Sobre a seleção dos Livros Canônicos
COMO VIMOS, nos primeiros séculos da era cristã havia uma grande quantidade de cartas, relatos dos Evangelhos e textos religiosos circulando entre as comunidades da Igreja primitiva, que eram lidos piedosamente entre os primeiros cristãos (alguns reverenciados como santos escritos), entre os quais estavam os livros que hoje compõem o Novo Testamento da Bíblia cristã, mas também uma grande quantidade de outros textos, que posteriormente viriam a ser considerados apócrifos. Até o século IV não houve consenso quanto a que livros deveriam compor a lista canonicamente reconhecida como Escritura Sagrada.
Considerando-se esta simples realidade, torna-se evidente a completa impossibilidade de ter existido, entre os Apóstolos e os primeiros cristãos, qualquer concepção doutrinária minimamente semelhante àquilo que viria a se chamar Sola Scriptura (só a Escritura), mais de um milênio e meio depois do Advento de Cristo. Ainda assim, – para escândalo do cristão bem formado, – persiste em nossos tempos a ideia de que seria possível reconhecer a lista dos livros canônicos1 simplesmente pela evidência da sua Inspiração divina. Segundo esta linha de pensamento, de algum modo Deus/Espírito Santo revelaria de modo quase que instantâneo sua "assinatura" a todo indivíduo que simplesmente se pusesse a folhear as Escrituras. Seria então a Igreja um fator completamente subjetivo e, mais do que isso, desnecessário para a escolha dos textos que compõem o Livro Sagrado dos cristãos.
Considerando-se esta simples realidade, torna-se evidente a completa impossibilidade de ter existido, entre os Apóstolos e os primeiros cristãos, qualquer concepção doutrinária minimamente semelhante àquilo que viria a se chamar Sola Scriptura (só a Escritura), mais de um milênio e meio depois do Advento de Cristo. Ainda assim, – para escândalo do cristão bem formado, – persiste em nossos tempos a ideia de que seria possível reconhecer a lista dos livros canônicos1 simplesmente pela evidência da sua Inspiração divina. Segundo esta linha de pensamento, de algum modo Deus/Espírito Santo revelaria de modo quase que instantâneo sua "assinatura" a todo indivíduo que simplesmente se pusesse a folhear as Escrituras. Seria então a Igreja um fator completamente subjetivo e, mais do que isso, desnecessário para a escolha dos textos que compõem o Livro Sagrado dos cristãos.
A Inspiração divina de um livro, segundo tal absurda linha de pensamento, poderia ser verificada pelos piedosos efeitos que causa no fiel. Nada nos parece mais óbvio do que a completa falsidade desta noção, principalmente por ser inescapavelmente relativa: ora, não poderiam afirmar o mesmo (como de fato o fazem) os hindus, os muçulmanos, os espíritas e os seguidores das mais diversas e estrambóticas seitas? O conceito de que a Bíblia se revelaria por si própria, além de totalmente subjetivo, evidentemente depende de conceitos e critérios ainda mais subjetivos. Como poderia qualquer indivíduo definir quais atributos caracterizam e diferenciam um livro inspirado de um outro não inspirado? Quais seriam os critérios de avaliação destes mesmos atributos?
"Cada cabeça uma sentença", lembra um adágio popular de origem antiquíssima, e repleto de sabedoria. Ora, certa afirmativa ou narrativa que alguém poderia jurar que tem origem divina seria facilmente considerado como mero disparate por outra pessoa. Eis o motivo pelo qual a Igreja una, instituída por Cristo, – que por isso mesmo tem um só SENHOR e professa uma só Fé (Ef 4,5), – foi sempre sumamente necessária: "Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edifico minha Igreja" (Mt 16,18); "Pedro, apascenta minhas ovelhas" (Jo 21,15-17); "Pedro, confirma os teus irmãos" (Lc 22, 31-32), diz o Senhor ao primeiro Papa, e o próprio diz de si mesmo, no primeiro Concílio da Igreja: "Irmãos, sabeis que há muito tempo o Senhor me escolheu dentre vós, para que da minha boca os pagãos ouvissem a Palavra do Evangelho" (At 15,7).
