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Nulidade matrimonial: quando um casamento é inválido perante a Igreja?



SE VOCÊ VIVE hoje uma situação conjugal não reconhecida pela Igreja, por ter vivido uma união anterior, leia com atenção este artigo; ele foi escrito para você. Disse o Senhor: “Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe” (Mt 19,5-6); e disse também:

Eu vos declaro que todo aquele que rejeita sua mulher, exceto em caso de falso matrimônio, e esposa outra, comete adultério. (Mt 19,9)

A passagem reproduzida acima, do Evangelho segundo S. Mateus, é da tradução da Editora Ave-Maria, – traduzida do grego por monges beneditinos da Abadia de Maredsous (Bélgica), – considerada uma das melhores do mundo, desde sua primeira edição até hoje. Entre os biblistas, é tida unanimemente como a mais correta entre as versões ditas populares (afora as versões 'de estudo') no Brasil.

Evidentemente, o trecho que diz exceto em caso de falso matrimônio é a chave desta tradução, e que merece atenção especial neste nosso estudo. Outras traduções possíveis seriam "exceto em caso de prostituição" ou "em caso de impureza" ou ainda "em caso de fornicação". Outras versões trazem traduções esdrúxulas (na realidade, impossíveis), como por exemplo, "em caso de infidelidade" ou "em caso de adultério". De fato, o ponto destacado: “exceto em caso de falso matrimônio" ou "de prostituição”, na mente de alguns, parece deixar esta licença especial, sob a qual se poderia contrair novas núpcias licitamente: havendo prostituição, o marido poderia então deixar sua esposa e contrair um novo casamento abençoado por Deus. Todavia devemos enfatizar que Jesus não se referia ao marido e mulher legalmente casados, pois o trecho em questão não alude à fornicação no casamento, isto é, ao adultério. Como é que podemos saber disso? Analisando o texto original. Vejamos...

A expressão grega utilizada pelo autor sagrado e que suscita todo o celeuma é “PORNEIA”, que tem o sentido técnico de"VENÛT" ou "prostituição", como se encontra nos escritos rabínicos e se aplica a toda união tornada incestuosa em virtude de um grau de parentesco, interdito pela lei (Lv 18). Uniões semelhantes, legalmente contratadas entre os pagãos ou toleradas pelos próprios judeus no caso de prosélitos, deviam ter criado dificuldades nos meios judaico-cristãos legalistas como o de Mateus quando tais pessoas se convertiam: daí a ordem de romper essas uniões irregulares que não eram, em suma, senãofalsos casamentos.

Além disto, é uma possibilidade bastante concreta que a licença concedida pela suposta "cláusula de exceção" em questão não se referia ao divórcio, mas à separação de corpos sem novo casamento. Tal provisão era desconhecida do Judaísmo, mas as exigências de Jesus levaram a mais de uma solução nova e esta já é claramente suposta por Paulo em 1 Coríntios, que estabelece com toda a clareza, em todas as letras:

Se ela estiver separada, que fique sem se casar, ou que se reconcilie com seu marido. Igualmente, o marido não repudie sua mulher." (1Cor 7,11)



Examinando as Escrituras: PORNEIA / MOICHEIA

Como visto, se o Senhor estivesse na passagem de S. Mateus 19,9, se referindo ao adultério (como licença para o divórcio e autorização para uma nova união), o termo utilizado não seriaPORNEIA, e sim, muito provavelmente, MOICHEIA, este sim traduzido corretamente por adultério. A diferença de sentido entre as duas palavras é observada de formas distintas em diversos trechos das Sagradas Escrituras:

Porque do coração procedem as más intenções, assassínios, adultérios (MOICHEIA), prostituição (PORNEIA), roubos, falsos testemunhos e difamações. (Mt 15,19)
Por isso vossas filhas se prostituem (PORNEIA), e as vossas noras cometem adultério (MOICHEIA)...(Os 4,13-14)

Há uma clara distinção entre adultério e prostituição. As filhas se prostituem porque são solteiras; as noras adulteram porque são casadas. O adultério, obviamente, ocorre entre pessoas casadas; a prostituição entre solteiros. Portanto, ainda que traduzíssemos a passagem de S. Mateus 19,9 desta forma: “Exceto em caso de prostituição (PORNEIA)”, seria uma cláusula de exceção para solteiros, não para os casados. Se o texto sagrado se referisse aos casados, diria: “Exceto em caso de adultério (MOICHEIA)”, o que não faz. Ainda que algumas versões da Bíblia utilizem a palavra "adultério" neste trecho, trata-se de uma tradução equivocada.

Importa ainda saber que, dada a forma absoluta das passagens paralelas, – em S. Marcos (10,11), S. Lucas (16,18) e 1ª Epístola aos Coríntios (7,10), – é difícil entender por que os três teriam suprimido a suposta "cláusula de exceção" dada pelo Cristo em S. Mateus (19,9). Alguns estudiosos conjecturam que um dos últimos redatores do primeiro Evangelho a teria acrescentado (evidentemente, segundo a fé cristã, inspirado pelo Espírito Santo) a fim de responder a certa problemática rabínica (a saber, a discussão entre Hilel e Shamai sobre os motivos que legitimavam o divórcio), a qual é sugerida pelo contexto da passagem em questão, em especial no versículo 3 do mesmo capítulo, quando os fariseus, querendo pôr o Senhor à prova, lhe perguntam se é lícito repudiar a esposa por qualquer motivo, e a seguir objetam: "Por que, então, ordenou Moisés que se desse carta de divórcio quando a repudiasse?" Tal disputa parecia preocupar o meio judaico-cristão para o qual escrevia S. Mateus.

