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FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DO CELIBATO SACERDOTAL


Caro Internauta, com prazer ofereço-lhe a tradução deste estudo do Pe. Christian Cochini, SJ, sobre o celibato sacerdotal, aparecido na revista Sacrum Ministerium, número 2 de 1997. Espero que a leitura lhe seja útil e esclarecedora, ajudando-o a apreciar o inestimável dom do celibato sacerdotal para toda a Igreja. 
Passaram-se já trinta anos da publicação da Encíclia Sacerdotalis Caelibatus, emanada do Papa Paulo VI. Trinta anos de pesquisa, como desejou o seu Autor, mas também trinta anos de crise. Não em maior medida do que fez o Concílio Vaticano II nem mais do que fizeram outras declarações do Magistério sobre a questão, o documento papal na realidade não pôs fim às contestações. No clima social dos anos 60, saturado de erotismo, a dúvida que tomou conta de muitos concernente ao valor do celibato sacerdotal encontrou com extrema facilidade um terreno particularmente fértil no qual multiplicar-se. Às motivações amplamente desenvolvidas por Paulo VI para justificar a disciplina da Igreja latina responderam numerosas vozes que levantaram outros tantos moticos para criticá-la. Foi como se a Encíclia, contrariamente ao seu objetivo, tivesse aberto um debate no qual cada um sentia-se autorizado a intervir, com propósito e com despropósito. Aplaudido pelos meios de comunicação, o matrimônio de muitos sacerdotes revestiu-se de um odor profético e vários teólogos colocaram em questão os fundamentos do celibato. 
Trinta anos, no curso dos quais verificaram-se não poucos dramas, mas que permitiram à Igreja exercitar uma ação de discernimento mais profundo. Em 1992, a diagnose contida na Exortação apostólica Pastores dabo vobis, de João Paulo II, graças à sua precisão e sua clareza, anunciou a conclusão da crise. Fruto da reflexão colegial do Episcopado do mundo inteiro no Sínodo de 1990, pode-se afirmar que o novo documento redescobriu “toda a profundidade da identidade sacerdotal” e mostrou que somente “um conhecimento exato e profundo da natureza e da missão do sacerdócio ministerial” poderia resolver o problema. O sacerdote não é e não será nunca um “funcionário”; ele é unido a Cristo, Sumo Sacerdote e Bom Pastor, com um liame ontológico específico que faz dele, no sentido forte do termo, um alter Christus. A imitação da virgindade de Cristo é também, para este outro Cristo que é o sacerdote, um caminho seguro para assemelhar-se a Ele e, com Ele, “oferecer-se por ela”, pela Igreja, sua Esposa. Sobre este fundamento teológico incontestável o celibato sacerdotal reencontra a sua alta nobreza. Ao manifestar as suas raízes evangélicas, a Exortação apostólica Pastores dabo vobis une esta vocação celibatária Àquele que, de um modo único e irrepetível, pode dar-lhe significado e oferecer àqueles que são chamados a vivê-la, o cêntuplo em termos de amor e de paternidade. 
A esta altura a história nos coloca um problema. Se é verdade que existe uma ligação deste tipo entre o celibato – ou a continência perfeita – e o sacerdócio ministerial, o que aconteceu com os primeiros sacerdotes, ou seja, os apóstolos? Paulo VI escreveu: “Jesus, que escolheu os primeiros ministros da salvação e os quis introduzir na compreensão dos mistérios do reino dos céus, cooperadores de Deus a um título especialíssimo, seus embaixadores, e os chamouu amigos e irmãos, pelos quais consagrou-se a si mesmo para que fossem consagrados na verdade, prometeu recompensar abundantemente quem abandonasse casa, família, mulher e filhos pelo reino de Deus” (n. 22). É possível conciliar estes surpreendentes privilégios, esta intimidade exepcional com o Senhor, da qual gozavam os apóstolos, com a idéia de que estes tenham podido não sentir-se interpelados pela virgindade do seu Mestre, pelo seu convite a deixar “tudo”para segui-lo? Foram tão “lentos de coração para crer”, e com sua atitude encorajaram os seus sucessores por muitos séculos a praticar livremente o matrimônio depois da ordenação? A questão é secundária em relação à teologia do sacerdócio, mas é deveras relevante para os nossos espíritos modernos, que compreendem com dificuldade como um estilo de vida sacerdotal, cujas motivações são apresentadas como consoantes ao Evangelho e inspiradas no exemplo de Cristo, tenha podido ser considerado como facultativo pelos apóstolos; logo por eles, cuja missão era precisamente aquela de fazer conhecer o Evangelho e mostrar através de sua vida aquilo que era e aquilo que devia ser umalter Christus. Os numerosos livros ou artigos depois do Concílio, consagrados ao celibato dos sacerdotes, reportam-se quase sempre à história, sublinhando justamente a importância do problema. 
No que diz respeito à parte de minha competência, iniciei minhas pesquisas em 1964, preparando o Doutorado em Teologia. O ponto de partida foi o cânon de um Concílio africano de 390 que, estranhamente, fazia a obrigação da continência clerical remontar a uma tradição apostólica. Eis o texto: “Epigão, Bispo de Bula Régia, dizz: ‘Num Concílio precedente discutiu-se sobre a norma da continência e da castidade. Que se instrua, portanto, agora, com maior empenho sobre os três graus que, em virtude da sua consagração, são vinculados pelo mesmo dever de castidade; quero dizer o Bispo, o presbítero e o diácono e que se ensine a esses a conservarem-se puros’. O Bispo Geneclio disse: ‘Como se disse precedentemente, convém que os santos Bispos e os presbíteros de Deus, do mesmo modo que os levitas, isto é, aqueles que são ministros dos sacramentos divinos, observem uma continência perfeita para poder obter com toda a simplicidade aquilo que pedem a Deus. O que ensinaram os Apóstolos e a Tradição mesma observou façamos com que seja observado também nós’. Unanimemente, os Bispos declararam: ‘Agrada a todos nós que o Bispo , o presbítero e o diácono, guardiões da pureza, abstenham-se (do comércio conjugal) com a própria esposa para que aqueles que estão ao serviço do altar observem uma castidade perfeita’.” 

