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SEXO SEM PRECONCEITO

Deitada no leito do consultório médico, Cíntia Carvalho Bento tira os óculos para enxugar as lágrimas. Era 6 de março. Ela acabara de ouvir, pela primeira vez, os batimentos cardíacos de seu bebê. “Graças a Deus, tem um neném na minha barriga.” Cíntia, de 38 anos, traz no rosto os sinais da síndrome de Down: olhos pequenos e amendoados, boca em forma de arco, bochechas proeminentes. E, na alma, desejos semelhantes aos das mulheres comuns: trabalhar, namorar, casar, ser mãe. Todos realizados. Cíntia nasceu numa família que aprendeu a dialogar e a respeitar, quando possível, suas escolhas. E que não encarou sua deficiência intelectual – característica dos Downs – como um obstáculo incontornável.
“Aceitamos bem os namoros e o casamento da Cíntia. Meu marido e eu sempre achamos que nossa filha deveria levar uma vida próxima do normal”, afirma Jane Carvalho. “A gravidez é que foi um susto. Tivemos medo de que a criança viesse com problemas de saúde. Mas logo descobrimos que não.” Augusto está com 3 meses. “Estou muito feliz. Pego ele no colo, mudo (as fraldas), dou banho”, diz Cíntia. A gestação não foi planejada. Mas Cíntia sempre quis ter um filho. Ela conheceu o marido, Miguel Egídio Bento, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Florianópolis. Cíntia era aluna. Miguel, hoje com 42 anos, funcionário. A amizade virou namoro bem depois, numa colônia de férias. O casamento, em junho de 2006, foi como nos sonhos dela: vestido de noiva, igreja, festa e lua de mel.
A vida de Cíntia é uma exceção. As relações afetivas e sexuais são o tema mais controverso e cercado de preconceitos no universo da deficiência intelectual – um assunto que mexe com valores morais e culturais. “É necessário derrubar o mito de que as pessoas com deficiência intelectual são assexuadas ou têm a sexualidade exacerbada”, afirma Fernanda Sodelli, diretora do Núcleo de Estudos e Temas em Psicologia. “Elas não são anjos nem feras que precisam ser domadas. E têm o direito de viver a sexualidade.” Isso quer dizer não apenas o direito de transar, mas o de conhecer o próprio corpo e aprender como se comportar na intimidade: saber se cuidar, estabelecer relações, lidar com as emoções, construir a própria identidade.
Entre os deficientes intelectuais é comum querer namorar apenas para ter o prazer de beijar na boca. Ou de andar de mãos dadas. Manifestações normais da sexualidade ainda hoje são interpretadas como problema. Foi o que a psicóloga Fernanda viu no consultório quando um pai a procurou preocupado com o filho de 18 anos, que se masturbava pela casa. O pai contou que tentara explicar que aquele comportamento seria aceitável apenas quando o filho estivesse sozinho. “Pai, o que é sozinho?”, perguntou o rapaz. Ninguém lhe ensinara a diferença entre o público e o privado, e o que é adequado ou inadequado em cada um desses espaços. Na infância, o garoto era obrigado a usar o banheiro de porta aberta. O quarto nem porta tinha. Ele cresceu sendo espionado o tempo todo, sem noção de privacidade.
No caso de Cíntia, seus pais se deram conta de que era hora de o relacionamento com Miguel evoluir para o casamento quando ela pediu permissão para o namorado dormir na casa da família. No final da adolescência, Cíntia já sentia vontade de namorar. Abraçava árvores e fingia beijá-las como se fossem um príncipe. Viveu o primeiro romance no início da década de 1990, aos 21 anos, numa época em que os direitos sexuais e reprodutivos dos deficientes intelectuais nem sequer eram cogitados. A discussão é recente no país. O movimento de inclusão deu visibilidade aos deficientes e abriu frestas nas portas das escolas e do trabalho.
