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A Bíblia Sagrada e as mitologias pagãs


"Jesus ensina (as Escrituras) no Templo, aos 12",
por Heinrich Hoffmann (1824-1911), .

PARA REFUTAR a autoria divina e a inerrância das Sagradas Escrituras, utiliza-se por vezes o argumento de que certas passagens bíblicas (do Antigo Testamento) seriam cópias ou adaptações de mitologias pagãs mais antigas. Desse modo, entre os antigos textos profanos e os textos bíblicos não haveria diferença, uma vez que os segundos seriam apenas cópias ou adaptações dos primeiros. Assim como a cópia ou resumo de um texto falso também é falsa, e na Bíblia há textos que são cópias ou resumos de fontes profanas, repletas de erros e/ou fantasias, seguem-se que os textos sagrados dos cristãos são errôneos e/ou fantasiosos.

Como resposta a esse tipo de acusação, o papa Pio XII já havia dito que "se pode certamente conceder" que os autores sagrados tenham colhido algo das antigas tradições populares, mas evidencia que, quando agiram dessa forma, foram ajudados pelo sopro da divina Inspiração, que os tornavam imunes de todo erro ao escolher e julgar aqueles documentos (Humani Generis, Dz 3898).

A Inspiração divina acompanha a redação do texto, mas também a seleção do que é verdadeiro quando se utiliza uma fonte profana. Por exemplo, um texto da Sagrada Escritura que é declaradamente um resumo é o Segundo Livro dos Macabeus, onde o autor sagrado diz: "Eis o que Jasão de Cirene narra em cinco livros que vamos tentar resumir em um só" (2Mc 2,23). A Inspiração divina, nesse sentido, fez com que o autor sagrado selecionasse e organizasse o que há de verdadeiro e útil para os desígnios de Deus numa obra preexistente.

Por conseguinte, quando o autor sagrado utiliza das antigas tradições populares, seleciona o que nelas há de verdadeiro e rejeita o que é fruto da imaginação. Por isso, "aquilo que foi colhido das narrações populares para se inserir na Sagrada Escritura de modo algum é comparável às mitologias e outras narrações de tal gênero, que procedem mais da imaginação do que daquele amor à simplicidade e à verdade que tanto resplandece nos livros sagrados (...) a tal ponto que os nossos hagiógrafos devem ser tidos neste particular como claramente superiores aos antigos escritores profanos" (PIO XII. Humani Generis Dz 3899).



Elementos da Verdade nas tradições profanas

Como as antigas tradições populares poderiam conter alguma verdade sobre a criação do mundo por Deus e acerca da formação do primeiro homem e da primeira mulher, além da queda de ambos?

Isso pode ser explicado pela chamada Revelação Primitiva, transmitida de geração em geração. A Revelação Primitiva refere-se à comunicação gratuita de Deus ao primeiro homem, isto é, Adão, como disse Santo Tomás de Aquino:

E para o governo próprio e dos demais, não só é necessário o conhecimento natural, pois a vida humana se ordena a um fim sobrenatural, do mesmo modo que a nós, para governar nossas vidas, nos é necessário conhecer os conteúdos da fé. Por isso, o primeiro homem recebeu conhecimento do sobrenatural tanto quanto lhe era necessário para o governo da vida humana naquele estado”.  (Suma Teológica I, q. 94, a. 4. rep.)

Depois da queda, Adão transmitiu aos seus descendentes o que tinha recebido do próprio Deus. Com o suceder das gerações, foram-se acrescentando novos e diferentes elementos à história original que mesclaram o verdadeiro e o falso, o real e o fantasioso. Assim, se o autor sagrado recorreu a uma dessas fontes, selecionou, por Inspiração divina, aquilo que é verdadeiro e deixou o que é falso. O mesmo tratamento deve ser dado às histórias do dilúvio ou da torre de Babel, só que aqui, em vez de uma Revelação Primitiva, têm-se fatos reais que foram transmitidos por tradição em diferentes povos e, com o suceder das gerações, acabaram com várias versões em diversos povos.

Também a Comissão Bíblica de 27 junho de 1906 chegou às mesmas conclusões, quando tratou da autoria mosaica do Pentateuco (ou partes dele):

Pode-se conceder, sem detrimento da autenticidade mosaica do Pentateuco, que Moisés, para compor sua obra, se valeu de fontes, ou seja, de documentos escritos ou de tradições orais, das quais, segundo o fim peculiar a que se propusera e sob o sopro da Inspiração divina, colheu algumas coisas e as inseriu em sua obra, ora literalmente, ora resumidas ou ampliadas quanto ao sentido.” (Dz 3396)

Notamos, assim, que uma coisa é reconhecer o fato de que os textos das Sagradas Escrituras, em certas passagens, contêm citações ou referências a antigas tradições pagãs, e outra completamente diferente é afirmar, por falsa ilação, que este fato se constituiria numa espécie de prova ou evidência de que os textos sagrados seriam tão falsos ou fantasiosos quanto aqueles a que fortuitamente alude.

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Ref. bibliográfica:
DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas; Edições Loyola, 2007.
II MACABEUS. In: Bíblia Sagrada. 103. ed. São Paulo: Ave-Maria, 1996.
MERCABA. Revelación primitiva. Disponível em: http://mercaba.org/Mundi/6/revelacion_primitiva.htm Acesso em: 21 out. 2013.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Disponível em: http://hjg.com.ar/sumat/index.html Acesso em: 21 out. 2013.

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