Este cânon teve um papel importante na história da disciplina da continência sacerdotal não somente na África, mas em toda a Igreja. Ele foi frequentemente citado no curso dos séculos para verificar ou consolidar o liame tradicional entre a disciplina do celibato e o ensinamento dos Apóstolos. Os primeiros a fazer recurso dele foram os Padres bizantinos do Concílio trulano de 692,d o qual falaremos mais adiante. Pio XI, no nosso tempo, refere-se a ele explicitamente na Encíclica Ad catholici sacerdotii fastigium (1935). 
            Esta constatação, que foi para mim uma descoberta, impulsionou-me a escolher o cânon de Cartago como fio condutor. Os Padres africanos disseram a verdade? A obrigação da continência perfeita para os Bispos, presbíteros e diáconos remontava realmente aos Apóstolos, como eles afirmavam de modo tão peremptório? Revelou-se necessário uma tríplice estudo: fazer um inventário completo dos documentos sobre o celibato dos clérigos, seja para a Igreja do Ocidente que para a Igreja do Oriente; verificar a sua autenticidade; tentar, finalmente, uma síntese histórica, à luz de um princípio hermenêutico apropriado. 
Apresentarei agora, em grandes linhas, este trabalho. 
I. Os principais testemunhos patrísticos 
            Ao lado do cânon de Cartago encontramos no século IV numerosos documentos públicos que fazem igualmente remontar aos tempos apostólicos a disciplina a respeito da continência perfeita do clero. Em ordem cronológica, são eles: 
1) A decretal Directa, de 10 de fevereiro de 385, enviada pelo Papa Siríaco ao Bispo Himério, metropolita de Tarragona. O Romano Pontífice recorda ao clero espanhol o dever da continência perfeita, cujo princípio está contido no Evangelho de Cristo, e acrescenta: “É pela lei indissolúvel destas decisões que nós todos, sacerdotes e diáconos, encontramo-nos vinculados, a partir do dia da nossa ordenação, (e obrigados) a colocas os nossos corpos a serviço da sobriedade e da pureza...” 
2) A decretal Cum in unum, enviada pelo Papa Siríaco aos episcopados de diversas províncias para comunicar-lhes as decisões tomadas em janeiro de 386 em Roma por um concílio de 80 Bispos. O documento insiste na fidelidade às tradições transmitidas pelos Apóstolos, porque “não se trata de promulgar novos preceitos, mas de fazer observar aqueles que, por motivo da apatia e da preguiça de alguns, foram transcurados”. Entre as várias coisas “estabelecidas com uma constituição apostólica e com uma constituição dos Padres” encontra-se a obrigação da continência para os clérigos que tenham recebido as ordens maiores. Uma observação importante: se o Apóstolo ordena escolher como Bispo, presbítero ou diácono um “homem casado uma só vez”, é propter continentiam futuram, em vista da continência que os candidatos casados deveriam observar depois de sua ordenação. 
3) A decretal Dominus inter, de Siríaco (ou talvez de Dâmaso). Para responder a certos quesitos dos Bispos da Gália, o Papa se propõe de chamá-los à ordem “fazendo conhecer as tradições”. Neste contexto ele fala dos Bispos, dos presbíteros e dos diáconos, a respeito dos quais ele diz expressamente “as divinas Escrituras, e não somente nós mesmos, obrigam a serem muito castos”. 
            Estas três decretais revestem uma importância fundamental para a história das origens do celibato dos clérigos. Elas propõem como coisa normal e legítima a ordenação de numerosos homens casados. Estes, a partir do diaconato, são, no entanto, obrigados à continência perfeita com sua esposa, se ela ainda for viva, e a infração desta disciplina, frequente então em certas províncias distantes de Roma, como a Espanha e as Gálias, é condenada já que considerada contrária à Tradição apostólica.

            Para avaliar a exata importância destes documentos é necessário recordar que a Igreja de Roma alcançou muito cedo uma posição absolutamente única, enquanto testemunha da Tradição derivada dos Apóstolos. Santo Irineu expressou esta idéia numa fórmula tornada célebre: “Com esta Igreja, por motivo da sua origem mais excelente, deve necessariamente estar de acordo toda Igreja, ou seja, os fiéis de todo lugar; Igreja na qual sempre, para o bem de todos os povos, foi conservada a Tradição que deriva dos Apóstolos”. Esta posição privilegiada da Sé “Apóstolica” permite garantir que os pontífices romanos deste final do século IV fizeram-se fiadores em nome de toda a Igreja de uma tradição do “celibato-continência” para os clérigos que receberam as ordens maiores e provêm da sucessão apostólica, e que tenham epenhado nesta afirmação toda a sua própria credibilidade. 
