Escrito por José Luís. Publicado em Catequese
Todos sabemos o que Jesus fez durante os três anos da sua vida pública: como percorreu as cidades e aldeias da Palestina pregando o Reino de Deus, curando doentes, ressuscitando mortos e ensinando parábolas. Mas, que fez durante os mais de 30 anos anteriores? Por que motivo os evangelhos guardam silêncio acerca dessa etapa da sua vida?
Os anos perdidos de Jesus
O único que sabemos desse longo período é um episódio que sucedeu aos 12 anos, quando Ele se perdeu em Jerusalém durante uma festa de Páscoa, e como José e Maria o encontraram «no Templo sentado no meio dos mestres, escutando-os e fazendo-lhes perguntas; e todos os que o ouviam estavam assombrados pela sua inteligência e as suas respostas» (Lc 2,46-47). Mas, imediatamente a seguir, o evangelho diz que regressou para Nazaré e o véu do mistério desce de novo sobre a sua vida, ocultando todas as suas actividades durante os 20 anos seguintes.
Este enigmático silêncio sobre a juventude de Jesus fez com que muitos inventassem histórias e relatos incríveis. Assim, alguns, com bastante imaginação, afirmam que viajou para a Inglaterra acompanhado pelo seu tio-avô José de Arimateia, onde conheceu o druidismo (a religião dos celtas) e onde aprendeu algumas das ideias que mais tarde viria a ensinar, como a Trindade e a chegada do Messias.
Outros afirmam que foi para a Índia, onde os grandes Budas lhe ensinaram a ler, a curar enfermos e a realizar exorcismos. Outros garantem que esteve no Egipto aprendendo os segredos dos faraós e enchendo-se de energia misteriosa nas grandes pirâmides. E os mais ingénuos pensam que chegou até à América para se iniciar na sabedoria antiga dos peles-vermelhas.
Ler bem os Evangelhos
Estes relatos puderam ser inventados porque, segundo a crença popular, os evangelhos se calam e não contam nada sobre os anos perdidos de Jesus. Mas, será que os evangelhos se calam absolutamente? Não dão indícios, em lado nenhum, do que Jesus fez durante todos aqueles anos? Na verdade não é assim. O evangelho de São Lucas proporciona duas pistas muito importantes.
A primeira, depois de narrar a apresentação do menino Jesus no Templo de Jerusalém poucos dias depois de ter nascido. Diz que José, Maria e o menino «voltaram para a sua cidade de Nazaré, na Galileia. E ali o menino crescia e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele» (Lc 2,39-40). Portanto, o evangelista informa-nos claramente que Jesus passou os anos seguintes da sua vida na povoação de Nazaré, onde experimentou um desenvolvimento físico, intelectual e religioso, como qualquer menino da sua idade.
A segunda, depois de contar que o menino Jesus se perdeu aos 12 anos na cidade de Jerusalém e foi encontrado no Templo. Diz que «voltou com eles para Nazaré, e ali viveu, obedecendo-lhes em tudo. E Jesus continuava a crescer em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens» (Lc 2,51-52).
Como qualquer um da sua terra
Se nos limitarmos, pois, ao evangelho, teremos de concluir que Jesus não se moveu de Nazaré durante todos esses anos. Voltou para Nazaré, diz Lucas. E ali, no seu círculo familiar, sendo«submisso» aos pais, adquiriu a sua maturidade humana, intelectual e psicológica, tal como os outros meninos judeus do seu tempo.
Isto é confirmado por um episódio relatado no evangelho de Marcos. Quando Jesus pregou pela primeira vez na sinagoga de Nazaré, os aldeãos galileus, ao ouvi-lo, encheram-se de assombro [maravilharam-se] e disseram: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por sua mão? Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria…» (Mc 6,2-3).
A vida de Jesus, pois, deve ter decorrido de um modo tão ordinário e normal na sua aprazível aldeia de Nazaré, que no dia em que se apresentou em público com uma sabedoria fora do comum os seus concidadãos de Nazaré se surpreenderam. Nunca tinham suspeitado que Ele fosse mais do que «o carpinteiro», «o filho de Maria». Se Jesus se tivesse ausentado da sua terra para estudar e se aperfeiçoar, como dizem as lendas atrás mencionadas, os galileus não teriam de que se surpreender dos seus prodigiosos conhecimentos.
