Pular para o conteúdo principal

Introdução à Bíblia ou às Sagradas Escrituras - V


Os quatro Evangelistas, por Jacob Jordaens (1625–1630)

Os livros considerados canônicos pelos primeiros cristãos

GRANDE ERA O MATERIAL literário de que dispunham os primeiros cristãos, no que diz respeito à manutenção da Fé. Pelo fato de Jesus e os Apóstolos utilizarem a versão grega da Septuaginta , esta também passou a ser de uso da nascente Igreja Apostólica (KELLY, 1978; Soc. Bíblica do Brasil, 2003, V). No início do primeiro século já estavam disponíveis as epístolas paulinas e outras cartas então chamadas “Católicas”1, como as primeiras epístolas universais de S. Pedro e S. João.

Na segunda metade deste mesmo século, ficaram disponíveis os quatro Evangelhos, a epístola universal de S. Tiago, as segundas epístolas de S. Pedro e S. João, a terceira de S. João, a carta aos Hebreus e o livro do Apocalipse. Com a definição do Cânon de Jâmnia (final do séc. I – saiba mais aqui), levantou-se na Igreja nascente uma dúvida quanto à canonicidade dos livros do AT que não encontravam correspondência em tal cânon. Por consequência, esta dúvida se estendeu aos livros cristãos que lhes faziam referência. O questionamento a estes livros da literatura cristã, produzidos no período apostólico (séc. I), deu margem para que outros livros do mesmo período também fossem questionados pelas razões mais diversas. Esta motivação se deu principalmente pelo surgimento dos primeiros grupos sectários, como os judaizantes2 е os gnósticos, sendo que estes últimos produziam sua própria literatura.

A questão dos livros canônicos foi ainda mais agravada pelo fato de que os Apóstolos não deixaram para a Igreja esta definição. Realmente, nem poderiam tê-lo feito. Em At 12,1-19 lemos que S. Tiago (irmão de S. João) foi morto à espada por Herodes. Sua morte se deu antes mesmo da conversão de S. Paulo, e são as epístolas paulinas as Escrituras mais antigas do NT. Portanto, Tiago nem sequer conheceu qualquer escritura do NT. Paulo e Pedro morrem em Roma, sob o reinado de Nero, aproximadamente em 45 d.C. Neste tempo não estavam disponíveis ainda nenhum dos Evangelhos.

Os demais Apóstolos foram evangelizar nos lugares mais longínquos da Terra (por exemplo, S. Mateus na Etiópia, S. Tomé na Índia, etc). Até o séc. III, os cristãos das regiões bárbaras ignoraram a existência de qualquer um dos livros do NT (IRENEU, 1995, p. 252-254). Com a morte de todos os Apóstolos, já no início do segundo século, seus sucessores legítimos assumem o seu Ministério dado por Cristo, confirmando toda a Igreja na Doutrina Apostólica que haviam recebido pessoalmente de seus mentores.

Neste período, começaram a aparecer seus próprios escritos. Dentre eles se destacam a Primeira Carta de Clemente aos Coríntios, as sete Cartas de Inácio de Antioquia, as Cartas de Policarpo de Esmirna, as cartas de Pápias de Hierápolis e outras. Muitas destas cartas eram recebidas como canônicas pelos fiéis. Como se vê, o conjunto de livros que deveriam ser considerados canônicos, pela Igreja Cristã, ainda era uma grande interrogação nos nos primeiros séculos. A literatura oriunda dos grupos heréticos começou a confundir os primeiros cristãos, porque estas lhes eram apresentadas como escrituras sagradas e inspiradas oriundas dos Apóstolos (ex: o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Filipe, etc.); e aos poucos foram tomando lugar nos estudos catequéticos e nas celebrações de culto.

É neste contexto que a literatura cristã pós-apostólica cresceu de forma exponencial, com vários textos em defesa da antiga e autêntica Fé apostólica sendo produzidos contra os grupos heréticos que cresciam. Nesta disputa, um tema que não poderia faltar, é claro, são os livros que deveriam ser considerados canônicos. Através dos escritos antigos que se conservaram até nosso tempo, veremos qual foi o testemunho dos primeiros cristãos sobre o conjunto dos livros sagrados.


