Por William E. Carroll
A pergunta “De onde viemos?” pode ser respondida de diversas maneiras. Não as distinguir bem tem sido a causa de uma considerável confusão no discurso sobre as implicações teológicas da Cosmologia contemporânea. Os Mitos das Origens estão no centro de todas as culturas. Na Filosofia e na Cosmologia, as análises sobre esse tema proporcionam importantes esclarecimentos sobre as relações entre Ciência e Religião.
Certo dia, um garotinho perguntou à mãe de onde era que ele tinha vindo. A mãe, feliz por ter a chance de conversar sobre um assunto tão importante com o filho, começou com uma explicação elementar da biologia humana, fazendo até várias referências à Teoria da Evolução. Para não limitar a sua análise aos aspectos meramente físicos, falou de Deus como Criador de cada alma humana e como Origem de todas as coisas. Depois que a mãe acabou, o menino — que parecia estar um tanto confuso — explicou-lhe que havia perguntado isso porque um colega seu da classe tinha dito que viera do Piauí...
A pergunta “De onde viemos?” pode ser respondida de diversas maneiras. Devemos ter isso em mente ao dirigirmos nossa atenção para as explicações da Cosmologia contemporânea sobre a origem do Universo. A teoria dominante entre os cientistas, hoje em dia, é a de que estamos no período que se segue à explosão gigante (ou melhor: ainda estamos dentro dessa explosão) que se deu há quinze bilhões de anos. Muitos cosmólogos referem-se a esse Big Bang como uma “singularidade”, ou seja, um limite último, uma borda, um “estado de infinita densidade” no qual o espaço-tempo cessa. Trata-se, portanto, de um limite extremo para tudo o que podemos conhecer sobre o Universo, pois é impossível especular — ao menos no âmbito das ciências naturais — sobre ocorrências anteriores ou externas às categorias de tempo e espaço.
No entanto, nas duas últimas décadas os cosmólogos formularam algumas teorias que pretendem explicar o próprio Big Bang como “uma flutuação de um vácuo primitivo”. Assim como no laboratório certas partículas subatômicas surgem espontaneamente do vácuo, devido ao fenômeno chamado “túnel quântico vindo do nada” (quantum tunneling from nothing), da mesma forma o Universo como um todo teria surgido de um processo semelhante. Outros cosmólogos, como Stephen Hawking, sustentam que a noção de “singularidade inicial” deve ser rejeitada. De acordo com ele, o Universo não tem bordas: “é completamente autocontido e não é afetado por nada externo a si mesmo”. Hawking está convencido de que só se pode obter uma teoria científica se “as leis da Física valerem em toda parte, inclusive no início do Universo”. Para ele, a teoria quântica contemporânea nos leva a rejeitar a própria idéia de um ponto privilegiado como início do Universo.
Essas recentes variações sobre a cosmologia do Big Bang fizeram com que muitos se perguntassem se estamos perto de poder explicar a própria origem do Universo. As novas teorias afirmam que as leis da Física são suficientes para explicar a origem e a existência do Universo. Se isso é verdade, então vivemos num Universo que se teria autocriado: chegado à existência por si mesmo, a partir de um nada cósmico. Ou, segundo a análise de Hawking, uma vez que a questão sobre a origem do Universo não faria mais sentido, já não haveria lugar para um Criador. E o Filósofo da Ciência Quentin Smith observa que, se a cosmologia do Big Bang estiver certa, “o nosso Universo existe sem que haja para isso qualquer explicação... Existe de modo não-necessário, improvável e não-causal. Não há absolutamente nenhuma razão para a sua existência”.
Num Universo tão auto-suficiente, exaustivamente entendido em termos das leis da Física, parece não haver lugar para o Deus revelado dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. Os avanços da Ciência moderna ameaçariam reduzir o Criador a um artifício intelectual próprio de épocas menos esclarecidas. Parece que o Deus da teologia tradicional não passa de uma hipótese que agora já se mostra desnecessária...