Se Jesus não saiu de Nazaré durante a sua infância e a sua juventude (além das suas peregrinações a Jerusalém, ou de uma viagem ocasional a alguma povoação vizinha), que fez em todos esses anos? É possível conhecer algo da sua vida oculta? Sim, é possível, graças aos descobrimentos arqueológicos e literários que actualmente possuímos.
Qual era o seu verdadeiro nome?
A primeira coisa que fizeram os pais com o menino Jesus, pouco depois do seu nascimento, foi dar-lhe um nome. Isto realizava-se no meio de uma alegre cerimónia, celebrada no oitavo dia como ordenava o Génesis (17,12), e perante várias testemunhas.
O nome que José e Maria lhe puseram foi Yehoshua, que em hebraico significa Josué. Pela Bíblia sabemos que na Palestina esse nome costumava ser abreviado e pronunciar-se Yeshua, por razões de familiaridade. Por sua vez, na Galileia, onde se falava de um modo diferente do resto do país, e onde vivia a sagrada família, abreviava-se ainda mais e pronunciava-se Yeshu. Por isso, os primeiros cristãos de origem grega traduziram-no mais tarde por Jesus.
O nome de Yeshua, no século I, era um dos mais comuns e ordinários de então. Assim o vemos, por exemplo, no escritor Flávio Josefo, que nas suas obras menciona mais de 20 pessoas que se chamavam Jesus na história judaica; das quais, pelo menos 10 são contemporâneas de Jesus de Nazaré.
Em hebraico, Jesus (ou Josué) significa “Deus salva”. E não lhe puseram esse nome ao menino apenas em homenagem ao comandante hebreu Josué, mas porque, segundo Mateus, um anjo disse a São José: «dar-lhe-ás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados» (Mt 1,21).
Aprendeu a ler e escrever?
Terá Jesus aprendido a ler e a escrever durante a sua infância, numa pequena povoação tão insignificante como Nazaré, ou permaneceu analfabeto? Muitos pensam que semelhante pergunta é absurda, pois três episódios dos Evangelhos mostram claramente que Ele sabia ler e escrever.
O primeiro é aquele em que os escribas e fariseus lhe apresentaram uma mulher surpreendida em adultério, perguntando se deviam apedrejá-la ou não. «Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se a escrever com o dedo na terra» (Jo 8,6).
O segundo foi quando Ele, «segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler e lhe entregaram o livro do profeta Isaías…» (Lc 4,16-17).
O terceiro é aquele em que os judeus, ao ouvi-lo pregar em Jerusalém, se perguntaram maravilhados: «Como é que este é letrado, se não estou?» (Jo 7,15).
Mas, lamentavelmente, nenhum destes três textos serve para provar a capacidade de Jesus para ler e escrever.
O primeiro, porque, ao mostrar Jesus a “escrever” com o dedo no chão, mas sem dizer o que Ele escrevia, levou a pensar que só traçou umas linhas sobre o pó, talvez com a intenção de manifestar o seu incómodo aos acusadores da mulher, mas sem escrever realmente nada.
O segundo, porque o texto do profeta Isaías que Jesus lê na sinagoga de Nazaré, tal como está, não existe. É uma passagem construída pelo evangelista Lucas com versículos salteados desse livro (isto é: Is 61,1; 58,6; e 61,2). Como teria Jesus conseguido ler esse texto no livro de Isaías?
O terceiro, mostrando Jesus a saber “escrita” sem ter estudado, de facto não diz que Jesus sabia “escrever”, mas que sabia usar as Sagradas Escrituras (ou seja, o Antigo Testamento) numa discussão teológica, coisa que podia ter aprendido oralmente de cor, sem necessidade de saber ler.
Os dois ciclos de estudo
Não temos, pois, nos Evangelhos provas seguras de que Jesus soubesse ler e escrever. Poderemos sabê-lo por outra via? Sim.
Pela literatura judaica sabemos que quando Jesus era criança existia em Nazaré, como nas demais aldeias da Palestina, uma pequena escola, aonde acudiam os meninos a partir dos 5 anos. O local estava anexo à sinagoga, e o programa escolar constava de dois ciclos básicos.