            Numerosos autores patrísticos, sempre do século IV, falam de uma disciplina que requer a continência perfeita para os clérigos que receberam as ordens maiores. Podemos nos limitar aos mais representativos: 
Santo Epifânio de Salamina (315-403). No seu Panarion, o Bispo de Chipre refuta os montanistas, que procuravam desacreditar o matrimônio. Nada de mais contrário à intenção do Senhor, que escolheu os seus Apóstolos não só entre os virgens, mas também entre os monogâmicos. Todavia, acrescenta Epifânio, estes Apóstolos casados em seguida praticaram a continência perfeita e, seguindo o exemplo que Jesus, a regra da verdade, havia traçado para eles, fixaram por sua vez a norma eclesiástica do sacerdócio. Se em algumas regiões há clérigos que continuam a ter filhos, isso não acontece em conformidade com os autênticos cânones eclesiásticos. No posfácio do Panarion, a disciplina geral vigente na época é descrita claramente: “... Na falta de virgens (o sacertode deve ser recrutado) entre os monges. Se não houver monges suficientes para o minist[erio (recrutem-se) entre os esposos que conservem a continência com a sua esposa, ou entre os monogâmicos viúvos. Todavia nela (isto é, na Igreja) não é permitido admitir ao sacerdócio o homem recasado, mesmo que ele mantenha a continência ou, se é viúvo, (fica descartado) da ordem dos Bispos, dos presbíteros, dos diáconos edos subdiáconos". 
O Ambrosiaster (366-384) trata em duas ocasiões da continência dos clérigos. No comentário à Primeira Carta a Timóteo desenvolve uma argumentação semelhante àquela do de Siríaco, de Ambrósio e de Jerônimo. Masmo exigindo que o futuro diácono ou Bispo seja unius uxoris vir (marido de uma só mulher), o Apóstolo não lhe concedeu a liberdade do comércio conjugal. Ao contrário, “que esses saibam bem que poderão obter o que pedem se se abstêm do uso do matrimônio”. A mesma idéia se encontra nas Quaestiones veteris et novi Testamenti, que testemunham ao mesmo tempo uma sã visão da sexualidade nobilitada pelo Criador, contrastantes com o pessismismo maniqueu ou a desconfiança encratista em relação às “obras da carne”. Os requisitos exigidos para o sacerdócio são excepcionais, porque fundados no caráter excepcional das suas funções. Ministro de Cristo, de quem “a cada dia faz as vezes”, ele é consagrado “para a causa de Deus” e deve poder se “dedicar à oração” e ao seu ministério de modo constante. A antropologia que está na base destes textos é de inspiração paulina.
Santo Ambrósio de Milão (333-397) comenta, também ele, do mesmo modo o unius uxoris vir de São Paulo. “Não é a gerar filhos durante (a sua carreira) que a Autoridade apostólica convida o sacerdote. (O Apóstolo), com efeito, falou de um homem que há tem filhos, não de alguém que gerará outros ou que contraia um novo matrimônio”. Em outra parte ele responde à objeção, levantada pela situação dos levitas do Antigo Testamento, justificando com um argumento a fortiori, como os seus contemporâneos, a continência perfeita requerida aos sacerdotes da Nova Aliança. 
São Jerônimo (347-419) retorna várias vezes ao problema da continência dos clérigos, sobretudo no curso da sua polêmica com Joviniano e Vigilante. No Adversus Jovinianum ele comenta o unius uxoris vir da Primeira Carta a Timóteo no mesmo sentido de Siríaco: trata-se de um homem que pôde ter filhos antes de sua ordenação, não de alguém que continue a tê-os depois. A Carta a Pamáquio, de sua parte, sublinha o liame de dependência entre a continência dos clérigos e a de Cristo e de sua Mãe, ambos virgens: “O Cristo Virgem e a Virgem Maria consagram ambos os sexos os inícios da virgindade. Os Apóstolos foram ou virgens ou continentes depois do matrimônio. Bispos, presbíteros e diáconos são escolhidos entre os virgens ou entre os viúvos. Em todo caso, uma vez recebido o sacerdócio, eles, observam a castidade perfeita”. No Adversus Vigilantium, finalmente, atesta que a disciplina da continência dos clérigos estava em vigor em vastas regiões do Império: “Que fariam as Igrejas do Oriente? Que fariam aquelas do Egisto e aquelas da Sé apostólica, essas que aceitam somente os clérigos virgens ou continentes, ou (se tiveram) uma esposa, somente se renunciaram à vida matrimonial?” 
            A disciplina que veta o matrimônio depois da ordenação e a disciplina da continência perfeita, que impõe aos clérigos casados a abstinência das relações conjugais antes de sua ordenação, são, portanto, amplamente atestadas a partir do século IV pelos melhores representantes da época patrística. Numerosos documentos afirmam a origem apostólica de ambos. Alguns em termos explícitos, como as decretais de Siríaco ou os concílios africanos; outros, como Epifânio, o Ambrosiáster, Ambrósio ou Jerônimo, de modo indireto, mas não menos certo. Não temos nenhum texto relativo a tal obrigação do celibato para os primeiros três séculos, mas não temos também nenhum texto que negue motivadamente a sua existência. É este o motivo pelo qual se pode considerar como suficientemente justificada a reivindicação da origem de uma lei que remonta aos Apóstolos, assim como se exprime no século IV. 
II. Alguns problemas particulares 
            A guisa de contra-prova, convém examinar alguns documentos que levantam um problema particular. 
O Concílio de Elvira
O primeiro é o cânon 33°. Do Concílio de Elvira (início do século IV): “Pareceu coisa boa proibir em sentido absoluto aos Bispos, aos presbíteros e aos diáconos, como também a todos os clérigos empenhados no ministério de ter ralações (conjugais) com a própria mulher e de gerar filhos. Se alguém o fizer, que e seja excluído do estado clerical”. Seguindo o Funk, alguns querem ver aqui a primeira tentativa oficial de inaugurar uma disciplina de continência perfeita para o clero. Ora bem, um exame atento do documento manifesta com toda evidência um contexto histórico precedente. Efetivamente, nada é dito sobre a liberdade de usar o matrimônio que teriam tido até então os clérigos casados. Considerada a natureza dos requisitos exigidos, o silêncio dos legisladores sobre este ponto é compreensível mais facilmente no caso em que eles reiterem e confirmem uma prática já em vigor, ao invés do contrário. Não se impõe bruscamente a esposos a continência perfeita sem dizer o motivo pelo qual aquilo que até agora era permitido torna-se de repente proibido! Sobretudo, como neste caso, se são previstas penas canônicas em relação àqueles que não obedeçam as normas emanadas. Pelo contrário, se se tratava de remediar infrações em relação a uma regra já antiga, compreende-se como os Bispos espanhóis não tenham julgado necessário justificar uma determinação tão severa. 