Pela lei brasileira, os direitos sexuais e reprodutivos dos deficientes intelectuais são os mesmos de qualquer outro cidadão. A garantia desses direitos, no entanto, vai além da capacidade do Estado. Depende do bom senso e da disposição das famílias – a maioria marginalizada durante toda a existência e sem o conhecimento necessário para lidar com a complexidade da questão. A principal dificuldade dos deficientes intelectuais é o pensamento abstrato. Como ensiná-los que atos idênticos podem ter intenções e significados diferentes? E que, por isso, alguns seriam permitidos e outros não? Se o namorado bota a mão no seio da garota, é carinho; quando a mão é do tio ou do vizinho, é abuso sexual. Se a mão é do ginecologista, trata-se de um exame de rotina.
Na dúvida, grande parte das famílias encara a superproteção e a repressão da sexualidade como o único caminho para afastar os filhos dos riscos. Deixar de pensar e decidir por eles é uma tarefa custosa e que exige desprendimento. E, se algo der errado, conseguirei conviver com a culpa? Qual é a medida certa da autonomia? A dependência, às vezes mútua, prejudica o desenvolvimento do deficiente. “Os pais precisam ser trabalhados para enxergar primeiro o filho e depois a deficiência”, diz a assistente social Mina Regen, coautora do livro Sexualidade e deficiência: rompendo o silêncio. “É fundamental que as pessoas com deficiência intelectual sejam ouvidas e aprendam a fazer escolhas desde a infância, por mais simples que sejam.” Isso inclui da roupa a vestir até o que comer.
Segundo especialistas, entre todas as deficiências, a intelectual é a mais temida pelas famílias e a mais discriminada pela sociedade. “Somos educados para acreditar que existe uma hierarquia entre condições humanas”, diz Claudia Werneck, superintendente da Escola de Gente, uma ONG baseada no Rio de Janeiro que desenvolve projetos de inclusão social. “No colégio, as boas notas fazem a alegria dos pais. A felicidade do filho fica em segundo plano.” A Escola de Gente mediu os níveis de intolerância aos deficientes intelectuais em mais de 300 oficinas feitas em dez países. Num determinado momento da exposição, uma pergunta é feita à plateia: “Quem daqui é gente?”. O palestrante segue fazendo questionamentos que provocam o público. “Pelo menos 90% dos presentes dizem que é humano quem tem o intelecto funcionando bem”, afirma Claudia.
No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, há 3 milhões de deficientes intelectuais. São pessoas com “dificuldades ou limitações associadas a duas ou mais áreas, como aprendizagem, comunicação, cuidados pessoais, com a saúde e a segurança”. Não há um ranking das causas da deficiência no país. Mas há diversos fatores de risco: síndromes genéticas (como de Down e de Williams, que afeta as áreas cognitiva, comportamental e motora), doenças infecciosas como rubéola e sífilis, abuso de álcool ou drogas na gestação, desnutrição (da mãe ou da criança) e falta de oxigenação no cérebro.
“Crianças com deficiência criadas em ambientes que favorecem o desenvolvimento e a autonomia podem ser capazes de namorar e constituir família”, afirma Mina Regen. “Cada caso deve ser analisado de acordo com suas singularidades.” Cíntia, de Florianópolis, mora com o marido e o filho na casa dos pais. Em Socorro, São Paulo, cidade de 33 mil habitantes, o arranjo mais conveniente para um casal de deficientes e suas famílias foi diferente. Maria Gabriela Andrade Demate e Fábio Marcheti de Moraes, ambos de 29 anos, vivem com a mãe dele. A filha do casal, Valentina, mora com a avó materna. Todas as manhãs, Gabriela pula da cama e corre para ajudar a cuidar da menina. “Mamãe”, diz a falante Valentina, de 1 ano e meio, ao escutar o barulho da porta.
