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Introdução à Bíblia ou às Sagradas Escrituras


Iniciamos com esta uma série de postagens que pretendem aprofundar a disciplina Sagrada Escritura, no decorrer da qual abordaremos, entre outros temas: a formação e o conjunto dos livros canônicos, – e o processo próprio de canonização; – aSeptuaginta; os textos massoréticos; as Escrituras utilizadas pelos Apóstolos, pela Igreja nascente e primitiva e pelo próprio Cristo; o cânon de Jâmnia; a origem e relação entre os livros canônicos e protocanônicos; etc. Em mais esta empresa, rezamos a Nosso Senhor para que nos conceda que nossos esforços sejam úteis ao maior número de interessados, para a Sua Glória em primeiro lugar.


OS PRIMEIROS CRISTÃOS, incumbidos pelo próprio Cristo Salvador de manter a Fé e proclamar a autêntica verdade dos Evangelhos, cumpriram esta missão e continuam a cumpri-la em seus legítimos sucessores. A Igreja, por meio do seu sagrado Magistério, proclama a Verdade plena sobre Deus e a Salvação através das Escrituras e da Tradição (cf. Mt 28,20; Rm 10,17; 2Ts 2,15). A Igreja, Corpo Místico de Cristo (cf. Ef 1,22-23), enquanto fiel depositária da Palavra de Deus (segundo 1Timóteo 3,15, a Igreja é 'a coluna e o sustentáculo da Verdade') dá-nos a conhecer a infinita Sabedoria de Deus (Ef. 3,10) e seus caminhos.

O discernimento dos livros que autenticamente representam o registro por escrito das Verdades de Fé reveladas não se deu de modo miraculosamente instantâneo. Nenhum anjo desceu dos Céus para assoprar aos ouvidos de algum ser humano que livros deveriam compor as Sagradas Escrituras dos cristãos. A Bíblia Sagrada pronta e encadernada da qual dispomos hoje é o resultado de um gradual e longo processo de anos, décadas e, de fato, séculos, assim como testemunhou o evangelista São Lucas:

Visto que muitos já empreenderam compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós, – conforme no-los transmitiram aqueles que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da Palavra. – Também a mim me pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo, desde o princípio, escrevê-los (...) de modo ordenado..."
(Lc 1,1-36)1

O Cânon e as origens

"Cânon" é uma palavra derivada do grego (canonikανόνι), que significa, literalmente, "cana", com o sentido de régua. A cana era utilizada, na antiguidade, como régua para medir dimensões e profundidades. Deste modo, em sentido espiritual, o cânon é a medida usada para se definir o que é correto, legítimo e verdadeiro do que é enganoso, falso e não autêntico. O Cânon bíblico, portanto, é a lista dos livros que, segundo a Igreja divinamente autorizada, – aquela que guarda, portanto, a Tradição católica (universal; para todos os povos) e apostólica, – compõem a Biblioteca sagrada dos cristãos, isto é, a Bíblia.

Também a palavra "Bíblia" vem do grego (biblos: βίβλος), que significa, literalmente, "biblioteca". Chamamos a Bíblia justamente de Bíblia porque não é propriamente um livro, e sim uma coleção ou conjunto de livros (uma biblioteca) selecionados e autenticados pela Igreja como divinamente inspirados para a nossa condução enquanto cristãos. Por esta razão é que alguns autores preferem referir-se às Sagradas Escrituras, no plural, ao invés de dizer Sagrada Escritura, com a intenção de evitar que se tenha a impressão de se tratar de um livro único, feito de uma só vez e que nos chegou pronto.

O início da redação dos livros sagrados que compõem a Bíblia teve seu início, aproximadamente, no século XVaC. Sua conclusão, – com a terceira Epístola de S. João, – deu-se apenas na segunda metade do século I aC. Mais de 1500 anos, portanto, entre o início e a conclusão do conjunto da obra. 