O Concílio de Nicéia
O terceiro cânon disciplinar do concílio diz respeito à castidade dos clérigos: “O Concílio proibiu absolutamente aos Bispos, aos presbíteros, aos diáconos e a todos os membros do clero ter consigo uma mulher ‘convivente’, a menos que se trate de mãe, de uma irmã, de uma tia ou de qualquer pessoa acima de qualquer suspeita”. Note-se antes de tudo que o texto não menciona as esposas entre as mulheres que os clérigos possam hospedar nas próprias casas, o que é já um sinal de que o que está por trás da decisão de Nicéia é, sem dúvida, a disciplina da continência perfeita. Isto aparece ainda mais plausível se pensarmos que os primeiros nomeados, os Bispos, sempre foram submetidos, seja no Ocidente como no Oriente, sem exceção alguma. Além do mais, este terceiro cânon do primeiro concílio ecumênico, cujas decisões constituíram “a regra fundamental que serviu de modelo aos concílios locais e ecumênicos sucessivos nas disposições por eles adotadas”, foi em seguida constantemente interpretado pelos Papas e concílios particulares no mesmo sentido: colocar os Bispos, presbíteros e diáconos, obrigados à continência perfeita, a salvo das tentações femininas e garantir a sua boa reputação. Quando eles invocam o caso da esposa, é geralmente para autorizá-la a viver com o mario ordenado, mas com a explícita condição de que também ela tenha feito profissão de continência. Assim, ela passou a fazer parte da categoria das mulheres “acima de qualquer suspeita”. 
Segundo o historiador grego, Sócrates, um curioso episódioter-se-ia verificado ao Concílio de Nicéia. O sínodo teria desejado proibir aos Bispos, presbíteros e diáconos de ter relações com suas esposas. Sobre este assunto um certo Pafnúncio, Bispo da Alta tebaida, teria feito uma intervenção e dissuadira a assembléia de votar semelhante lei, nova – assegurou – e que prejudicaria à Igreja. Esta história atualmente é geralmente considerada falsa pelos seguintes motivos: 1) Sócrates, que escrive sua História Eclesiástica em 440, mais de um século depois do Cncílio de Nicéia, não cita a sua fonte. 2) Tal narrativa tardia tem contra si, por outro lado, o testemunho de numerosos representantes da época pós-nicena. Para o período que vai de 325 a 440 não se encontra em toda a literatura patrística alguma alusão as uma intervenção de Pafnúncio. 3) O nome de Pafnúncio não figura entre os Bispos signatários do Concílio de Ncéia, como sustenta o Professor Winckelmann. 4) Finalmente, a história de sócrates não está em nada em harmonia com a práxis da Igreja grega a respeito do matrimônio dos clérigos, contrariamente ao que às vezes se afirma. Nenhum concílio antes de Nicéia jamais autorizou aos Bispos e presbíteros de contrair matrimôniov nem a usar do matrimônio que teriam podido contrari antes de sua ordenaçào. O Concílio Quinisexto, que a respeito fixará de modo definitivo a legislação bizantina,conservará intacta a lei da continência perfeita para o Bispo, enquanto os outros membros do clero que receberam as ordens maiores, autorizados a viver com sua mulher, serão convidados à continência temporária. Os orientais não citam nunca o episódio de Pafnúncio. O primo a mencioná-lo foi Mateus Blastares, no século XIV. 
Os clérigos casados nos primeiros séculos da Igreja. A questão do matrimônio dos Apóstolos 
            Um outro problema que deve ser examinado é o levantado pela existência nos primeiros séculos da Igreja de numerosos clérigos casados. Primeiramente a situação de Pedro e talvez de outros Apóstolos casados. No momento em que Cristo os chamou à sua sequela, eles deixaram “tudo”, inclusive as próprias esposas ou continuaram como antes a própria vida conjugal? Como já vimos, trata-se de uma questão que cada um tende naturalmente a colocar hoje e que é de um interesse evidente para verificar se a lei da continência perfeita dos clérigos remonta a uma origem apóstolica, como afiramam os documentos do século IV. Quando os Padres africanos de 390 asseguraram querer observar “aquilo que os Apóstolos ensinaram”, eles se referiram não somente ao ensinamento oral, mas antes de tudo ao exemplo que, segundo eles, os Doze deram à posteridade. Este exemplo, com efeito, teve, sem dúvida, um papel determinate na vida da Igreja e na organização da sua disciplina. O Nnovo Testamento dá-nos um só exemplo: o matrimônio de Pedro. Portanto, é à Tradição das origens que é necessário dirigir-se para ter mais indicações. A pesquisa, realizada através da literatura cristã da época, chega às seguintes conclusões: 
1) Além do caso de Pedro não existe nenhuma tradição geral e constante subre a qual se possa basear para afirmar com certeza que algum Apóstolo tenha tido esposa ou filhos ou que fosse, vive-versa, celibatário. Há duas exceções: o Apóstolo João, que uma tradição quase unânime reconhece como tendo sido virgem e o Apóstolo Paulo, que a maioria dos Padres retém que não se tenha jamais casado ou, no máximo, que fosse viúvo. 