É muito freqüente que as discussões contemporâneas sobre as relações entre Ciência e Religião padeçam de uma enorme ignorância da História. A questão que ora nos ocupa é um exemplo disso. Muitos mal-entendidos se dissipariam simplesmente evocando as sofisticadas análises feitas pelos grandes mestres da Escolástica do século XIII, Alberto Magno e Tomás de Aquino, quando debatiam sobre o alcance e sobre as implicações teológicas da mais avançada ciência natural do seu tempo: os trabalhos de Aristóteles e dos seus comentadores, que acabavam de ser traduzidos para o latim.
No entanto, com base nessa ciência, e seguindo a tradição dos pensadores judeus e muçulmanos, Tomás de Aquino elaborou uma doutrina sobre a criação ex nihilo(“a partir do nada”) que permanece como uma das conquistas mais perduráveis da Cultura Ocidental. Ao analisá-la, obtém-se uma clareza refrescante para os debates, freqüentemente confusos, que envolvem as relações entre Ciência e Religião.
Para muitos dos contemporâneos de Tomás de Aquino, parecia haver uma incompatibilidade fundamental entre a afirmação da Física antiga, que dizia que nada pode surgir do nada, e a afirmação da fé hebraica e cristã, que diz que Deus fez todas as coisas do nada. Além do mais, para os gregos antigos, se uma coisa vinha de outra, então algo deveria ter existido sempre: o Universo teria que ser eterno.
As recentes especulações, ao afirmarem que o Universo teria começado a partir de uma “flutuação” ou de um “túnel quântico vindo do nada”, reafirmam o antigo princípio grego segundo o qual nada se tira do nada. Afinal, o “vácuo” da moderna física de partículas, cuja “flutuação” teria dado origem ao Universo, não é um Nada absoluto. Embora não se pareça com o Universo que conhecemos, ainda assim tem que ser alguma coisa campo eletromagnético ou gravitacional (N. do T.).>: caso contrário, como poderia “flutuar”?
Um Universo eterno parecia ser incompatível com um Universo criado ex nihilo, o que levou alguns cristãos medievais a dizer que a Ciência grega, especialmente na versão de Aristóteles, tinha que ser proibida porque contradizia as verdades da Revelação. Tomás de Aquino, convencido de que as verdades da Ciência não podem jamais contradizer as verdades da Revelação (pois Deus é o autor de ambas), pôs-se então a trabalhar para conseguir uma reconciliação entre a Ciência aristotélica e a revelação cristã.
A chave da análise de Tomás de Aquino é a distinção que estabeleceu entre criação e transformação. As ciências naturais, tanto as aristotélicas como as contemporâneas, têm por objeto um mundo de coisas em transformação: desde as partículas subatômicas até às árvores e às galáxias. Sempre que há uma transformação, deve haver alguma coisa que se transforma. Os antigos tinham razão: do nada, nada surge, desde que o verbo “surgir” indique uma transformação. Toda transformação exige uma realidade material subjacente.
A Criação, por sua vez, é a causa radical da existência de tudo o que existe. Causar totalmente a existência de alguma coisa não é produzi-la por transformação de outra: criar não é trabalhar sobre algo ou contar com alguma coisa material já existente. Se no ato de produzir uma coisa nova o agente utilizasse algo anterior já existente, não seria a causa total e completa da coisa nova. Mas uma tal causação total e completa é precisamente o que ocorre na Criação. Criar é dar — conferir — o ser, a existência: todas as coisas dependem completamente de Deus pelo fato de serem. Deus não toma o Nada e faz algo “a partir dele”. Mais propriamente falando, qualquer coisa completamente entregue a si própria, separada da causa do seu ser, não seria absolutamente nada. A Criação não é, pois, um mero evento longínquo: é a completa e contínua causa da existência de tudo. A Criação é, portanto, objeto da Metafísica e da Teologia, e não das ciências naturais.
Tomás de Aquino não via nenhuma contradição na noção de um Universo que fosse eterno e criado, pois mesmo que o Universo não tivesse tido um início temporal, ainda assim dependeria de Deus justamente para poder ser. Não há, pois, nenhum conflito entre a doutrina da Criação e a Física. As teorias das ciências naturais explicam as mudanças e as transformações, quer sejam biológicas ou cosmológicas, quer eternas ou finitas, em todo caso são sempre processos. A Criação é a explicação da existência das coisas, da sua razão de ser, e não da sua mudança.