A Bíblia que conhecemos hoje, organizada como está, num único volume (e assim podemos chamá-la de Livro Sagrado, mesmo não sendo um único livro e sim uma biblioteca) não nos foi dada pronta pelos Apóstolos. Assim, evidentemente, antes de se reunir os livros que eram usados pelas comunidades da Igreja, era preciso definir quais livros deveriam de fato compor uma lista autêntica e oficial, que verdadeiramente pregasse as Verdades Reveladas. 



Ainda que alguns pesquisadores acreditem na possibilidade de ter existido uma espécie de cânon bíblico judaico, que teria sido definido após a época de Esdras (15º Livro da Bíblia)2. Ainda assim, é fato que não existia nos primeiros séculos da era cristã o consenso sobre quais livros deveriam ser considerados canônicos, tanto do Antigo Testamento (AT) quanto do Novo Testamento (NT). Nos primeiros tempos, alguns livros eram aceitos por toda a Igreja, enquanto que outros tinham sua inspiração contestada e posta em dúvida. Como é fácil se deduzir, alguns livros foram canonizados antes de outros.

Deste modo, os livros canônicos que compõem as Sagradas Escrituras foram classificados segundo a ordem do reconhecimento de sua canonicidade (leia mais a respeito neste estudo específico). São os chamados protocanônicos (proto, do grego πρώτο, significa 'primeiro') e deuterocanônicos (deutero, também do grego Δευτεριο, significa 'posterior' ou 'segundo'). Protocanônicos, portanto, são os livros que tiveram sua canonicidade reconhecida em primeiro lugar. Deuterocanônicos são aqueles que tiveram sua canonicidade reconhecida posteriormente.

Existem livros proto e deuterocanônicos tanto no AT quanto no NT. A lista dos livros deuterocanônicos do AT é a seguinte: Tobias; Judite; Sabedoria; Eclesiástico; Baruc; 1 e 2 Macabeus, além de acréscimos do Ester (10,4 a 16,24) e Daniel (3,24-90; 13; 14).

A lista dos livros deuterocanônicos do NT é: 2Pedro; 2João; 3João; Tiago; Judas; Hebreus e Apocalipse.

Há controvérsia quanto à inclusão, nesta lista, dos Livros de  Baruc e de Ester.

Além das listas dos livros proto e deuterocanônicos, temos uma lista de livros que circulavam entre as primeiras comunidades da Igreja primitiva (via de regra de redação mais recente que os demais) que não foram jamais canonizados, e que formam o conjunto dos livros chamados apócrifos. Quanto a estes, apesar de seus conteúdos não serem confiáveis (não podem ser consultados com intenção de se compreender a Sã Doutrina da Igreja), muitas vezes apresentam fontes inestimáveis para o estudo e compreensão do contexto cultural, histórico e filosófico da época e do lugar em que se desenvolveram os textos do NT.


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 Na continuação: Como se fixa o Cânon, o Texto Massorético e a Septuaginta

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Notas:
1. A tradução da Bíblia utilizada nesta série de postagens é a da Bíblia de Jerusalém revista e ampliada (Paulus, 2002).
2. O Livro de Esdras teria sido escrito entre  350 e 250 aC, sendo que suas narrativas se situam no V século aC, – época da conquista da Babilônia por Ciro, isto é, outono de 539; o primeiro ano do seu reinado sobre o império babilônico começa em Nisan (março/abril) do ano 538 (BÍBLIA DE JERUSALÉM revista e ampliada, Livro de Esdras, São Paulo: Paulus, 2002, p. 628 nota a).

Fontes e ref. bibliográfica:
• BÍBLIA DE JERUSALÉM revista e ampliada, Livro de Esdras, São Paulo: Paulus, 2002.
• LIMA. Alessandro Ricardo. O Cânon Bíblico: a origem da Lista dos Livros Sagrados, Brasília: ComDeus, 2007.
• MORUJÃO, Geraldo. O que são os Evangelhos? São Paulo: Quadrante, 1992.
• PÉREZ, Félix Garrondo. Itinerário bíblico para ler e entender a Sagrada Escritura, São Paulo: Loyola, 1998

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