Testemunhos do séc II

1. Melitão de Sardes – O testemunho individual mais antigo de que se tem notícia sobre as Escrituras é o de Melitão, Bispo de Sardes. Conforme uma citação de uma carta de Polícrates ao Papa Vítor, Melitão é “continente, vivendo todo no Espírito”. Sabe-se que endereçou uma apologia em favor dos cristãos ao Imperador Marco Aurélio. Visitou os lugares santos para estudar o cânon do AT. Seus escritos lamentavelmente se perderam com o tempo. No entanto, seu testemunho sobre as Escrituras Sagradas foi preservado por Eusébio de Cesareia em sua “História Eclesiástica”. 


Eusébio de Cesareia
Segundo Eusébio, no início do prefácio da obra “Éclogas”, desta forma Melitão relaciona os livros canônicos do AT:

Melitão a Onésimo, seu irmão. Saudações, Visto que muitas vezes manifestaste o desejo, inspirado pelo zelo relativamente à doutrina, de possuir extratos da Lei e dos profetas sobre o Salvador e o conjunto de nossa fé, e ainda quiseste conhecer com exatidão o número dos antigos livros e a ordem que seguem, dediquei-me a tal tarefa, uma vez que conheço teu zelo pela fé e tua aplicação ao estudo da doutrina. O Amor de Deus sobretudo faz com que o aprecies, enquanto lutas tendo em mira a salvação eterna. Tendo ido, portanto, ao Oriente e tendo estado até mesmo no lugar onde a Escritura foi anunciada e cumprida, tive exato conhecimento acerca dos livros do antigo Testamento. Levantei uma lista, que te envio. São os seguintes os seus nomes: de Moisés cinco livros: Gênesis, Exodo, Números, Levítico, Deuteronômio; Jesus Navé [Josué), Juízes, Ruth; quatro livros dos Reis [I e II Samuel e I e II Reis], dois dos Paralipômenos II e II Crônicas]; Salmos de Davi, Provérbios ou Sabedoria de Salomão; Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Jó; profetas: Isaías, Jeremias4 e os Doze num só livro; Daniel, Ezequiel, Esdras5 . Destas obras extraí alguns trechos, que distribuí por seis livros.
(EUSEBIO, 2000, p. 214-215)

Dos livros que foram recusados pelos judeus da Palestina, Melitão menciona apenas Sabedoria. A Referência ao título geral “Jeremias”, conforme a Septuaginta, estavam organizados os livros de Jeremias, Baruc, as Lamentações e a Epístola de Jeremias. Pela expressão “os Doze num só livro” refere-se aos doze profetas ditos menores, a saber, Oséias, Amós, Miquéias, Joel, Obadias, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. Melitão não relaciona o livro de Ester entre os livros canônicos.

2. São Justino de Roma – Justino viveu entre os anos 100 e 165, na cidade de Roma. Trabalhava dirigindo uma escola de Filosofia. É considerado o maior defensor da Fé cristã do séc. II contra as perseguições promovidas pelo Imperador. De sua primeira obra, escrita ao Imperador, é que encontramos seu testemunho sobre os livros sagrados:

Entre os judeus, houve profetas de Deus, através dos quais o Espírito profético anunciou antecipadamente os acontecimentos futuros, e os reis, que segundo os tempos se sucederam entre os judeus, apropriando-se de tais profecias, guardaram-nas cuidadosamente tal como foram ditas e tal como os próprios profetas as consignaram em seus livros, escritos em sua própria língua hebraica. Quando Ptolomeu, rei do Egito, se preocupou em formar uma biblioteca e nela reunir os escritos de todo o mundo, tendo tido notícia dessas profecias, mandou uma embaixada a Herodes, que então era rei dos judeus, pedindo-lhe que mandasse os livros deles. O rei Herodes mandou os livros, como dissemos, em sua língua hebraica. Todavia, como seu conteúdo não podia ser entendido pelos egípcios, Ptolomeu pediu, por meio de uma nova embaixada, que Herodes enviasse homens para os verter para a língua grega. Depois disso, os livros permaneceram entre os egípcios até o presente e os judeus os usam no mundo inteiro. Estes, porém, ao lê-los, não entendem o que está escrito, mas considerando-nos inimigos e adversários, matam-nos, como vós o fazeis, e atormentam-nos sempre que podem fazê-lo, como podeis facilmente verificar. Com efeito, na guerra dos judeus agora terminada, Bar Kókeba, o cabeça da rebelião, mandava submeter a terríveis torturas somente os cristãos, caso estes não negassem e bla femassem Jesus Cristo.
(31. JUSTINO, 1995)

Como podemos ver, Justino não apresenta uma relação de livros, apenas referencia a versão da Septuaginta.