2) Sobre o modo de viver dos Apóstolos logo após o seu chamado, os Padres todos afirmam, com a mesma segurança, que aqueles que entre eles eram casados interromperam a vida conjugal e viveram a continência perfeita. Este surpreendente consenso dos Padres sobre um ponto tão importante constitui uma hermenêutica com autoridade aplicável às passagens do Evangelho nas quais se faz alusão à separação dos discípulos: “Então, Pedro, tomando a palavra, disse: ‘Eis que nós deixamos tudo e te seguimos...’” (Mt 19,27). “E ele respondeu: em verdade eu vos digo: não há ninguém que tenha deixado casa ou mulher ou irmãos ou pais ou filhos por causa do Reino de Deus, que não receba muito mais no tempo presente e a vida eterna no tempo que virá” (Lc 18,29-30). O sentimento comum dos Padres, sem exceção, era, portanto, que os Apóstolos tenham sido os primeiros a deixar tudo, inclusive, eventualmente, as suas mulheres, pelo Reino de Deus. Encontramos aqui um eco da pregação oficial dos primeiros séculos nos grandes centros além de um sólido argumento inspirado na Tradição. 
Exemplos de clérigos casados nos primeiros quatro séculos 
Nos primeiros séculos da Igreja, houve numerosos Bispos, presbíteros e diáconos casados e com filhos. As comunidades cristãs da época, que viviam intensamente a recordação dos Apóstolos, consideravam efetivamente um fato normal a admissão de homens casados ao ministério. Isto era considerado um tributo à santidade do matrimônio e ao mesmo tempo à escolha do Senhor que havia chamado Pedro e, talvez, outros homens casados a deixar tudo e segui-lo. Os documentos públicos e outros textos patrísticos que lemos atestam indiretamente a existênciam destes clérigos monogâmicos. Além do mais, as narrativas da época e a epigrafia conservaram a recordação de um bom número desses. Já que a verdade e as ciências históricas têm tudo a ganhar com um conhecimento exato dos fatos, ocupei-me em redigir, através das fontes disponíveis, uma lista de clérigos casados que pudesse oferecer uma base de reflexão suficientemente ampla. No que se refere aos sete primeiros séculos, duzentos e trinta nomes de Bispos, presbíteros e diáconos casados fazem parte do dossier. Entre eles há muitos personagens ilustres: o Bispo Antônio, de uma diocese suburbicária de Roma, que foi pai do Papa Damaso (366-384); o presbítero Jucundo, pai de Bonifácio I (416-419); o sacerdote Félix, pai de Félix III (483-492); o sacerdote Pedro, pai de Anastásio II (496-498); o sacerdote Jordão, pai de Agapito I (535-536); o subdiácono estevão, pai de Adeodato I (615-618) e o Bispo Teodoro, originário de Jerusalém, pai de Teodoro I (642-649). O Papa Hormisdas, no século VI, teve como sucessor seu próprio filho Silvério (536-538) e São Gregório Magno nos informa que seu trisavê era Félix III, por sua vez filho de um sacerdote. 
Citamos ainda: Demétrio, Patriarca de Alexandria (Bispos de Orígenes), Gregório, o Iluminador, primeiro “catholicos” armeno, e os seus sucessores da dinastia gregoriana: o “catholicos” Verthanès, Nersès, o Grande e Sahaq, o Grande; Gregório de Nissa; Gregório de Nazianzo, chamado “o Velho”, Sinésio de Cirene, Hilário de Poitiers; Panciano de Barcelona; Severo de Ravena; Vítor da Numídia; Euquério de Lião; Juliano de Eclano, Sidoino Apolinário, Bispo de Clennont e muitos outros. 
O exame dos casos particulares evidencia a importância do conceito de celibato-continência  - ou de continência perfeita – em vista duma avaliação adequada da realidade clerogâmica nas origens da Igreja. A questão à qual se deve procurar responder um historiador atento é, com efeito, a seguinte: Este clérigo casado continuou a conviver maritalmente com a própria esposa mesmo após a própria ordenação ou viveu na continência perfeita? Ignorar ou escamotear a questão, como se faz às vezes, equivale a subestimar um traço essencial da fisionomia do sacerdócio nesse período. A lista nos mostra que não existe nenhum exemplo de clérigo casado do qual se possa afirmarque ele viveu maritalmente com a própria esposa depois da ordenação, em conformidade com um costume reconhecido ou com uma disciplina oficial. Além do mais, os fatos atestam que alguns viveram na continência perfeita, aceitando uma disciplina bem estabelecida, como nas Gálias e na Itália. Em outros casos, como em parte da Armênia em comunhão com Roma, a história dos “Catholicos” permite supor o mesmo com fundamento. 
A disciplina das Igrejas do Oriente 
A análise dos documentos dos primeiros quatro séculos da Igreja relativos ao celibato sacerdotal oferece à síntese bases suficientes para fazer do cânon de Cartago de 390 uma chave de interpretação perfeitamente segura. Com a afirmação: “Aquilo que os Apóstolos ensinaram e que a antiguidade desde sempre observou, façamos de modo a observarmos também nós”, os Padres africanos – nós podemos já presumir – exprimiram a verdade da história. 