Tomás também não pensava que o começo do texto do Gênese apresentasse qualquer dificuldade para as ciências naturais, pois a Bíblia não é um manual científico. O que é essencial para a fé, segundo ele, é o fato da Criação, não amaneira ou o modo como o mundo foi formado. A sua firme adesão à verdade das Escrituras, evitando as armadilhas de uma interpretação estritamente literal do texto, é um valioso corretivo para certas exegeses bíblicas que concluem ser necessário optar entre a interpretação literal da Bíblia e a Ciência moderna. Para Tomás, o sentido literal da Bíblia é o significado que Deus — seu Autor — pretendeu dar às palavras. O sentido literal do texto inclui, pois, metáforas, comparações e outros modos de expressão úteis para acomodar a verdade da Bíblia à compreensão dos leitores. Por exemplo: quando se lê na Bíblia que Deus “estendeu a mão”, isso não nos obriga a pensar que Deus tenha mãos: o significado literal de textos como esse refere-se ao poder de Deus, não à sua anatomia. Nem os “seis dias” do começo do Gênese nos obrigam a pensar numa ação de Deus ao longo do tempo, pois o ato criador é instantâneo.
Aderindo à leitura tradicional do livro do Gênese e às resoluções doutrinais do IV Concílio de Latrão (1215), Tomás acreditava que o Universo tinha tido um começo temporal e que, portanto, Aristóteles estava errado ao afirmar que era eterno. No entanto, sustentava que não podemos saber, baseados somente na razão natural, se o Universo é eterno ou não. Além disso, mesmo um Universo eterno continuaria a ser um Universo criado. Afirmar, com base na fé, que o Universo teve um início temporal não comporta nenhuma contradição com o que as ciências naturais possam afirmar, posto que elas, naquilo que lhes compete, deixam a questão por resolver. Hawking nega o início absoluto no tempo, mas ao mesmo tempo afirma que o passado é finito: isso envolve uma complicada especulação sobre a gravidade quântica, que afinal não fica completamente formulada. Apesar da inteligibilidade das afirmações científicas de Hawking, as conclusões que ele e outros extraem delas a respeito da Criação são falsas.
O Big Bang descrito pelos modernos cosmólogos é uma transformação e não uma criação. As ciências naturais não explicam sozinhas a origem última de todas as coisas. Os apologetas da doutrina cristã da Criação não podem afirmar que a “singularidade” inicial da cosmologia do Big Bang clássica confirme cientificamente o seu ponto de vista. Mas os que se opõem à doutrina da Criação também não podem dizer que as recentes variações sobre a cosmologia do Big Bang corroborem o seu ponto de vista. Mesmo que o Universo fosse o resultado da “flutuação de um vácuo primordial”, ainda assim não se trataria de um Universo autocriado: continuaria a ser necessário explicar a existência das coisas. Ao contrário do que dizem alguns, que o Universo descrito pela Cosmologia contemporânea não deixaria espaço para a ação de nenhum Criador, temos de reconhecer que, se não houvesse um Criador como causa de tudo, nada – nenhuma coisa – existiria.
Tomás de Aquino não veria dificuldade alguma em aceitar a teoria cosmológica doBig Bang, mesmo nas suas versões mais recentes, afirmando ao mesmo tempo a doutrina da Criação ex nihilo. Mas certamente sublinharia a distinção entre os avanços da Cosmologia e as reflexões filosóficas e teológicas a respeito desses avanços.
As variantes da cosmologia do Big Bang que mencionei (há provavelmente outras mais) são somente especulações teóricas. Mas essa sua condição de “simples especulações” não justifica o erro de não distinguir entre o domínio das ciências naturais e os da Metafísica e da Teologia, nem tampouco que se pretenda dar a essas especulações uma injustificada vigência em outros campos. Como no caso do menino que pergunta a sua mãe de onde veio, a resposta é uma grande história que não tem nada a ver com o assunto.
Tomás de Aquino não tinha a vantagem de poder usar o telescópio espacial Hubble, mas em muitos aspectos ele via mais longe e mais claramente do que alguns daqueles que o usam.
Fonte: First Things
Tradução: Quadrante
Artigos - Post.
