Mais dois se juntam ao seleto time de doutores da Igreja Católica: homens e mulheres que, além de alimentar
a fé, são uma inspiração intelectual para seus fiéis
João Loes
Ser um doutor da Igreja Católica Apostólica Romana não é para
qualquer um. Em quase dois mil anos de história, a instituição deu o
título a apenas 33 de seus mais de sete mil santos. Pudera, são doutores
da Igreja apenas os santos que deixaram documentos que sobreviveram ao
tempo e que, de alguma forma, sintetizam a doutrina católica a ponto de
servirem de exemplo como vida religiosa. Nesse sentido, não surpreende
também que sejam poucas as mulheres entre os doutores. Privadas de
educação por milênios, nunca foi fácil para elas deixarem seu legado por
escrito. Assim, hoje apenas três figuram entre os 33 doutores da
igreja: Santa Teresa D’Ávila, Santa Catarina de Siena e Santa Teresa de
Lisieux (leia quadro). Em breve, porém, mais uma entrará nessa seleta
lista. O papa Bento XVI deve anunciar formalmente, em 7 de outubro, a
alemã Santa Hildegarda de Bingen como nova doutora da Igreja Católica.
“É um momento novo para a Igreja, que tenta espelhar o protagonismo que
as mulheres já têm na sociedade dentro da instituição”, afirma Fernando
Altemeyer, professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP).
Nesse contexto, a escolha de Santa Hildegarda como doutora é mais do
que oportuna. Monja beneditina nascida em 1098 onde hoje é a Alemanha,
ela é tida por alguns como representante do feminismo católico do começo
do primeiro milênio. Se publicamente, como religiosa, se mostrava
submissa aos seus superiores homens, no dia a dia, como administradora
do mosteiro Disibodenberg, exercia autonomia consideravelmente maior do
que a média, dando liberdade às monjas, compondo músicas, estudando
ciências naturais e escrevendo. Entre os trabalhos que deixou, há um
livro sobre medicina herbal que trata de questões femininas como cólicas
menstruais, além de outros textos sobre misticismo católico e estudo da
música. “Mulheres assim passaram a ser reconhecidas pela Igreja a
partir do Concílio Vaticano II”, explica o padre Valeriano dos Santos
Costa, diretor da Faculdade de Teologia da PUC-SP. Segundo ele, o
Concílio, reunião de bispos e cardeais que completa 50 anos agora em
2012, arejou a Igreja, abrindo novos horizontes para a instituição e
novas portas para as mulheres.
ALTAR
Santa Hildegarda (1098-1179) (abaixo) deixou a música e a medicina como legado; enquanto o
jesuíta São João de Ávila (1500-1569) (acima) buscou a perfeição na sublimação das paixões humanas
Mas, como a Igreja Católica costuma fincar as pilastras na tradição,
abrindo poucas frestas para a modernidade, no mesmo dia em que Santa
Hildegarda será doutorada, outro homem, o 31o, também ascenderá ao
panteão de luminares da Igreja. É o espanhol São João de Ávila, nascido
em 1500 numa família abastada da cidade de Almodóvar del Campo. Ainda
jovem, São João seguiu o rumo da fé e, logo que seus pais morreram, ele
doou tudo o que a família tinha aos pobres e saiu em missão para
expandir a fé na região da Andaluzia, recém-libertada do domínio mouro.
Foi fundamental na expansão da ordem dos jesuítas na Espanha e deixou
cartas e livros que apresentam o caminho para a sublimação das paixões
humanas. “Antes de tudo, os doutores são agentes de estímulo da doutrina
vigente e de renovação da tradição”, afirma a irmã Célia Cadorin,
autoridade no assunto. São ao mesmo tempo santos e sábios.
Fotos: Shutterstock; The Bridgeman Art Library/Grupo Keystone