Apesar disto, resta-nos examinar uma última objeção, jáque a tradição das Igrejas orientais, que admitem à ordenação homens casados e em seguida pede deles somente uma continência periódica, cria evidentemente um problema. O documento essencial a este respeito é aquele do Concílio Quinisexto, chamado do Trullo, que permanece – já se sublinhou com justiça – a “última palavra da disciplina eclesiástica para a Igreja grega”. Mas também a primeira. Porque antes de tal Concílio, celebrado ao fim do século VII em Constantinopla, nenhum sínodo oriental, é importante dizê-lo, votou uma lei contrária às normas sobre a continência perfeita dos membros do clero que receberam as ordens maiores, tal como conhecemos pelos textos que encontramos nos séculos anteriores. A Assembléia bizantina de 691 adotou sete cânones relativos ao matrim6onio e à continência dos clérigos, conservando mais de uma costume conforme àqueles da Igreja universal. Esses axigiam, em particular, a separação do Bispocasado dasua esposa (câns. 12 e 48) e proibia aos presbíteros e aos diáconos contrair matrimônio depois da sua ordenação (câns. 3 e 6). Todavia, do ponto de vista da continência exigida aos presbíteros e aos diáconos casados, os Padres reunidos “sob a Cúpula” realizam uma inovação, autorizando esses clérigos a conservar a própria esposa e a observar unicamente uma continência periódica (cân. 13). Mesmo garantindo querer conformar-se plenamente “à antiga regra da estrita observância e da disciplina apostólica”, esses Padres mostram, através das referências que eles próprios citam para justificar a própria decisão, que se distanciam da linha originária. Com efeito, duas autoridades tradicionais, são invocadas pelo cânon do Trulano: o Concílio de Cartago de 390 e o VI dos cânones chamados “apostólicos”. A propósito destes últimos, seu caráter apócrifo não permite que sejam reconhecidos como um testemunho seguro a respeito da disciplina. E, com maior razão, levando em conta do que se lê no VI cânon: “Que nenhum Bispo, presbítero ou diácono afaste a própria esposa com o pretexto de piedade...” O Concílio Quinisexto fala somente dos presbíteros e dos diáconos, e tal omissão intencional deixa perplexo. Por outro lado, a citação do cânon de Cartago, inspirada no Codex Ecclesiae Africanae, de 419, foi ela também emendada. Onde os Padre africanos dizem: “Convém que os santos Bispos e os presbíteros de Deus, como também os levitas... observem uma continência perfeita”, os bizantinos corrigem e dizem que “também os subdiáconos... os diáconos e os presbíteros se abstenham de suas esposas nos períodos que lhe são particularmente indicados” (kata tous idious orous). Assim, a menção dos Bispos desaparece e a continência pedida aos clérigos “que tocam os santos mistérios” é somente periódica. Trata-se de um erro ou de uma maquiagem? Em todo caso, o principal testemunho sobre o qual se fundamente o Concílio Trulano para justificar o uso do matrimônio dos presbíteros, diáconos e subdiáconos, é um documento conciliar que, de modo incontestável, exige desses a continência perfeita e faz remontar esta obrigação àso rigens da Igreja. 
A objetividade histórica não parece, portanto, poder fundamentar-se na certeza que seria necessária a hipótese segundo a qual as Igrejas do Oriente dependeriam de uma tradição apostólica, enquanto a disciplina da continência perfeita na Igreja latina seria o fruto de uma evolução tardia. Tudo indica o contrário: a Igreja latina que é conservou, no que concerne à continência perfeita para os Bispos, presbíteros e diáconos, a tradição da Igreja indivisa, inaugurada pelos Apóstolos, enquanto os Bispos orientais do final do século VII, por motivo de circunstâncias particulares, distanciaram-se de tal tradição e orientaram o futuro do seu clero numa nova direção.  
Apesar de suas interpretações forçadas do cânon africano, os Padres bizantinos de 691 referiram-se a ele como um fundamento essencial para poder remontar aos tempos apostólicos, demonstrando desse modo toda importância do Concílio de Cartago de 390 para a história da lei sobre a continência sacerdotal. 
III Tentativa de síntese histórica 
Os documentos apresentados anteriormente compõem a parte analítica do dossier sobre as origens do celibato sacerdotal. Eles permitem vislumbrar a síntese, já que a reconstrução de uma história da continência perfeita do clero, que tem seu ponto de partida no tempo dos Apóstolos, parece já como resultado lógico de uma série de testemunhos convergentes. 
Para progredir com segurança no caminho da síntese histórica, é necessário antes de tudo referir-se a um ponto fundamental no desenvolvimento docristianismo, isto é a existência da Tradição oral. Ela é atestada em duas cartas de São Paulo: “Irmãos, permanecei firmes e mantende as tradições que recebeste tanto pela nossa palavra quanto pela nossa carta”, escreve aos Tessalonicenses (2Ts 2,15); e aos cristãos de Corinto: “Louvo-vos porque em tudo recordais de mim e conservais as tradições assim como eu vos transmiti” (1Cor. 11,2). Os Padres referem-se freqüentemente a estas palavras de São Paulo e pensam que permanecer fiéis às tradições recebidas “de viva voz”eqüivale a permancer nas orientações apostólicas. 
Ter conta disso não significa não significa certamente não ser fiel ao método histórico, como temem alguns, para os quais só os documentos escritos merecem fé. Significa, ao contrário, dotar esse método do instrumento de pesquisa mais apropriado possível ao seu objeto para os primeiros séculos do cristianismo. Substimá-lo, ao invés, significaria priver-se de um instrumento de conhecimento útil – e talvez único – graças ao qual pode-se conhecer o que foi vivido na Igreja antes de ser dito e, sobretudo, escrito. 
Observamos também que a tradição oral sobre o celibato, à qual nos manda os testemunhos do século IV e da Igreja primitiva no seu conjunto é uma das tradições que mais se fundamentaram em razões teológicas. Efetivamente, as razõs invocadas para justificar a disciplina da continência perfeita para os clérigos que receberam as ordens maiores são, além da fidelidade à tradição, considerações que dizem respeito à doutrina: função de intercessão do ministério sacerdotal, relação entre continência e eficácia da oração, superioridade da virgindade e da continência sobre o matrimônio. Sobre estes diversos pontos, a disciplina bizantina definida no Concílio Trulano de 691 está em  perfeita consonância com todo o pensamento patrístico. 
Tal tradição oral sobre o celibato sacerdotal é realmente de origem apostólica, como mostram os nossos documentos? 
