Pular para o conteúdo principal

O Nascimento de Jesus em Belém – parte 2


Enfaixado numa manjedoura, o Portador da Salvação de toda a humanidade



Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias par o parto, e ela deu à luz o seu Filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na sala (Lc 2,6-7).

INICIAMOS ESTE SEGUNDO estudo  a partir das últimas palavras desta frase: “por não haver lugar para eles na sala”. A meditação, na fé, dessas palavras, encontrou  nessa afirmação um paralelismo íntimo com as palavras, cheias de profundo conteúdo, que temos no Prólogo do Evangelho segundo S. João: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (1,11). Para o Salvador do mundo, aqu'Ele para quem todas as coisas forma criadas (cf. Cl 1,16), não há lugar. “As raposas têm tocas e as aves do céu tem seus ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20). Aqu'Ele que foi crucificado fora das portas da cidade (cf. Hb 13,12) também nasceu fora das portas da cidade.

Tudo isso nos deve fazer pensar, nos deve recordar a inversão de valores que se verifica na figura de Jesus Cristo, na sua Mensagem. Desde o seu Nascimento, Jesus não pertence àqueles ambientes que, aos olhos do mundo, são importantes: contudo é precisamente este homem irrelevante e sem poder que se revela como o verdadeiramente Poderoso, como aqu'Ele de quem, no final das contas, tudo depende. Por conseguinte, faz parte do tornar-se cristão este sair do âmbito daquilo que todos pensam e querem, sair dos critérios predominantes, para entrar na Luz da Verdade sobre o nosso ser e, com essa Luz, alcançar o Caminho de nossa redenção e salvação.

Maria pôs o Menino recém-nascido numa manjedoura (cf. Lc 2,7). Daqui, com razão, se decidiu que Jesus nasceu num estábulo, num ambiente pouco confortável; vem-nos mesmo então a tentação de dizê-lo, um ambiente indigno, – que todavia, proporcionava a discrição necessária para o Acontecimento sagrado mais importante de todos os tempos. 

Desde sempre, na região ao redor de Belém, usaram-se as grutas como estábulo (cf. Stuhmacher, Die Geburt des Immanuel, p.51). Já no mártir Justino (†165) e em Orígenes (†254 aprox.) se encontra a tradição segundo a qual o lugar do Nascimento de Jesus teria sido uma gruta, que os cristãos na Palestina indicavam. O fato de Roma, – depois da expulsão dos judeus da Terra Santa no segundo século, – ter transformado a gruta num lugar de culto a Tammuz-Adonis, pretendendo desse modo, evidentemente, suprimir a memória cultual dos cristãos, confirma a antiguidade de tal lugar de culto, e mostra também a importância com que era avaliado pelos romanos; muitas vezes as tradições locais são uma fonte mais atendível que as informações escritas. Pode-se, portanto, reconhecer uma medida notável de credibilidade na tradição local de Belém, à qual está ligada a própria Basílica da Natividade.

Maria envolveu o Menino com faixas. Sentimentalismos à parte, podemos imaginar o amor com que Maria aguardara a sua hora e como terá preparado o Nascimento de seu tão amado e esperado Filho. A tradição dos ícones, com base na Teologia dos Padres, interpretou teologicamente também a manjedoura e as faixas: o Menino rigorosamente envolvido com faixas aparece como uma alusão antecipada à hora de sua morte: Jesus é, desde o início, o Imolado. Por isso, a manjedoura era representada como uma espécie de Altar.

Agostinho interpretou o significado da manjedoura com um pensamento que pode, à primeira vista, parecer quase inconveniente, mas, se examinado mais atentamente, encerra uma verdade profunda. A manjedoura é o lugar onde os animais encontram seu alimento. Agora, porém, jaz na manjedoura aqu'Ele que havia de apresentar-se a Si mesmo como o verdadeiro Pão descido dos Céus, como verdadeiro Alimento de que o homem necessita. É o Alimento que dá ao homem a Vida verdadeira: a Vida eterna. Dessa forma, a manjedoura torna-se uma alusão à Mesa de Deus, para a qual é convidado o homem a fim de receber o Pão de Deus. Na pobreza do Nascimento de Jesus, delineia-se a grande realidade, em que, misteriosamente, se realiza a Redenção dos homens.