Sto. Ireneu de Lyon

3. Santo Ireneu de Lião ou de Lyon
 – Santo Ireneu viveu provavelmente entre os anos 150 e 202. Foi discípulo pessoal do Bispo de Esmirna (atual Istambul na Turquia), Policarpo; e este, por sua vez, discípulo direto de São João Apóstolo e Evangelista. Em seu tempo, combateu ferozmente a heresia gnóstica, dedicando a este trabalho um conjunto de cinco livros, que foi intitulado “Contra as Heresias" (IRENEU, 1995). É desta obra que Eusébio transcreve o pensamento de Ireneu quanto aos livros canônicos:

Antes que os romanos tivessem estabelecido o império, e quando os macedônios ainda dominavam a Ásia, Ptolomeu, filho de Lagos, muito desejoso de enriquecer com os melhores escritos dos homens a biblioteca que instituíra em Alexandria, pediu aos habitantes de Jerusalém suas Escrituras traduzidas para a língua grega. Estes, naquela época ainda sujeitos aos macedônios, enviaram a Ptolomeu setenta anciãos, dos mais peritos nas Escrituras e no conhecimento das duas línguas e realizou-se desta forma o plano de Deus. Ptolomeu, querendo provar particularmente a perícia de cada um, e a fim de evitar que, por confronto entre si, eles falseassem na tradução a verdade contida nas Escrituras, separou-os uns dos outros e ordenou-lhes que todos escrevessem a tradução do mesmo texto; assim fez relativamente a todos os livros. Mas, ao se reunirem no mesmo lugar com Ptolomeu, e conferindo as traduções, Deus foi glorificado e as Escrituras foram reconhecidas como realmente divinas, pois todos haviam expressado idéias idênticas com idênticas palavras, idênticos nomes, do começo ao fim. Desta forma, até os pagãos presentes reconheceram terem sido as Escrituras traduzidas sob Inspiração de Deus. Não é de admirar tenha Deus agido desta maneira. Efetivamente, perdidas as Escrituras por ocasião do cativeiro do povo sob Nabucodonosor, e tendo os judeus após setenta anos regressado a seu país, mais adiante, no tempo de Artaxerxes, rei dos persas, ele próprio inspirou o sacerdote Esdras da tribo de Levi [cf. Esd 9,3841] relativamente à reconstituição das palavras dos profetas anteriores e à restauração entre o povo da legislação promulgada por Moisés.(EUSEBIO, 2000, p. 245-246)
Mateus, no entanto, publicou entre os hebreus em sua própria língua um Evangelho escrito, enquanto Pedro e Paulo anunciavam a Boa Nova em Roma e lançavam os fundamentos da Igreja. Mas, após a morte deles, Marcos, discípulo e intérprete de Pedro, transmitiu-nos por escrito igualmente o que Pedro pregara. Lucas, porém, companheiro de Paulo, deixou num livro o Evangelho pregado por este último. Enfim, João, o discípulo que reclinou sobre o peito do Senhor [çf Jo 13,25. 21,20], publicou também ele um evangelho, enquanto residia em Éfeso, na Ásia.
(Ibid.) 

Ainda nos parágrafos 5 a 8, Eusébio afirma que no quinto livro de “Contra as Heresias”, Ireneu faz menção do Apocalipse de João, da primeira carta de Pedro, o Pastor de Hermas6" e do livro Sabedoria de Salomão (Ibid., p. 244-245). Ainda segundo Eusébio, Ireneu na obra “Exposições diversas” “relembra a carta aos Hebreus e a Sabedoria dita de Salomão, incluindo trecho de ambas” (Ibid., p. 273).

Com toda clareza podemos observar que, na Igreja de Cristo, ainda no séc. II não havia consenso sobre quais eram os livros canônicos tanto do AT quanto do NT.