O princípio hermenêutico mais apropriado para responder à questão é aquele enunciado por Santo Agostinho na controvérsia com os donatistas: “O que é observado em toda Igreja e sempre foi mantido sem ser estabelecido pelos concílios, é considerado a justíssimo título como algo que só pode ter sido transmitido pela autoridade apostólica”. 
O valor fundamental deste princípio liga-se essencialmente ao fato que a fidelidade em relação à tradição das origens constitui a regra da vida da Igreja dos primeiros séculos . A tendência geral da época patrística é de manter e de consercar o depósito transmitido e não de inovar, a tal ponto que os próprios hereges procuravam fundamentar suas novidades nos Apóstolos. Formulando o seu princípio, o Bispo de Hipona reconhece que esta tendência garante a possibilidade de remontar às fontes apostólicas, precisando ao mesmo tempo as condições necessárias para eliminar os riscos de erros, que são as duas seguintes: é necessário que um ponto de doutrina ou de disciplina “tenha sido observado por toda a Igreja e que tenha sido sempre mantido”. 
A parte sintérica do nosso estudo consiste, por isso, em verificar em que medida se pode afirmar que a disciplina da continência perfeita dos clérigos, atestada pelos documentos a partir do século IV, tenha sido “observada em toda a Igreja” e tenha sido ou não “sempre mantida”. 
1) A tradição do celibato-continência dos clérigos foi observada por toda a Igreja? Do ponto de vista histórico, podemos responder com a máxima segurança que sim, porque vemos homens que gozam de uma grande autoridade moral e intelectual fazerem-se fiadores para toda a Igreja do seu tempo: não só um Siríaco e um Jerônimo, mas também muitos outros com eles: Eusébio de Cesaréia, Cirilo de Jerusalém, Efrém, Epifânio, Ambrósio, Ambrosiáster e Bispos de Cartago. No sentido contrário, nenhuma voz com autoridade opõe-lhes um desmentido seguro. Mais claramente ainda, temos o testemunho das Igrejas apostólicas e, antes de tudo, o da Igreja de Roma que, através de três Decretais que nos são conhecidas, é de um peso determinante. É a respeito delas que São Roberto Belarmino não hesita em dizer: “Deve-se crer sem sombra de dúvida que uma coisa deriva da Tradição apostólica se for considerada tal pelas Igrejas nas quais se conserva uma sucessão sem fratura e contínua a partir dos Apóstolos”. Mas há também as Igrejas do Oriente e do Egito, das quais fala Jerônimo, as da África, da Espanha e das Gálias, que testemunham todas no mesmo sentido. Também sobre este ponto, nenhum concílio em comunhão com Roma atesta uma tradição diferente. 
2) Observada por toda Igreja dos primeiros séculos, a tradição do celibato-continência do clero foi sempre mantida? Notemos, antes de tudo, que no período que decorre das origens da Igreja ao período em que vemos a disciplina “observada por toda a Igreja”, nenhum decisão emanada por uma instância hierárquica legítima prova a existência de uma prática contrária. Efetivamente, os documentos autênticos do Concílio Ecumênico de Nicéia, contrariamente ao que a lenda de Pafnúncio fez crer frequentemente, não contêm decisão alguma que consinta supor que a lei do celibato-continência não existisse antes de 325. Além do mais, nenhuma Igreja apostólica, nem no Oriente nem no Ocidente, durante os primeiros séculos da Igreja, adota uma tradição diferente para fazer frente às Decretais de Siríaco (enquanto a questão da data de Páscoa, por exemplo, deu lugar a uma célebre disputa). Enfim, é oportuno verificar se a disciplina do celibato-continência não seja contradita pelos textos da Escritura, em cujo caso seria perdido pretender afirmar que ela sempre tenha sido mantida. Ora, não só os textos bíblicos que exortam à continência “pelo Reino dos céus” manifestam uma real conexão entre o celibato e o sacerdócio ministerial, mas a entrega do Apóstolo Paulo do “Unius uxoris virum” (esposo de uma só mulher), interpretado de modo claro pelo Magistério na pessoa do Papa Siríaco e dos seus sucessores como uma norma apostólica destinada a assegurar a continência futura dos Bispos e dos diáconos (propter continentiam futuram) mostra, desde as origens da Igreja, o aparecimento de tal disciplina. 
Portanto, parece que coexista o conjunto de condições para poder razoavelmente afirmar que a disciplina do celibato-continência para os membrosdo clero que tinham recebido as ordens maiores era, nos primeiros séculos, “observada por toda a Igreja” e sempre “fora mantida”. O princípio agostiniano que permite reconhecer se uma tradição é verdadeiramente de origem apostólica encontra aqui – disso estou convencido – uma adequada e justificada aplicação. 