O fundamental é ouvir o que responde Nosso Senhor Jesus Cristo, de pronto, à pergunta feita:

Não lestes que o Criador, no princípio, fez o homem e a mulher e disse: 'Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher; e os dois formarão uma só carne'? Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu." (Mt 9,4-6)



O Mandamento de Cristo e a nulidade matrimonial

O que foi dito e estabelecido objetivamente por Nosso Senhor, de modo inescapável é isto:

 – 1) O Matrimônio, como Sacramento, é indissolúvel;

 – 2) Pode, em certos casos, ocorrer um falso matrimônio, o que significa que não foi válido, ou melhor, nunca existiu de fato.

Sendo assim, é possível “anular” um Matrimônio legítimo, segundo as normas da Igreja Católica? A resposta é não. O Sacramento do Matrimônio, realizado com o livre consentimento dos noivos e segundo as normas da Igreja, não pode ser anulado, pois é indissolúvel: nem a Igreja tem o poder de anulá-lo, diferente de um casamento civil, que pode ser dissolvido ou anulado, isto é: existiu, mas, por decisão do juiz e de acordo com os preceitos jurídicos, pela vontade dos cônjuges, deixa de existir.

O que pode acontecer é que um determinado matrimônio, por uma série de motivos, não tenha sido realmente válido, – isto é, foi nulo, nunca existiu de fato. – Aí sim, a Igreja, por meio do Tribunal Eclesiástico, pode dar um sentença de declaração de nulidade, reconhecendo que aquelas pessoas nunca estiveram verdadeiramente unidas pelos laços do Matrimônio, porque nunca receberam validamente este Sacramento.

Se você contraiu uma união com cerimônia de casamento na igreja, mas rompeu tão definitivamente com o seu cônjuge que tem certeza absoluta de que já não existe mais nenhuma chance de re-conciliação, pode verificar se o seu caso não se enquadra em uma das causas de nulidade matrimonial. Se for assim, é possível conseguir a declaração eclesiástica que lhe permita reconstruir sua vida em paz com Deus e com a sua consciência.


Como proceder?

Quem deseja entrar com um processo de nulidade matrimonial deve pedir a intervenção do Tribunal Eclesiástico da sua Diocese. O seu pároco ou algum sacerdote de confiança estarão aptos a lhe dar uma orientação mais precisa, mas algumas coisas você vai ter que fazer por si mesmo. De qualquer maneira, será preciso procurar pessoalmente o Tribunal Eclesiástico.

Assim como para administrar a Justiça comum existem os juízes que atuam no Fórum, – e quando alguém não está de acordo com uma sentença legal, pode apelar para o Tribunal de Justiça do Estado e, mais tarde, até ao Supremo Tribunal Federal, – a Igreja Católica também tem a sua organização própria de justiça. É nesse âmbito que existe o Tribunal Eclesiástico, órgão da Cúria Diocesana cuja finalidade principal é a resolução de conflitos, sobretudo através da conciliação.

Nas Dioceses onde não há Tribunal Eclesiástico deve haver uma pessoa encarregada dos assuntos da Justiça da Igreja e de encaminhar, quando for o caso, os processos ao Tribunal. Essa pessoa se chama “Vigário Judicial”. Por isso, se você mora muito longe dos grandes centros, não precisa, num primeiro momento, viajar. Basta se apresentar à Cúria Diocesana, onde funciona o escritório episcopal. Ali vai encontrar quem possa lhe ajudar a apresentar o seu caso.

Petição Inicial/Demanda – Se você realmente chegou à conclusão de que a única saída para o seu caso é pedir a declaração de nulidade do seu matrimônio, o primeiro passo é dirigir-se à Cúria Diocesana e aí procurar pelo sacerdote que se ocupa dos processos de declaração de nulidade. Ele orientará sobre a sua situação pessoal.

Recomendamos que se receba com humildade essa orientação, pois talvez pelo desconhecimento dessas questões, – por sua própria natureza bastante complexas, – muitas vezes o referido sacerdote acaba concluindo não haver motivos para se iniciar um processo de nulidade naquele caso.

O Processo/conclusão – Os juízes eclesiásticos, diante da dúvida sobre a validade de uma união, realizam um processo judicial que exige um estudo detalhado. Afinal, um Sacramento para a Igreja é coisa seríssima. Caso aquele matrimônio seja realmente considerado inválido, os juízes ditam sentença afirmando que de fato nunca existiu. Ou seja, o matrimônio contraído invalidamente é, simplesmente, um falso matrimônio: nunca existiu, de fato, o sagrado vínculo conjugal.


Em quais casos o matrimônio é nulo?

As circunstâncias que envolvem os casamentos no mundo moderno são tão diversas que é impossível abordá-las todas neste artigo. As condições que tornam o ato da celebração sem efeito, ou seja, nulos ou inválidos, mesmo tendo sido celebrados numa igreja, são diversas. Os Cânones 1083-1094 do Código de Direito Canônico são dedicados a essa matéria.

A quem queira conhecer melhor o assunto, recomendamos examinar os cânones indicados e procurar um especialista. Desde já, fique tranquilo(a): se o seu matrimônio foi inválido, haverá uma segunda chance. Caso contrário, será o momento para repensar: o que Deus espera de você? Não valerá à pena tentar uma segunda, terceira ou quarta vez recuperar uma união já abençoada?

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Fontes e ref. bibliográfica:

• BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Trad. Ecole Biblique de Jérusalem. São Paulo: Paulus, 2002. – Ref. Evangelho s. S. Mateus (19), vide nota 'b'.
• HORTAL, Jesús. O Que Deus Uniu: lições de direito matrimonial canônico, 6ª ed. São Paulo: Loyola, 2006. pp. 175-180.

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