Quando Gabriela deu à luz, sua história repercutiu pelo Brasil. Na Associação Carpe Diem, na Zona Sul de São Paulo, uma das raras instituições para deficientes intelectuais que lidam com a sexualidade e os direitos reprodutivos, o assunto reacendeu discussões diversas: gravidez, métodos contraceptivos, doenças sexualmente transmissíveis. “Tenho vontade de transar um dia. Mas tenho de estar preparada”, diz Mariana Amato, de 30 anos. “Eu queria engravidar. Gostaria de ser mãe.”
A abordagem da Carpe Diem é a do Projeto Pipa: Prevenção Especial, criado pelas psicólogas Lilian Galvão e Fernanda Sodelli. Conceitos sobre a manifestação da sexualidade são transmitidos, principalmente, em rodas de conversa. Os “jovens Pipa” aprendem, por exemplo, a identificar abuso sexual com o uso de bonecos. A pedagogia ajuda a transformar abstrações em ideias concretas. “Antes do Projeto Pipa, eu tinha um medo danado e ficava confusa”, afirma Ana Beatriz Pierre Paiva, de 32 anos. “O que é sexualidade? O que é namorar? O que é gostar de alguém?” Bia revela que descobriu o próprio corpo, que tem desejos e que os atos de uma pessoa têm consequências – algumas agradáveis, outras não. Também conseguiu se aproximar dos pais e dizer o que pensa. “A vontade de ter um compromisso sério é grande. Mas meus pais acham que sou nova.” A mãe de Bia, Ana Maria Pierre Paiva, reconhece que é “superprotetora” e que teria dificuldades de aceitar um relacionamento da filha.
Bia é de uma geração de deficientes intelectuais brasileiros que começou agora a se engajar num movimento de autodefesa. Junto com Mariana Amato e Thiago Rodrigues, de 22 anos, ela dá palestras sobre direitos sexuais e reprodutivos pelo país. Em agosto, os três estiveram num evento em João Pessoa, Paraíba. “Tem gente que olha para a nossa cara e pensa: ‘Esses garotos não sabem de nada, não crescem’”, diz Thiago. “Geralmente, a gente não pode viver a sexualidade por causa da falta de compreensão das pessoas.”
Certa vez, Mariana e o namorado foram ao cinema e tiveram de trocar de sala porque um casal se sentiu incomodado e chamou o segurança. “O segurança me disse que os dois estavam apenas se beijando”, afirma Glória Moreira Salles, mãe de Mariana. Agora, Mariana e o namorado só se comunicam por internet e telefone. Ela se mudou temporariamente para Lucena, na Paraíba. Durante seis meses, vai morar com a amiga Lilian Galvão, uma das criadoras do Projeto Pipa, e trabalhar numa ONG. “Chegou a minha hora. Vou conviver no mundo lá fora e seguir o meu projeto de vida”, diz Mariana. A mãe, Glória, afirma que, com o decorrer do tempo, passou a enxergar a filha de maneira diferente. “Aprendi que quem põe os limites é ela.”
O sucesso do Pipa é possível porque envolve as famílias. “Se o Pipa tivesse chegado antes, não teria levado minha filha para fazer laqueadura”, afirma uma mãe. A cirurgia seria evitada se a jovem já conhecesse os métodos contraceptivos e soubesse como se proteger de abusos. Ainda há famílias que recorrem à esterilização. “Não é crime. Mas é uma violação de direitos proibida pela convenção da ONU, ratificada pelo Brasil em 2008”, diz Izabel Maior, chefe da Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, ligada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
“A gente tem condições de aprender a se proteger”, diz Mariana, “e, com o suporte da família, a gente pode ter autonomia.” Mariana demonstra ser uma mulher determinada. Bia é doce, fala sorrindo com os olhos. Suas palavras, pronunciadas de maneira calma e fluida, não são menos assertivas que as da amiga Mariana: “Somos seres humanos e nos sentimos como seres humanos, como todos vocês”.
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