            Como conclusão, gostaria de sublinhar que a motivação teológica fundamental invocada na literatura patrística dos primeiros séculos para justificar a disciplina da continência perfeita do clero era a oração de intercessão. O Concílio de Cartago, de 390, a exprime numa fórmula precisa. Se os Bispos, os presbíteros e os diáconos devem se abster das relações conjugais, é “para poder obter com toda simplicidade quando suplicam a Deus”
 (quo possint quod a Deo postulant impetrare). O que lhes obtém este lugar privilegiado no diálogo com Deus é que eles são, sempre segundo o mesmo Concílio, "qui sacramentis inserviunt" (aqueles que estão a serviço dos divinos sacramentos), "qui sacramenta contrectant" (aqueles que são encarregados do serviço do Altar). Tais expressões qualificam indistintamente os três graus superiores do estado clerical; elas indicam que um caráter comum comporta para todos o mesmos deveres e que o serviço dos sacramentos e do Altar, ouseja o serviço da Eucaristia, é o fundamento específico da continência que lhes é exigida. A liturgia eucarística faz daquele que está ao serviço dos mistérios divinos um mediador, o qual, através de sua união íntima com o único Mediador - per Ipsum, cum Ipso et in Ipso -, apresenta a Deus os pedidos dos homens, seus irmãos. A tal título, ele deve assegurar-se das condições exigidas para uma efizaz oração de intercessão, e a castidade perfeita, à imitaçào de Cristo, é para ele garantia de ser escutado. O comentário do cânon do Concílio de Cartago de 390 por parte do grande canonista bizantino Jean Zonaras, do século XII, sublinhará perfeitamente esta fundamental idéia patrística: “Eles são, de fato, intercessores entre Deus e os homens e, estabelecendo um liame entre a divindade e o resto dos fiéis, pedem pelo mundo inteiro a saúde e a paz. Por sso, se eles se exercitam, como diz o cânon, na prática das virtudes e dialogam assim com Deus na máxima confiança, obterão tudo aquilo que pedirem. Mas, se esses mesmos homens se privam por culpa deles próprios da liberdade de palavra, de que modo poderão dedicar-se ao seu trabalho de intercessores em benefício dos outros?” 
            A motivação teológica central do celibato sacerdotal é, portanto, diretamente inspirada na Epístola aos Hebreus. Mostrando no mistério da Eucaristia um mediador a serviço dos homens, chamado por tal título a uma santidade de vida caracterizada pela castidade perfeita, ela coloca numa justa perspectiva as outras razões invocadas na época para justificar o celibato-continência, em particular o dever da paternidade espiritual (que substitui aquele da geração carnal), a necessidade de renunciar à “carne”para aproximar-se da santidade de Deus, o exemplo a ser dado aos virgens e aos continentes e, numa certa medida, a disponibilidade para os trabalhos apostólicos. Assim sendo, pode-se avaliar quanto seja inexato falar em “continência cultual”ou de “pureza cultual”, como se fez muito frequentemente para tentar desvalorizar o motivo fundamental da lei do celibato, dando-lhe origem de qualidade suspeita. Tais expressões são cheias de ressonâncias pagãs ou filosóficas (sobretudo estóicas), que não estão em sintonia com o espírito do cristianismo. Na realidade, é a liturgia, e a liturgia eucarística sobretudo, que, atualizando o mistério pascal, conduz o povo cristào, e a um título especial e permanente, o “servidor do altar”, a uma identificação ao Cristo que ora e se oferece ao Pai pela salvação do mundo. Na celebração eucarística está presente o próprio Cristo; Deus-homem que associa os seus ministros à sua pessoa e ao seu sacrifício, e náo uma divindade impesoal ou abstrata que gera um tabu irracional. É necassário dizê-lo claramente: há tanta diferença entre a “continência cultual” e a castidade perfeita dos presbíteros de Jesus Cristo quanto há entre os cultos pagãos – porquanto possam ser respeitáveis – e o sacrifício de Cristo. 
Ao fazer referência aos Apóstolos como promotores da tradição do celibato eclesiástico, os Padres do século IV nos asseguram, além do mais, que esta tradição está em harmonia com o Evangelho, bem longe de ser-lhe estranha como gostariam os seus detratores. A história e a teologia do sacerdócio são unânimes em afirmar que a continência dos sacerdotes de Jesus Cristo modela-se naquela do único Sacerdotes da Nova Aliança. É através da imitação de Jesus Cristo e para que tal imitação se perpetue nos seus sucessores, que os Apóstolos viveram e ensinaram com o seu exemplo o chamado adeixar tudo para seguir o Senhor e, assim, tornar-se estreitamente associado à sua mediação redentora. Com efeito, o que foi dito a propósito de Cristo no Novo Testamento foi sempre compreendido como dito também dos seus sacerdotes: “Todo sumo sacerdote, escolhido dentre os homens, é constituído em favor dos homens nas coisas que dizem respeito a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados”(Hb 5,1). 
No decorrer dos séculos, a Igreja nunca perdeu de vista esta linha essencial, mesmo que a ênfase se tenha deslocado, às vezes, para motivações relativamente secundárias, se bem que de importância incontestável, e mesmo que se tenha manifestado por parte de alguns a tendência de retornar ao Antigo Testamento, “funcionalizando” o serviço sacerdotal e esquecendo que, investindo-o com a sua própria pessoa, Cristo “trouxe toda novidade”. Efetivamente, falsearíamos fortemente o sentido do “a fortiori” utilizado por Siríaco e outros autores patrísticos se explicássemos a passagem da continência temporária dos levitas para a continência perpétua dos sacerdotes da Nova Aliança, se víssemos somente um salto quantitativo, enquanto a Eucarisia realiza a mundança radical, que faz da castidade dos seus ministros uma novidade também sem precedentes. 
A identidade do sacerdote, esse mistério que supera o homem e supera o próprio sacerdote, não pode ser expressa de modo melhor que com as palavras da Carta aos Hebreus, que serviu de motivação teológica para a lei do celibato desde as origens da Igreja e foi ainda recentemente recordada pelo Papa João Paulo II. 
Desde o início, o Presbítero, como escreve o Autor da Certa aos Hebreus, “escolhido entre os homens, é constituído para o bem dos homens nas coisas que dizem respeito a Deus” (Hb 5,1). Eis a melhor definição da identidade do Presbítero. Todo Presbítero, segundo os dons que lhe foram concedidos pelo Criador, pode servir a Deus de modos diversos e,através do seu ministério, ocupar-se com diversos setores da vida humana, aproximando-os de Deus. Contudo, ele permanece, e deve permanecer, um homem escolhido entre os homens e “constituído para o bem dos homens nas coisas que dizem respeito a Deus”.

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