A Natividade por Giotto (séc. IV)

Como se disse, a manjedoura faz pensar nos animais que encontram nela o seu alimento. Aqui, no Evangelho, não se fala de animais; mas a meditação guiada pela fé, lendo o Antigo e o Novo Testamento correlacionados, não tardou a preencher esta lacuna, reportando-se a Isaías (1,3): “O boi conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura do seu senhor; mas Israel é incapaz de conhecer. O meu povo não pode entender”.

Peter Stuhlmacher observa que provavelmente teve influência também a versão grega (dos Setenta, ‘LXX’) de Habacuc 3,2: “No meio de dois seres vivos (...) Tu serás conhecido; quando vier o tempo, tu aparecerás” (cf. STUHLMACHER, Die Geburt des Immanuel, p.52). Aqui, como "os dois seres vivos", evidentemente entende-se os dois Querubins que, segundo Êxodo (25,18-20), estavam postos sobre a cobertura da Arca da Aliança, indicando e simultaneamente escondendo a Presença misteriosa de Deus. Assim, como Maria Virgem, a manjedoura tornar-se-ia, de certo modo, uma nova Arca da Aliança, na qual Deus, misteriosamente guardado, está no meio dos homens e à vista da qual chegou, para “o boi e o jumento”, para a humanidade, formada por judeus e gentios, a hora do conhecimento de Deus.

Portanto, na singular conexão entre Isaías 1,3; Habacuc 3,2 e Êxodo 25,18-20 e a manjedoura, aparecem os dois animais como representação da humanidade, por si mesma desprovida de compreensão, que, diante do Menino, – diante da aparição humilde de Deus no estábulo, – chega ao conhecimento e, na pobreza de tal Nascimento, recebe a epifania que agora ensina todos a ver Deus. Bem depressa, a iconografia cristã individuou este motivo. Nenhuma representação autêntica do presépio prescindirá do boi e do jumento.

Depois dessa pequena divagação, voltemos ao texto do Evangelho. Nele lemos: Maria “deu à luz o seu Filho primogênito” (Lc 2,7). O que significa isso?

O primogênito não é necessariamente o primeiro de uma série em sucessão. O termo “primogênito” não alude a uma numeração em ato, mas indica uma qualidade teológica expressa nas mais antigas coleções de leis de Israel. Nas prescrições relativas à Páscoa, aparece esta frase: 

O SENHOR falou a Moisés, dizendo: ‘Consagra-me todo o primogênito, todo o que abre o útero materno entre os filhos de Israel. Homem ou animal, será meu’” (Ex 13,1-2). “Todo primogênito do homem, entre teus filhos, tu o resgatarás.
(Ex 13,13)

Primogênito é aquele que "abre o útero", seja filho único ou não. Assim, a frase sobre o primogênito é também já uma alusão antecipada à narração sucessiva da apresentação de Jesus no Templo. Seja como for, com essa palavra, acena-se a uma particular pertença de Jesus a Deus.

A Teologia paulina, em duas etapas, desenvolveu ainda mais este pensamento de Jesus como Primogênito. Na Carta aos Romanos, Paulo designa Jesus como “o Primogênito entre muitos irmãos” (8,29); como Ressuscitado, Ele é agora de modo novo “Primogênito” e, ao mesmo tempo, o início de uma multidão de irmãos; no novo Nascimento da Ressurreição, Jesus já não é apenas o primeiro na ordem da dignidade, mas é aqu'Ele que inaugura uma nova humanidade. Demos graças a Deus!

Agora, depois de se ter derrubado a porta férrea da morte, são muitos os que por ela podem passar, juntamente com Ele: todos aqueles que, no Batismo, morreram e ressuscitaram com Ele.

