Nos últimos anos, o número de freiras vem caindo no Brasil. Como é a rotina das jovens que, nos dias de hoje, decidiram trocar família, emprego e badalação por uma vida de regras, orações e trabalhos voluntários
por Natália Martino
O dia nem raiou e um grupo de dez mulheres já está reunido em frente a uma discreta cruz. O silêncio, que chega a ser inquietante, é quebrado poucos minutos depois por um coro de diferentes sotaques que entoa versos bíblicos na pequena capela. É assim que começam todos os dias no Noviciado Nossa Senhora das Graças, da Congregação Religiosa das Filhas de Maria Auxiliadora, ou Salesianas de Dom Bosco, em São Paulo. Sete noviças, provenientes de diferentes Estados, são diariamente acompanhadas na rotina de orações, aulas e trabalhos por três religiosas formadoras. As noviças, com idade entre 21 e 26 anos, se preparam para a vida religiosa há pelo menos quatro. Fazem parte de um grupo cada vez mais raro, o de jovens que decidem fazer os votos de pobreza, castidade e obediência propostos pela Igreja Católica a elas.
A decisão significa mudanças radicais de vida. Quem vê Elaine de Morais Ferreira, 26 anos, caminhando confiante pelos corredores do noviciado, por exemplo, não imagina que há pouco mais de quatro anos ela era frequentadora assídua de shows de música sertaneja. Criada em Rondonópolis, em Mato Grosso, trabalhou com telemarketing em duas empresas de logística e foi vendedora de roupas íntimas na loja da família antes de optar por ser freira. “Minha vida era supernormal, gostava de dançar e de sair com as amigas, usava o carro do meu pai para ir a festas”, conta. Por coincidência, no dia em que tomou a decisão definitiva de entrar para o noviciado recebeu a notícia de que havia sido aprovada em letras na Universidade Federal de Mato Grosso. “Precisei fazer uma opção e escolhi a vida religiosa”, orgulha-se.
Os estudos universitários são incentivados, mas apenas depois do período de formação. Às noviças, é exigida dedicação integral. Quando se tornam religiosas e podem ingressar na faculdade, costumam fazer vestibular para o curso indicado pela congregação. São comuns estudos nas áreas de administração e pedagogia. Formadas, o local onde irão trabalhar também será definido pela irmandade. “O que a superiora decidir será a voz de Deus, ela vai me enviar para onde precisarem de mim”, diz Rosalva Veiga Batista, 22 anos, noviça indígena da etnia baré, do interior do Amazonas. Isso é resultado do voto de obediência, o mesmo que as faz dizer apenas “é a tradição da Igreja” diante de qualquer questionamento sobre dogmas e rituais católicos.
As trajetórias das jovens noviças são marcadas por uma ligação estreita com o catolicismo desde a infância. Nenhuma, porém, cita um fato específico que tenha desencadeado a vocação. “As pessoas acham que em algum momento Deus aparece e nos diz para seguirmos esse caminho”, conta a noviça Kelly Gaioso de Andrade, 25 anos, natural do Maranhão. “Mas não é assim. Descobrimos a vocação no dia a dia.” O chamado para a devoção é o que parece uni-las, apesar das dúvidas existentes antes da tomada final de decisão. “Via as religiosas da minha cidade fazendo trabalhos em orfanatos e escolas, achava bonito e queria ser como elas”, conta Vanessa Cristina da Silva, 21 anos, de Minas Gerais. “Mas, nas novelas, elas eram sempre tão sérias, tão tristes, que eu tinha medo de seguir esse caminho.”
Esse estereótipo não se confirma entre as noviças. Sempre sorridentes, brincam cantando paródias de músicas da cultura pop. Também são animados os relatos sobre as festas e as olimpíadas organizadas por elas. “Gosto de dançar e aqui continuo fazendo isso, não há por que sentir falta dos shows que a gente frequentava antes”, diz a matogrossense Elaine. Como qualquer moça de 20 e poucos anos, todas possuem e-mail e perfil nas redes sociais. O grande tabu continua sendo falar sobre os possíveis encontros amorosos antes do convento. Todas desconversam e dizem um tímido “eu era como qualquer outra jovem”.
Para seguir a vida religiosa, uma das principais exigências hoje é ter o ensino médio completo. A partir dos 17 anos, as meninas iniciam a formação que dura em torno de cinco anos. No caso das salesianas, a última etapa é sempre cumprida em São Paulo, onde os dias transcorrem entre orações, estudos, leituras e trabalho. Algumas horas também são reservadas para aulas de canto e música. Um dia por semana, atuam como educadoras na área de formação humana com os jovens do Centro Profissionalizante Dom Bosco. Aos sábados também desenvolvem um trabalho pastoral com os grupos de crianças e adolescentes da Paróquia São João Bosco.
A rotina é espartana. No noviciado, todas acordam cedo, antes das 6h, e dormem antes das 23h. Ao longo do dia, vivem tudo comunitariamente. Dormem em beliches, limpam a casa que as abriga, preparam as refeições e se reúnem para rezar. Com exceção de um tempo reservado à oração e aos estudos individuais, tudo é feito em conjunto, mesmo quando saem do noviciado para passear em um parque ou ir ao cinema, por exemplo. “Celular? Para que se estamos sempre juntas? Quando saímos, levamos um telefone para o grupo”, explica a maranhense Kelly. Itens pessoais, como roupas e artigos de higiene, devem ser solicitados à congregação, uma vez que as jovens não têm acesso a dinheiro. É uma preparação para o voto de pobreza, que simboliza o desprendimento material.
Quando saem do convento, as noviças e as freiras se mesclam nas multidões da rua sem serem notadas. Desde o Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, o hábito deixou de ser uma exigência. As irmãs salesianas usam calças jeans, tênis e camisas, sempre com mangas. Não há regras para o uso dos cabelos. O símbolo da congregação é apenas um crucifixo das Irmãs Filhas de Maria Auxiliadora que as religiosas carregam no peito. “Toda escolha na vida implica abrir mão de outras coisas”, diz a noviça Kelly. “Nossa rotina não é baseada no que não podemos fazer, mas no que decidimos fazer ao entrar para a vida religiosa. É o ‘sim’ a essa vida religiosa que nos define, nunca os ‘nãos’ aos quais nos submetemos.”