__________
Notas e ref. bibliográfica:
1. Como eram chamadas pelos cristãos primitivos as Epístolas de Pedro, João, Judas e Tiago.
2. Cristãos que continuavam a observar a Lei de Moisés. É por causa deles que os apóstolos se reúnem em Jerusalém cf. At,15.
3. Cristãos seguidores da heresia gnóstica ou Gnose, que ensinava que a matéria é ruim e que por isso o mundo foi criado por um deus decaído (saiba mais).
4. Conforme veremos neste mesmo capítulo, sob o título geral“Jeremias” estavam organizados o Livro de Jeremias, as Lamentações de Jeremias, Baruce a Epístola de Jeremias. Isto porque os cristãos adotaram a mesma organização presente na Septuaginta e que figuram nas Bíblias Católica e Ortodoxa.
5. Corresponde ao 2 Esdras da Septuaginta, isto é Esdras e Neemias.
6. Obra da literatura cristã pós-apostólica do séc. II (HERMAS, 1995).

Fontes:

• LIMA. Alessandro Ricardo. O Cânon Bíblico: a origem da Lista dos Livros Sagrados, Brasília: ComDeus, 2007.
• KELLY, J. N. D. Early Chritian Doctrine. Harper San Francisco; rev. edition. March, 29, 1978, pp. 53-54.
• IRENEU, Bispo de Lion. Contra as Heresias, 1ª ed., trad. de Lourenço Costa. São Paulo: Paulus. 1995 (Patrística 4)

Postagens mais visitadas deste blog

Símbolos e Significados

A palavra "símbolo" é derivada do grego antigo  symballein , que significa agregar. Seu uso figurado originou-se no costume de quebrar um bloco de argila para marcar o término de um contrato ou acordo: cada parte do acordo ficaria com um dos pedaços e, assim, quando juntassem os pedaços novamente, eles poderiam se encaixar como um quebra-cabeça. Os pedaços, cada um identificando uma das pessoas envolvidas, eram conhecidos como  symbola.  Portanto, um símbolo não representa somente algo, mas também sugere "algo" que está faltando, uma parte invisível que é necessário para alcançar a conclusão ou a totalidade. Consciente ou inconscientemente, o símbolo carrega o sentido de unir as coisas para criar algo mair do que a soma das partes, como nuanças de significado que resultam em uma ideia complexa. Longe de objetivar ser apologética, a seguinte relação de símbolos tem por objetivo apenas demonstrar o significado de cada um para a cultura ou religião que os adotou.

Como se constrói uma farsa?

26 de maio de 2013, a França produziu um dos acontecimentos mais emblemáticos e históricos deste século. Pacificamente, milhares de franceses, mais de um milhão, segundo os organizadores, marcharam pelas ruas da capital em defesa da família e do casamento. Jovens, crianças, idosos, homens e mulheres, famílias inteiras, caminharam sob um clima amistoso, contrariando os "conselhos" do ministro do interior, Manuel Valls[1]. Voltando no tempo, lá no já longínquo agosto de 2012, e comparando a situação de então com o que se viu ontem, podemos afirmar, sem dúvida nenhuma, que a França despertou, acordou de sua letargia.  E o que provocou este despertar? Com a vitória do socialista François Hollande para a presidência, foi colocada em implementação por sua ministra da Justiça, Christiane Taubira,  a guardiã dos selos, como se diz na França, uma "mudança de civilização"[2], que tem como norte a destruição dos últimos resquícios das tradições qu

Pai Nosso explicado

Pai Nosso - Um dia, em certo lugar, Jesus rezava. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou a seus discípulos”. È em resposta a este pedido que o Senhor confia a seus discípulos e à sua Igreja a oração cristã fundamental, o  Pai-Nosso. Pai Nosso que estais no céu... - Se rezamos verdadeiramente ao  "Nosso Pai" , saímos do individualismo, pois o Amor que acolhemos nos liberta  (do individualismo).  O  "nosso"  do início da Oração do Senhor, como o "nós" dos quatro últimos pedidos, não exclui ninguém. Para que seja dito em verdade, nossas divisões e oposições devem ser superadas. É com razão que estas palavras "Pai Nosso que estais no céu" provêm do coração dos justos, onde Deus habita como que em seu templo. Por elas também o que reza desejará ver morar em si aquele que ele invoca. Os sete pedidos - Depois de nos ter posto na presença de Deus, nosso Pai, para adorá-lo