De: Editora Quadrante
Link: http://www.quadrante.com.br/artigos_detalhes.asp?id=37&cat=2&pagina=2
SC280814AT
A pergunta “De onde viemos?” pode ser respondida de diversas maneiras. Não as distinguir bem tem sido a causa de uma considerável confusão no discurso sobre as implicações teológicas da Cosmologia contemporânea. Os Mitos das Origens estão no centro de todas as culturas. Na Filosofia e na Cosmologia, as análises sobre esse tema proporcionam importantes esclarecimentos sobre as relações entre Ciência e Religião.
Certo dia, um garotinho perguntou à mãe de onde era que ele tinha vindo. A mãe, feliz por ter a chance de conversar sobre um assunto tão importante com o filho, começou com uma explicação elementar da biologia humana, fazendo até várias referências à Teoria da Evolução. Para não limitar a sua análise aos aspectos meramente físicos, falou de Deus como Criador de cada alma humana e como Origem de todas as coisas. Depois que a mãe acabou, o menino — que parecia estar um tanto confuso — explicou-lhe que havia perguntado isso porque um colega seu da classe tinha dito que viera do Piauí...
A pergunta “De onde viemos?” pode ser respondida de diversas maneiras. Devemos ter isso em mente ao dirigirmos nossa atenção para as explicações da Cosmologia contemporânea sobre a origem do Universo. A teoria dominante entre os cientistas, hoje em dia, é a de que estamos no período que se segue à explosão gigante (ou melhor: ainda estamos dentro dessa explosão) que se deu há quinze bilhões de anos. Muitos cosmólogos referem-se a esse Big Bang como uma “singularidade”, ou seja, um limite último, uma borda, um “estado de infinita densidade” no qual o espaço-tempo cessa. Trata-se, portanto, de um limite extremo para tudo o que podemos conhecer sobre o Universo, pois é impossível especular — ao menos no âmbito das ciências naturais — sobre ocorrências anteriores ou externas às categorias de tempo e espaço.
No entanto, nas duas últimas décadas os cosmólogos formularam algumas teorias que pretendem explicar o próprio Big Bang como “uma flutuação de um vácuo primitivo”. Assim como no laboratório certas partículas subatômicas surgem espontaneamente do vácuo, devido ao fenômeno chamado “túnel quântico vindo do nada” (quantum tunneling from nothing), da mesma forma o Universo como um todo teria surgido de um processo semelhante. Outros cosmólogos, como Stephen Hawking, sustentam que a noção de “singularidade inicial” deve ser rejeitada. De acordo com ele, o Universo não tem bordas: “é completamente autocontido e não é afetado por nada externo a si mesmo”. Hawking está convencido de que só se pode obter uma teoria científica se “as leis da Física valerem em toda parte, inclusive no início do Universo”. Para ele, a teoria quântica contemporânea nos leva a rejeitar a própria idéia de um ponto privilegiado como início do Universo.
Essas recentes variações sobre a cosmologia do Big Bang fizeram com que muitos se perguntassem se estamos perto de poder explicar a própria origem do Universo. As novas teorias afirmam que as leis da Física são suficientes para explicar a origem e a existência do Universo. Se isso é verdade, então vivemos num Universo que se teria autocriado: chegado à existência por si mesmo, a partir de um nada cósmico. Ou, segundo a análise de Hawking, uma vez que a questão sobre a origem do Universo não faria mais sentido, já não haveria lugar para um Criador. E o Filósofo da Ciência Quentin Smith observa que, se a cosmologia do Big Bang estiver certa, “o nosso Universo existe sem que haja para isso qualquer explicação... Existe de modo não-necessário, improvável e não-causal. Não há absolutamente nenhuma razão para a sua existência”.
Num Universo tão auto-suficiente, exaustivamente entendido em termos das leis da Física, parece não haver lugar para o Deus revelado dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. Os avanços da Ciência moderna ameaçariam reduzir o Criador a um artifício intelectual próprio de épocas menos esclarecidas. Parece que o Deus da teologia tradicional não passa de uma hipótese que agora já se mostra desnecessária...