Na Carta aos Colossenses, esse pensamento é ampliado ainda mais: Cristo é designado o “Primogênito de toda criatura” (1,15); “o Primogênito dos mortos” (1,18). “N’Ele foram criadas todas as coisas” (1,16); “Ele é o Princípio” (1,18). O conceito de primogenitura adquire dimensão cósmica: Cristo, Deus e Filho de Deus encarnado, é, por assim dizer, a "primeira ideia" do Deus Uno e Trino e antecede toda criatura que está ordenada para Ele e a partir d’Ele. Por isso, é também Princípio e Fim da nova Criação, que teve início com a Ressurreição.

Em Lucas não se fala de tudo isso, mas para os sucessivos leitores do seu Evangelho, – isto é, também para nós, – sobre a pobre manjedoura na gruta de Belém está já presente este Esplendor cósmico: aqui o verdadeiro Primogênito do Universo entrou no meio de nós!

____
Fonte:
RATZINGER, Joseph. A Infância de Jesus, 3ª ed. São Paulo: Planeta, 2013 pp. 53-59

Postagens mais visitadas deste blog

Pai Nosso explicado

Pai Nosso - Um dia, em certo lugar, Jesus rezava. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou a seus discípulos”. È em resposta a este pedido que o Senhor confia a seus discípulos e à sua Igreja a oração cristã fundamental, o  Pai-Nosso. Pai Nosso que estais no céu... - Se rezamos verdadeiramente ao  "Nosso Pai" , saímos do individualismo, pois o Amor que acolhemos nos liberta  (do individualismo).  O  "nosso"  do início da Oração do Senhor, como o "nós" dos quatro últimos pedidos, não exclui ninguém. Para que seja dito em verdade, nossas divisões e oposições devem ser superadas. É com razão que estas palavras "Pai Nosso que estais no céu" provêm do coração dos justos, onde Deus habita como que em seu templo. Por elas também o que reza desejará ver morar em si aquele que ele invoca. Os sete pedidos - Depois de nos ter posto na presença de Deus, nosso Pai, para adorá-lo...

O EXÍLIO BABILÔNICO

Introdução O exílio marcou profundamente o povo de Israel, embora sua duração fosse relativamente pequena. De 587 a 538 a E.C., Israel não conhecerá mais independência. O reino do Norte já havia desaparecido em 722 a.E.C. com a destruição da capital, Samaria. E a maior parte da população dispersou-se entre outros povos dominados pela Assíria, o reino do Sul também terminará tragicamente em 587 a.E.C. com a destruição da capital Jerusalém, e parte da população será deportada para a Babilônia. Tanto os que permaneceram em Judá como os que partirem para o exílio carregaram a imagem de uma cidade destruída e das instituições desfeitas: o Templo, o Culto, a Monarquia, a Classe Sacerdotal. Uns e outros, de forma diversa, viveram a experiência da dor, da saudade, da indignação, e a consciência de culpa pela catástrofe que se abateu sobre o reino de Judá. Os escritos que surgiram em Judá no período do exílio revelam a intensidade do sofrimento e da desolação que o povo viveu. ...

Nossa Senhora da Conceição Aparecida

NOSSA SENHORA da Santa Conceição Aparecida é o título completo que a Igreja dedicou à esta especial devoção brasileira à Santíssima Vigem Maria. Sua festa é celebrada em 12 de outubro. “Nossa Senhora Aparecida” é a diletíssima Padroeira do Brasil. Por que “Aparecida”? Tanto no Arquivo da Cúria Metropolitana de Aparecida quanto no Arquivo Romano da Companhia de Jesus constam os registros históricos da origem da imagem de Nossa Senhora, cunhada "Aparecida". A história foi registrada pelo Pe. José Alves Vilela em 1743, e confirmada pelo Pe. João de Morais e Aguiar em 1757. A história se inicia em meados de 1717, por ocasião da passagem do Conde de Assumar, D. Pedro de Almeida e Portugal, governador da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, pela povoação de Guaratinguetá, a caminho de Vila Rica (atual Ouro Preto, MG). Os pescadores Domingos Garcia, Felipe Pedroso e João Alves foram convocados a providenciar um bom pescado para recepcionar o Conde, e partiram a l...