Assim como o Senhor Jesus Cristo prometeu que estaria com a sua Igreja (singular) até o fim dos tempos (Mt 28,20), nenhum autor sagrado afirmou, – por escrito, – ter escrito sob impulso do Espírito Santo, sendo a única exceção S. João no seu Apocalipse. Todavia, mesmo que cada livro da Bíblia contivesse a seguinte autenticação: "Este livro foi escrito inspirado por Deus", isto não seria realmente prova alguma, pelo simples motivo de que os autores de livros apócrifos, especialmente os mal intencionados, poderiam acrescentar a mesma afirmativa às suas obras. Não existem, – aos montes, – autores de livros espíritas que afirmam escrever inspirados por padres falecidos e mesmo por santos católicos, e o atestam em suas obras infames? Não se afirma o Alcorão inspirado por Deus, e também o Livro de Mórmon, assim como os livros de Mary Baker Eddy2 e Ellen G. White3, além de muitos outros provenientes de seitas orientais?
Um último caso a ser analisado é o daqueles que afirmam que a Inspiração divina de um livro poderia ser verificada pela inspiração que causa no crente: "É inspirado porque inspira", dizem estes. Outra grande engano, e mais ainda, uma tolice digna de pena. Se não, notemos como existem diversos escritos religiosos antigos, inclusive entre textos apócrifos e até, – somos forçados a dizê-lo, – escrituras não cristãs, que poderíamos com muita justiça considerar mais "inspiradores", por mais emotivos, carregados de forte simbolismo e apelo às sensibilidades humanas, do que muitos textos e até livros inteiros do AT da Bíblia Sagrada. Tomemos como exemplo o Livro de Números: seria possível, usando apenas este critério, afirmar que o Livro de Números é divinamente Inspirado? Por certo que não. Entretanto, este Livro está presente em todas as Bíblias Cristãs, seja protestante, católica ou ortodoxa.
É de fato coisa muito simples demonstrar, portanto, que não é possível definir a divina Inspiração de um livro mediante a mera análise particular, como também não se poderia defini-la mesmo que o próprio livro se declarasse como tal. De fato, a fixação do cânon não poderia estar sujeita às opiniões pessoais, nem fundamentadas em quaisquer métodos de verificação por sua própria natureza subjetivos e duvidosos.
Por fim, resta salientar que também não seria possível identificar a totalidade dos livros bíblicos exclusivamente por meio do estudo dos livros desde sempre consensualmente canônicos. Em outras palavras, também não se pode, por meio dos livros protocanônicos, conhecer a lista dos deuterocanônicos4 que compõem tanto o Antigo quanto o Novo Testamento. Como exemplo, em S. Lucas (24,27.47) e S. João (10,34) aparecem as expressões "Moisés e os Profetas"; "a Lei e os Profetas" e "Lei, Profetas e Salmos", sempre relacionadas ao conceito de Escritura Sagrada. Mas a expressão "Profetas" abrangeria quais livros? Datados da mesma época dos Profetas existe uma grande quantidade de outros livros cuja autoria é atribuída aos antigos Profetas do AT que, no entanto, hoje não são considerados canônicos. Do mesmo modo, existem outros cuja autoria profética ainda é duvidosa e mesmo assim são considerados canônicos por todos os cristãos.
O mesmo se aplica aos Salmos: existe, por exemplo, um escrito denominado Salmo 151, que é considerado canônico apenas pela Igreja Ortodoxa. E o que dizer de livros como Provérbios, Eclesiastes, Ester, Rute, e 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis e Josué? Seriam parte de qual grupo? Lei, Profetas ou Salmos? Ou pertenceriam a um outro grupo cuja menção se não encontra em qualquer livro protocanônico?
Um fato ainda mais impactante, – tanto quanto pouco conhecido, é que a Bíblia faz referência a pelo menos 31 livros que hoje são considerados apócrifos pelos cristãos (HAMMER, 2006). 21 destes livros são do AT, O mesmo acontece com o NT, que menciona o livro "Ascensão de Moisés" (cf. Jd 1,9) e "Livro de Henoc" (cf. Jd 1,14). – Foram perdidas a Epístola de Paulo aos Laodicenses (Cl 4,15-16) e sua Prévia aos Coríntios (1Cor 5,9-10).