É muito freqüente que as discussões contemporâneas sobre as relações entre Ciência e Religião padeçam de uma enorme ignorância da História. A questão que ora nos ocupa é um exemplo disso. Muitos mal-entendidos se dissipariam simplesmente evocando as sofisticadas análises feitas pelos grandes mestres da Escolástica do século XIII, Alberto Magno e Tomás de Aquino, quando debatiam sobre o alcance e sobre as implicações teológicas da mais avançada ciência natural do seu tempo: os trabalhos de Aristóteles e dos seus comentadores, que acabavam de ser traduzidos para o latim.
No entanto, com base nessa ciência, e seguindo a tradição dos pensadores judeus e muçulmanos, Tomás de Aquino elaborou uma doutrina sobre a criação ex nihilo(“a partir do nada”) que permanece como uma das conquistas mais perduráveis da Cultura Ocidental. Ao analisá-la, obtém-se uma clareza refrescante para os debates, freqüentemente confusos, que envolvem as relações entre Ciência e Religião.
Para muitos dos contemporâneos de Tomás de Aquino, parecia haver uma incompatibilidade fundamental entre a afirmação da Física antiga, que dizia que nada pode surgir do nada, e a afirmação da fé hebraica e cristã, que diz que Deus fez todas as coisas do nada. Além do mais, para os gregos antigos, se uma coisa vinha de outra, então algo deveria ter existido sempre: o Universo teria que ser eterno.
As recentes especulações, ao afirmarem que o Universo teria começado a partir de uma “flutuação” ou de um “túnel quântico vindo do nada”, reafirmam o antigo princípio grego segundo o qual nada se tira do nada. Afinal, o “vácuo” da moderna física de partículas, cuja “flutuação” teria dado origem ao Universo, não é um Nada absoluto. Embora não se pareça com o Universo que conhecemos, ainda assim tem que ser alguma coisa campo eletromagnético ou gravitacional (N. do T.).>: caso contrário, como poderia “flutuar”?
Um Universo eterno parecia ser incompatível com um Universo criado ex nihilo, o que levou alguns cristãos medievais a dizer que a Ciência grega, especialmente na versão de Aristóteles, tinha que ser proibida porque contradizia as verdades da Revelação. Tomás de Aquino, convencido de que as verdades da Ciência não podem jamais contradizer as verdades da Revelação (pois Deus é o autor de ambas), pôs-se então a trabalhar para conseguir uma reconciliação entre a Ciência aristotélica e a revelação cristã.
A chave da análise de Tomás de Aquino é a distinção que estabeleceu entre criação e transformação. As ciências naturais, tanto as aristotélicas como as contemporâneas, têm por objeto um mundo de coisas em transformação: desde as partículas subatômicas até às árvores e às galáxias. Sempre que há uma transformação, deve haver alguma coisa que se transforma. Os antigos tinham razão: do nada, nada surge, desde que o verbo “surgir” indique uma transformação. Toda transformação exige uma realidade material subjacente.
A Criação, por sua vez, é a causa radical da existência de tudo o que existe. Causar totalmente a existência de alguma coisa não é produzi-la por transformação de outra: criar não é trabalhar sobre algo ou contar com alguma coisa material já existente. Se no ato de produzir uma coisa nova o agente utilizasse algo anterior já existente, não seria a causa total e completa da coisa nova. Mas uma tal causação total e completa é precisamente o que ocorre na Criação. Criar é dar — conferir — o ser, a existência: todas as coisas dependem completamente de Deus pelo fato de serem. Deus não toma o Nada e faz algo “a partir dele”. Mais propriamente falando, qualquer coisa completamente entregue a si própria, separada da causa do seu ser, não seria absolutamente nada. A Criação não é, pois, um mero evento longínquo: é a completa e contínua causa da existência de tudo. A Criação é, portanto, objeto da Metafísica e da Teologia, e não das ciências naturais.
Tomás de Aquino não via nenhuma contradição na noção de um Universo que fosse eterno e criado, pois mesmo que o Universo não tivesse tido um início temporal, ainda assim dependeria de Deus justamente para poder ser. Não há, pois, nenhum conflito entre a doutrina da Criação e a Física. As teorias das ciências naturais explicam as mudanças e as transformações, quer sejam biológicas ou cosmológicas, quer eternas ou finitas, em todo caso são sempre processos. A Criação é a explicação da existência das coisas, da sua razão de ser, e não da sua mudança.
