Pular para o conteúdo principal

CAFUNÉ

Trazido da África, o hábito não sobreviveu ao desaparecimento do ócio
--------------------------------------------------------------------------------
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Os dedos moles da mão penetrando a cabeleira da cabeça. O hábito coletivo de catar piolho com as unhas estalando para adormecer. Isso é o cafuné, derivado do africano "kafiné". Veio de Angola trazido pelos portugueses para o Brasil.

É o "fingir estalidos inseticidas", a que se referia o escritor Camilo Castelo Branco. Esse delicioso estalido produzido pelo diálogo do dedo polegar com o indicador está fixado ainda hoje no folclore vivo ainda hoje de Luís da Câmara Cascudo.

O cafuné calado não tem graça. O bom cafuné é gemido. Quase gritado. A "carícia estalejante" é feita pela fricção da ponta dos dedos. Sobreviveu além da escravidão. Mimo, carícia, volúpia, êxtase, narcótico, entretenimento, além de terapêutica à insônia.
Em célebre artigo sobre a "psicanálise do cafuné", escrito na década de 40 durante o Estado Novo getuliano, o sociólogo francês jansenista Roger Bastide inicia uma viagem gnosiológica na qual se converterá em babalorixá do candomblé brasileiro. Professor xangô, filósofo do transe, hegeliano e gidiano, viveu uma revolução psíquica e epistemológica única na história das letras e ciências humanas.

Ele considerou falsa a explicação profilática: o cafuné independe da catação de piolhos em meninos, homens e mulheres. Trata-se de uma distração e, antes de tudo, de alguma coisa apetitosa que dá prazer, tal qual o baile ou o teatro. O ensaísta espanhol Ortega y Gasset dizia que o melhor jeito de se conhecer uma sociedade era por meio de seu "programa de prazeres". Diga-me como você se diverte que eu lhe direi o que você é. Na França o poeta Arthur Rimbaud adorava com volúpia que as suas irmãs lhe catassem os piolhos da cabeça.

Roger Bastide faz a análise microscópica da superestrutura do ócio escravista focalizando a prática do cafuné, depois de passar pelo marxismo, psicanálise e surrealismo europeus, conhecendo em profundidade os autores brasileiros Gilberto Freyre, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo.

Na interpretação de Bastide o senhor de engenho é um marido displicente envolvido na gandaia com as escravas, enquanto a patroa branca fica entregue a um gineceu de mucamas pretas e de empregadas domésticas. Considerado uma espécie de bode polígamo, o senhor de engenho separou sua vida marital de sua vida amorosa.

Segundo o mestre da USP, o cafuné foi um substituto das curtições lésbicas entre as mulheres do Brasil colonial. Onanismo simbólico. Essa sublimação tão culturalmente brasileira possui uma geografia com o seguinte detalhe: São Paulo, "sociedade de extrovertidos" com bandeirantes e fazendeiros de café, não está incluída na geografia do cafuné, essa "festa da preguiça". Evidentemente não foi o xampu que matou o libidinoso passatempo do cafuné. O que o matou foi o desaparecimento progressivo do ócio, segundo Luís da Câmara Cascudo. Para Roger Bastide, foi a passagem da família patriarcal para a família conjugal: o casamento de amor eliminou o cafuné.

As horas "dopolavoro" ganharam outros divertimentos, bar, restaurante, boate, discoteca, Internet, de modo que o espírito videoclipe não assimilou a herança de Angola. O holandês Johann Huizinga, insigne historiador de "Homo Ludens", reclamaria com certeza do desaparecimento do cafuné na África e no Brasil.
Tivesse-o experimentado, cabeça recostada no colo de alguém, curtindo o processo sinestésico, possivelmente o semiólogo Roland Barthes reconheceria no cafuné a configuração de uma verdadeira epistemologia. Destarte, o indispensável etnólogo Luís da Câmara Cascudo já escrevera: "Saber por cafuné".

Postagens mais visitadas deste blog

Símbolos e Significados

A palavra "símbolo" é derivada do grego antigo  symballein , que significa agregar. Seu uso figurado originou-se no costume de quebrar um bloco de argila para marcar o término de um contrato ou acordo: cada parte do acordo ficaria com um dos pedaços e, assim, quando juntassem os pedaços novamente, eles poderiam se encaixar como um quebra-cabeça. Os pedaços, cada um identificando uma das pessoas envolvidas, eram conhecidos como  symbola.  Portanto, um símbolo não representa somente algo, mas também sugere "algo" que está faltando, uma parte invisível que é necessário para alcançar a conclusão ou a totalidade. Consciente ou inconscientemente, o símbolo carrega o sentido de unir as coisas para criar algo mair do que a soma das partes, como nuanças de significado que resultam em uma ideia complexa. Longe de objetivar ser apologética, a seguinte relação de símbolos tem por objetivo apenas demonstrar o significado de cada um para a cultura ou religião que os adotou.

Como se constrói uma farsa?

26 de maio de 2013, a França produziu um dos acontecimentos mais emblemáticos e históricos deste século. Pacificamente, milhares de franceses, mais de um milhão, segundo os organizadores, marcharam pelas ruas da capital em defesa da família e do casamento. Jovens, crianças, idosos, homens e mulheres, famílias inteiras, caminharam sob um clima amistoso, contrariando os "conselhos" do ministro do interior, Manuel Valls[1]. Voltando no tempo, lá no já longínquo agosto de 2012, e comparando a situação de então com o que se viu ontem, podemos afirmar, sem dúvida nenhuma, que a França despertou, acordou de sua letargia.  E o que provocou este despertar? Com a vitória do socialista François Hollande para a presidência, foi colocada em implementação por sua ministra da Justiça, Christiane Taubira,  a guardiã dos selos, como se diz na França, uma "mudança de civilização"[2], que tem como norte a destruição dos últimos resquícios das tradições qu

Pai Nosso explicado

Pai Nosso - Um dia, em certo lugar, Jesus rezava. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou a seus discípulos”. È em resposta a este pedido que o Senhor confia a seus discípulos e à sua Igreja a oração cristã fundamental, o  Pai-Nosso. Pai Nosso que estais no céu... - Se rezamos verdadeiramente ao  "Nosso Pai" , saímos do individualismo, pois o Amor que acolhemos nos liberta  (do individualismo).  O  "nosso"  do início da Oração do Senhor, como o "nós" dos quatro últimos pedidos, não exclui ninguém. Para que seja dito em verdade, nossas divisões e oposições devem ser superadas. É com razão que estas palavras "Pai Nosso que estais no céu" provêm do coração dos justos, onde Deus habita como que em seu templo. Por elas também o que reza desejará ver morar em si aquele que ele invoca. Os sete pedidos - Depois de nos ter posto na presença de Deus, nosso Pai, para adorá-lo