Assim, pelas razões já apresentadas e pelo fato de a Bíblia mesma não definir o seu conjunto de livros sagrados, o discernimento do Cânon bíblico necessariamente depende de algo que é exterior aos próprios livros sagrados. A Bíblia não se forma nem se autoriza por si mesma. Sua legitimidade depende de uma autoridade externa e anterior que lhe define. Sempre foi assim na tradição judaico-cristã. Podemos tomar como exemplo o Pentateuco5, que sempre foi considerado canônico pelos judeus, porém não por sua própria autoridade, mas porque tinham origem na Tradição judaica e em Moisés, que tinha a autoridade de seu legítimo Magistério (cf. Ex 18,13-14; Mt 19,7-8). Da mesma maneira se dá com os escritos dos Profetas, livros cuja autoridade igualmente não partia de si mesmos, do que afirmam ou deixam de afirmar, mas no anúncio anterior dos mesmos Profetas (como na Tradição cristã), ou porque sua autoria é atribuída a homens legitimamente autorizados por Deus (Magistério).
Está claro que a atribuição de Autoridade divina a um livro, – a definição de sua canonicidade, – sempre dependeu da autoridade de algo exterior/anterior ao livro em si: a Tradição que lhe deu origem e o Magistério divinamente estabelecido, reconhecido como legítimo guardião e difusor das verdades que o livro atesta.
Esta antiga e divina relação não se aplica somente ao Cânon bíblico. Observe-se que alguns dos livros bíblicos não trazem o nome do seu autor (o Pentateuco e os 4 Evangelhos, por exemplo). A atribuição de sua autoria dependeu da Tradição e do Magistério da Igreja divinamente instituída.
** Na continuação: o texto massorético e a Septuaginta
__________É de fato coisa muito simples demonstrar, portanto, que não é possível definir a divina Inspiração de um livro mediante a mera análise particular, como também não se poderia defini-la mesmo que o próprio livro se declarasse como tal. De fato, a fixação do cânon não poderia estar sujeita às opiniões pessoais, nem fundamentadas em quaisquer métodos de verificação por sua própria natureza subjetivos e duvidosos.
Por fim, resta salientar que também não seria possível identificar a totalidade dos livros bíblicos exclusivamente por meio do estudo dos livros desde sempre consensualmente canônicos. Em outras palavras, também não se pode, por meio dos livros protocanônicos, conhecer a lista dos deuterocanônicos4 que compõem tanto o Antigo quanto o Novo Testamento. Como exemplo, em S. Lucas (24,27.47) e S. João (10,34) aparecem as expressões "Moisés e os Profetas"; "a Lei e os Profetas" e "Lei, Profetas e Salmos", sempre relacionadas ao conceito de Escritura Sagrada. Mas a expressão "Profetas" abrangeria quais livros? Datados da mesma época dos Profetas existe uma grande quantidade de outros livros cuja autoria é atribuída aos antigos Profetas do AT que, no entanto, hoje não são considerados canônicos. Do mesmo modo, existem outros cuja autoria profética ainda é duvidosa e mesmo assim são considerados canônicos por todos os cristãos.
O mesmo se aplica aos Salmos: existe, por exemplo, um escrito denominado Salmo 151, que é considerado canônico apenas pela Igreja Ortodoxa. E o que dizer de livros como Provérbios, Eclesiastes, Ester, Rute, e 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis e Josué? Seriam parte de qual grupo? Lei, Profetas ou Salmos? Ou pertenceriam a um outro grupo cuja menção se não encontra em qualquer livro protocanônico?
Um fato ainda mais impactante, – tanto quanto pouco conhecido, é que a Bíblia faz referência a pelo menos 31 livros que hoje são considerados apócrifos pelos cristãos (HAMMER, 2006). 21 destes livros são do AT, O mesmo acontece com o NT, que menciona o livro "Ascensão de Moisés" (cf. Jd 1,9) e "Livro de Henoc" (cf. Jd 1,14). – Foram perdidas a Epístola de Paulo aos Laodicenses (Cl 4,15-16) e sua Prévia aos Coríntios (1Cor 5,9-10).