O primeiro ciclo durava cinco anos. Os meninos começavam a aprender as letras do alfabeto hebraico, e eram logo iniciados na leitura da Bíblia, a partir do livro do Levítico. Daí passavam para os outros livros bíblicos, repetindo-os versículo por versículo, até aprenderem o texto sagrado quase de memória. Pela Bíblia, os alunos estudavam tudo: a língua, a gramática, a história, a geografia.
Terminada esta primeira etapa, os meninos passavam para o segundo ciclo, que durava dois anos. Neles, aplicavam-se ao conhecimento da “Lei Oral” judaica (chamada Mishná), isto é, às interpretações e complementos que os doutores da Lei faziam das leis bíblicas.
Ao chegar aos 12 anos, os meninos terminavam os seus estudos. Se algum era particularmente brilhante, então podia cursar estudos mais avançados; para isso tinha de ir para Jerusalém ou outra cidade importante do país, e inscrever-se nas escolas dirigidas pelos mais célebres doutores da Lei. Mas isso era privilégio de uns poucos; a maioria dos jovens reintegrava-se na sua família, onde começava a aprender com seu pai uma profissão para ganhar a vida.
Sem dúvida, Jesus, durante a sua infância, assistiu como todos os meninos da sua época nos dois ciclos básicos escolares na sinagoga de Nazaré, onde aprendeu a ler e a escrever. Mas não parece ter recebido o ensino superior próprio dos centros urbanos como Jerusalém. O comentário que dele faziam os judeus dizendo: «Como é que este é letrado, se não estou?» – confirma-o.
Jesus era carpinteiro?
Que profissão praticou Jesus durante a sua adolescência? Sabemos que todos os pais das famílias judaicas procuravam uma ocupação para o seu filho, pois os rabinos diziam: “Quem não ensina uma profissão ao seu filho, ensina-o a roubar.” Como vimos, São Marcos diz que quando Jesus pregou na sinagoga de Nazaré, os seus conterrâneos comentaram: «Não é este o carpinteiro?» (Mc 6,3). Daí se ter pensado sempre que ele foi carpinteiro.
Mas muitos têm posto em dúvida esta afirmação. Primeiro, porque os outros Evangelhos trazem uma versão diferente. São Mateus, por exemplo, diz que a pergunta das pessoas foi:«Não é este o filho do carpinteiro?» (Mt 13,55), quer dizer, atribui o ofício de carpinteiro a São José, não a Jesus. Enquanto que em São Lucas a gente pergunta: «Não é este o filho de José?»(Lc 4, 22), com o qual, nenhum dos dois é apresentado como carpinteiro.
Segundo, porque Nazaré, situada na fértil região da Galileia, era uma povoação de camponeses, a maioria dos quais se dedicava à agricultura e a criar gado.
Terceiro, porque em quase todas as parábolas de Jesus há imagens do meio agrícola (o semeador, a cizânia, a vinha, a figueira, o grão de mostarda, etc.), e não do ambiente da carpintaria…
Contudo, hoje os biblistas concluíram que Marcos, o primeiro evangelista a escrever, não se teria animado a chamar a Jesus “carpinteiro”, ocupação que gozava de pouco prestígio naquela época, se realmente não fosse certo. Pelo contrário, há motivos para Mateus ter alterado a informação: como pretendia acentuar mais a figura solene e majestosa de Jesus, pensou que tal atribuição era desrespeitosa, preferindo transferi-la para José. E Lucas, mais sensível ainda que Mateus, considerou a referência àquela profissão como um insulto dos galileus, e optou por eliminá-la tanto de José como de Jesus.
O aludir tanto à agricultura nas suas parábolas, deve-se ao facto de o seu auditório estar formado, na sua maioria, por agricultores, pelo que procurou adaptar-se à sua linguagem. Podemos, pois, concluir que Jesus, durante os 30 anos da sua vida oculta, trabalhou como carpinteiro.
Como rezava Jesus?