Tomás também não pensava que o começo do texto do Gênese apresentasse qualquer dificuldade para as ciências naturais, pois a Bíblia não é um manual científico. O que é essencial para a fé, segundo ele, é o fato da Criação, não amaneira ou o modo como o mundo foi formado. A sua firme adesão à verdade das Escrituras, evitando as armadilhas de uma interpretação estritamente literal do texto, é um valioso corretivo para certas exegeses bíblicas que concluem ser necessário optar entre a interpretação literal da Bíblia e a Ciência moderna. Para Tomás, o sentido literal da Bíblia é o significado que Deus — seu Autor — pretendeu dar às palavras. O sentido literal do texto inclui, pois, metáforas, comparações e outros modos de expressão úteis para acomodar a verdade da Bíblia à compreensão dos leitores. Por exemplo: quando se lê na Bíblia que Deus “estendeu a mão”, isso não nos obriga a pensar que Deus tenha mãos: o significado literal de textos como esse refere-se ao poder de Deus, não à sua anatomia. Nem os “seis dias” do começo do Gênese nos obrigam a pensar numa ação de Deus ao longo do tempo, pois o ato criador é instantâneo.
Aderindo à leitura tradicional do livro do Gênese e às resoluções doutrinais do IV Concílio de Latrão (1215), Tomás acreditava que o Universo tinha tido um começo temporal e que, portanto, Aristóteles estava errado ao afirmar que era eterno. No entanto, sustentava que não podemos saber, baseados somente na razão natural, se o Universo é eterno ou não. Além disso, mesmo um Universo eterno continuaria a ser um Universo criado. Afirmar, com base na fé, que o Universo teve um início temporal não comporta nenhuma contradição com o que as ciências naturais possam afirmar, posto que elas, naquilo que lhes compete, deixam a questão por resolver. Hawking nega o início absoluto no tempo, mas ao mesmo tempo afirma que o passado é finito: isso envolve uma complicada especulação sobre a gravidade quântica, que afinal não fica completamente formulada. Apesar da inteligibilidade das afirmações científicas de Hawking, as conclusões que ele e outros extraem delas a respeito da Criação são falsas.
O Big Bang descrito pelos modernos cosmólogos é uma transformação e não uma criação. As ciências naturais não explicam sozinhas a origem última de todas as coisas. Os apologetas da doutrina cristã da Criação não podem afirmar que a “singularidade” inicial da cosmologia do Big Bang clássica confirme cientificamente o seu ponto de vista. Mas os que se opõem à doutrina da Criação também não podem dizer que as recentes variações sobre a cosmologia do Big Bang corroborem o seu ponto de vista. Mesmo que o Universo fosse o resultado da “flutuação de um vácuo primordial”, ainda assim não se trataria de um Universo autocriado: continuaria a ser necessário explicar a existência das coisas. Ao contrário do que dizem alguns, que o Universo descrito pela Cosmologia contemporânea não deixaria espaço para a ação de nenhum Criador, temos de reconhecer que, se não houvesse um Criador como causa de tudo, nada – nenhuma coisa – existiria.
Tomás de Aquino não veria dificuldade alguma em aceitar a teoria cosmológica doBig Bang, mesmo nas suas versões mais recentes, afirmando ao mesmo tempo a doutrina da Criação ex nihilo. Mas certamente sublinharia a distinção entre os avanços da Cosmologia e as reflexões filosóficas e teológicas a respeito desses avanços.
As variantes da cosmologia do Big Bang que mencionei (há provavelmente outras mais) são somente especulações teóricas. Mas essa sua condição de “simples especulações” não justifica o erro de não distinguir entre o domínio das ciências naturais e os da Metafísica e da Teologia, nem tampouco que se pretenda dar a essas especulações uma injustificada vigência em outros campos. Como no caso do menino que pergunta a sua mãe de onde veio, a resposta é uma grande história que não tem nada a ver com o assunto.
Tomás de Aquino não tinha a vantagem de poder usar o telescópio espacial Hubble, mas em muitos aspectos ele via mais longe e mais claramente do que alguns daqueles que o usam.
Fonte: First Things
Tradução: Quadrante
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De: Editora Quadrante
Link: http://www.quadrante.com.br/artigos_detalhes.asp?id=37&cat=2&pagina=2
SC280814AT