Assim, pelas razões já apresentadas e pelo fato de a Bíblia mesma não definir o seu conjunto de livros sagrados, o discernimento do Cânon bíblico necessariamente depende de algo que é exterior aos próprios livros sagrados. A Bíblia não se forma nem se autoriza por si mesma. Sua legitimidade depende de uma autoridade externa e anterior que lhe define. Sempre foi assim na tradição judaico-cristã. Podemos tomar como exemplo o Pentateuco5, que sempre foi considerado canônico pelos judeus, porém não por sua própria autoridade, mas porque tinham origem na Tradição judaica e em Moisés, que tinha a autoridade de seu legítimo Magistério (cf. Ex 18,13-14; Mt 19,7-8). Da mesma maneira se dá com os escritos dos Profetas, livros cuja autoridade igualmente não partia de si mesmos, do que afirmam ou deixam de afirmar, mas no anúncio anterior dos mesmos Profetas (como na Tradição cristã), ou porque sua autoria é atribuída a homens legitimamente autorizados por Deus (Magistério).
Está claro que a atribuição de Autoridade divina a um livro, – a definição de sua canonicidade, – sempre dependeu da autoridade de algo exterior/anterior ao livro em si: a Tradição que lhe deu origem e o Magistério divinamente estabelecido, reconhecido como legítimo guardião e difusor das verdades que o livro atesta.
Esta antiga e divina relação não se aplica somente ao Cânon bíblico. Observe-se que alguns dos livros bíblicos não trazem o nome do seu autor (o Pentateuco e os 4 Evangelhos, por exemplo). A atribuição de sua autoria dependeu da Tradição e do Magistério da Igreja divinamente instituída.
** Na continuação: o texto massorético e a Septuaginta
1. Aqueles que, segundo a Igreja divinamente autorizada, compõem a Biblioteca sagrada dos cristãos, por terem sido escritos sob Inspiração divina e integrarem o conjunto de verdades que formam a Verdade Revelada aos cristãos, isto é, a Bíblia Sagrada
2. Mary Baker Eddy foi a criadora da seita 'Ciência Cristã' em 1866. Autora do livro-texto deste movimento religioso, intitulado 'Ciência e Saúde com a Chave das Escrituras', fundou 'A Primeira Igreja de Cristo, Cientista', em Boston, EUA.
3. Ellen Gold White foi uma cristã americana, proclamada 'profetisa' e escritora cujo ministério foi fundamental para fundação do movimento Adventista sabatista, que mais tarde veio a formar a 'Igreja Adventista do Sétimo Dia'.
4. Protocanônicos (proto, do grego πρώτο, significa 'primeiro') são os livros que tiveram sua canonicidade reconhecida pela Igreja em primeiro lugar; deuterocanônicos (deutero, também do grego Δευτεριο, significa 'posterior' ou 'segundo'). Deuterocanônicos, portanto, são os livros que tiveram sua canonicidade reconhecida posteriormente.
Existem livros proto e deuterocanônicos tanto no AT quanto no NT. A lista dos livros deuterocanônicos do AT é: Tobias; Judite; Sabedoria; Eclesiástico; Baruc; 1 e 2 Macabeus, além de acréscimos do Ester (10,4 a 16,24) e Daniel (3,24-90; 13; 14). A lista dos livros deuterocanônicos do NT é: 2Pedro; 2João; 3João; Tiago; Judas; Hebreus e Apocalipse.
5. Pentateuco (do grego penta = cinco; teuxos = volume ou livro) é o nome dado ao conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia, cuja autoria é tradicionalmente atribuída a Moisés: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. A origem deste nome vem da primeira tradução do hebraico para o grego do AT, no terceiro século antes de Cristo, chamadaSeptuaginta.
• LIMA. Alessandro Ricardo. O Cânon Bíblico: a origem da Lista dos Livros Sagrados, Brasília: ComDeus, 2007.
• HAMMER, Charles. 31 Livros perdidos citados pela Bíblia, artigo de Traditional Catholic Apologetics, Trad. de Carlos Martins Nabeto, 2006. A lista dos Livros perdidos encontra-se disponível neste website, em:
www.ofielcatolico.com.br/2001/03/livros-citados-pela-biblia-atualmente.html• HAMMER, Charles. 31 Livros perdidos citados pela Bíblia, artigo de Traditional Catholic Apologetics, Trad. de Carlos Martins Nabeto, 2006. A lista dos Livros perdidos encontra-se disponível neste website, em:
• PÉREZ, Félix Garrondo. Itinerário bíblico para ler e entender a Sagrada Escritura, São Paulo: Loyola, 1998