Outras das coisas que Jesus aprendeu durante a sua adolescência em Nazaré foi a rezar, pois qualquer criança israelita, a partir dos 13 anos, adquiria o hábito de orar três vezes por dia: de manhã, ao meio-dia e à noite (Sl 55,18; Dn 6,11; Act 10,9). Para isso, era ensinado a cobrir a cabeça e os ombros com um manto especial, chamado “talit”, com umas franjas chamadas “zitzit” dependuradas nas suas quatro pontas. Essas franjas representavam todas as leis divinas, que eles observavam de coração nos “quatro cantos” ou fases da sua vida. Eram um total de 32 (8 franjas em cada canto), porque o número 32 simboliza a palavra “coração” em hebraico. O uso das franjas tinha sido ordenado por Deus a Moisés no livro do Deuteronómio: «Diz aos filhos de Israel que ponham umas franjas na ponta dos seus mantos. Assim ao vê-las, lembrar-se-ão de todos os mandamentos do Senhor» (15,37-41).
Havia duas orações que um judeu, a partir da sua adolescência, devia recitar cada dia. A primeira chamava-se “Shemá” (em hebraico, “Escuta”), porque começava assim: «Escuta, Israel: Yahvé é o nosso único Deus.» Mais do que uma oração, era uma profissão de fé, tirada do livro do Deuteronómio (6,4-7). E na segunda era a chamada “Shemoné Esre” (em hebraico, “Dezoito”) porque consistia em dezoito orações (três louvores, doze petições e três agradecimentos a Deus).
Nestas orações, repetidas ao longo do dia, o menino Jesus foi aprendendo a chamar a Deus “Pai nosso”. E foram estas que criaram o clima espiritual em que Ele cresceu, e que marcaram profundamente a sua psicologia religiosa de criança.
Aonde ia aos sábados?
Desde a infância, aos sábados o menino Jesus acudia à sinagoga de Nazaré acompanhado pelos seus pais. Como qualquer outro menino, ter-se-á sentido aborrecido e distraído perante as intermináveis orações da assembleia, que duravam quase toda a manhã, e para ele se tornavam difíceis de acompanhar porque eram em hebraico, língua que ele não entendia uma vez que falava o aramaico. Mas, com o andar dos anos, foi aprendendo as orações e os ritos, até se lhe tornarem familiares.
Além da frequência da sinagoga, o sábado devia ser venerado com a prática do descanso total. Assim, desde Sexta-feira à tarde, o menino Jesus deve ter ajudado a sua mãe Maria nos preparativos da celebração: trazer dupla reserva de água, limpar a humilde casa, colocar no seu lugar as ferramentas de trabalho, enquanto Maria preparava as duas refeições: para sexta à noite e sábado ao meio-dia.
Minutos antes de começar o sábado, isto é, na sexta ao cair da tarde, o pequeno Jesus de pé diante da mesa assistia ao rito da luz, tradicionalmente reservado às mulheres da casa: Maria pronunciava uma bênção e acendia uma lâmpada, que ficava acesa até à manhã seguinte, quando se levantavam para ir à sinagoga.
Ao meio-dia, quando regressavam, as famílias da aldeia reuniam-se em grupos para partilhar um almoço comum, no qual se falava principalmente de assuntos religiosos.
Preocupar-se com o hoje
Como vemos, a vida oculta de Jesus não teve nada de extraordinário nem prodigioso, como a pintam as absurdas lendas tecidas sobre ela. Foi nesta atmosfera simples e familiar, própria das aldeias da Galileia, que o menino Jesus cresceu, amadureceu e descobriu a vida. O coro dos meninos na escola, a voz das raparigas na fonte de água, o monótono golpear do martelo na carpintaria, o grito repetido das mães chamando para casa as suas filhas entretidas na rua foram o clima que Jesus respirou e assimilou durante 30 anos.
E quando um dia o seu Pai do céu lhe pediu que deixasse tudo e fosse pregar a mensagem de salvação aos seus irmãos humanos, nunca se arrependeu dos anos passados na sua aldeia, na sua casa e com a sua gente; dos seus anos ocultos e silenciosos; do seu trabalho na oficina e dos encontros com amigos. Nunca considerou esse tempo como “perdido”, pois viveu cada dia e cada época como a melhor que tinha. E assim o ensinou também, quando se tornou adulto:«Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações. Basta a cada dia o seu problema» (Mt 6,34).
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