmente precisam de uma ajuda material e, como cristãos, devemos ajudar. A questão, aqui, é saber e manter em mente que estes casos devem se incluir exatamente na categoria de exceção, e não configurarem a regra.

Algumas pessoas, ainda, dizem que gostam de ver e tocar quem estão ajudando, querem fazer caridade "olho no olho", e confesso que me incluo entre estes. É uma experiência transformadora procurar o olhar do Cristo no olho do irmão sofredor. E para viver essa experiência, temos muitas casas de acolhida, mantidas pela Igreja ou não. E por outro lado, infinitamente mais válido do que entregar um trocado na mão de alguém, por exemplo, é também procurar uma família pobre, que passa por dificuldades (quem não conhece uma?), e ajudar concretamente.

Outra possibilidade é o cristão concretizar esta ajuda ao irmão que sofre de modo anônimo, enviando uma cesta básica, por exemplo, algum dinheiro ou víveres, sem se identificar, na medida do possível ('...Quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita; para que a tua esmola seja dada em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, Ele mesmo te recompensará publicamente.' – Mt 6,3-4).

Todo católico pode e deve promover o encontro com os pobres, prioridade absoluta do atual Papa Francisco. É nossa obrigação oferecer amor, carinho, compreensão, amizade; precisamos oferecer esse conforto e esse calor humano a quem que precisa. Eu, que visito regularmente uma casa de acolhida de homens em situação de rua, tenho frequentemente a oportunidade de viver essa experiência profunda, e digo que isso é ser cristão tanto ou mais do que estudar e conhecer a Doutrina. Nem toda a Filosofia e a Teologia juntas são capazes de nos aproximar do Cristo tanto quanto uma vida de concreto amor a Deus e ao próximo. "Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras. Mostra-me a tua fé sem obras e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Crês em Deus; fazes bem. Também os demônios creem e tremem" (Tg 2,18-19).

Resumindo, existem muitas instituições sérias precisando de nossa ajuda, e fazemos muito melhor colaborando com elas, da melhor maneira que pudermos, do que dando dinheiro a quem pede nas ruas. Os seus trocados não vão ajudar realmente àquela pessoa em farrapos, mas uma instituição organizada pode fazer muito, e temos variadas belíssimas obras por aí tentando fazer a diferença e contando com o nosso esforço e presença.

Quando damos esmola do jeito errado, ajudamos uma verdadeira "indústria da esmola", que se encontra em plena expansão. Alguns pedintes vêm se "profissionalizando" na arte de comover as pessoas, com histórias tristes e choro ensaiado. Esmola na rua não é solução. O assunto é longo e, evidentemente, não há como esgotá-lo neste espaço, mas em outros países foram feitas interessantes experiências no sentido de orientar a população a evitar a esmola nas ruas e ajudar de modo que realmente faça a diferença. O resultado foi uma diminuição drástica na população de rua, que passou a procurar ajuda especializada e a se ajudar ao invés de se acomodar e passar a vida pedindo. Para ajudar de fato os necessitados, é preciso mudar a mentalidade. Dar dinheiro na rua não é caridade; é atraso para o nosso país.
Finalizo com uma citação da Didaqué, o primeiro Catecismo da Igreja. Siga cada um a sua consciência. Deus sabe de que maneiras praticamos a nossa caridade. Pessoalmente, me recuso a fazer parte deste verdadeiro negócio que é a mendicância no Brasil, deste sistema viciado e vergonhoso.

"Dê a quem te pede e não peças para devolver, pois o Pai quer que seus bens sejam dados a todos. (…) Ai de quem recebe: se recebe por estar necessitado, será considerado inocente; mas se recebe sem ter necessidade, deverá prestar contas do motivo e da finalidade pelos quais recebeu. Será posto na prisão e interrogado sobre o que fez; e daí não sairá até que tenha devolvido o último centavo. A esse respeito, também foi dito: Que a tua esmola fique suando nas mãos, até que saibas para quem a estás dando.” (Didaqué, 1, 5-6)

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Ref.:
Artigo "Dê esmola, não dê bobeira", do website O Catequista, em
http://ocatequista.com.br/archives/8869

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