Pular para o conteúdo principal

ALBERI, GOL DO AMOR-PRÓPRIO





A chuva conspirava, a seleção brasileira de Telê Santana monopolizava as atenções na Copa do Mundo da Espanha, havia a roda de samba de João de Orestes, a Toca do Chicão e o Hotel Ducal com boas atrações noturnas para aquela noite de sábado, 19 de junho de 1982, em Natal. O cabaré de Maria Boa resistia, sem o velho glamour.

Mas 6.917 fanáticos pagaram ingresso para assistir a um clássico entre ABC e América que nada decidia pela Taça Cidade do Natal, uma prévia do Campeonato Potiguar que expandia, de forma democrática, a participação de clubes do interior. Rara pluralidade na Ditadura.

O ABC estreava o meia-atacante Marinho, depois Marinho Apolônio, ex-ídolo do grande rival, que fora contratado para tentar impor um freio na supremacia vermelha do tricampeão do Estado.

Todas as atenções voltadas para Marinho, um craque, felino, apelidado de Pantera pelo narrador Marco Antônio Antunes, e poetizado, "o instinto nativo do gol" pelo meu pai, o comentarista Rubens Lemos.

Entre os dois eu estava, fantasiado com a roupa do ABC, aos 12 anos incompletos, na cabine da Rádio Cabugi AM, quando pipocavam os foguetões das duas torcidas que se confrontavam sem violência.

O América era favorito absoluto. Time entrosado e bem armado pelo técnico Laerte Dória, gaúcho que havia lançado Marinho Apolônio, um recém-chegado juvenil do Sport(PE), cinco anos antes para trucidar o próprio ABC. O América buscava o inédito tetracampeonato.

No ABC, magro arqueado, o técnico Danilo Alvim, ele, o Príncipe, melhor volante da história do futebol brasileiro, um dos fracassados vice-campeões mundiais da tragédia do Maracanazzo, quando perdemos de 2x1, de virada, para o Uruguai de Ghiggia.

Danilo Alvim voltava ao ABC como amuleto e esperança. Ele havia treinado o time do tetracampeonato de 1973, com Erivan, Sabará, o capitão Edson, Telino, Anchieta, Maranhão, Danilo Menezes, Libânio, Jorge Demolidor, Moraes, e a joia mais preciosa: Alberi.

Na noite de 19 de junho de 1982, 30 anos atrás, fazia uma década que Alberi havia ganho a Bola de Prata da revista Placar como melhor atacante do Brasil. Alberi mergulhara em 1972 no esplendor das consagrações, na falsificação estampada na fama.

Na estreia de Marinho Apolonio, Alberi estava em campo, aos 37 anos, elegante, altivo, sob olhares desconfiados da torcida e da imprensa. Já deveria estar aposentado, segundo a expertise e o fanatismo. Danilo Alvim enxergava em Alberi a pureza do vinho a definir o sabor de um jogo.

O ABC começou sem o medo que vinha sentindo há três anos do rival. Logo aos 9 minutos, Marinho, o Apolônio, driblou o zagueiro Lúcio Sabiá , chutou de curva e marcou 1x0. A bola entrou devagar no gol do antigo placar do Estádio Castelão(Machadão).

O ABC renascia por milagre pelos pés de Marinho. Que tocava a bola, driblava, procurava o centroavante Neinha para as tabelas, estava simplesmente deslumbrante. Até ser chutado pelo zagueiro Lúcio e ser expulso com ele. O ABC apagou e a rotina seguiu.

O centroavante Tulica, ex-Fluminense, empatou. Estabanado, o polivalente Arié, que estava de quarto-zagueiro, virou para o América fazendo um gol contra. No finalzinho do primeiro tempo, o ponta-direita Curió encobriu com uma cabeçada o veterano goleiro Zé Luis, com passagens pelo Bahia, o Vasco e o próprio América.

Final de primeiro tempo com 3x1 para o América e a forte perspectiva de uma goleada. Escondido, eu chorava no fundo do corredor das cabines. Ouvia a torcida do ABC vaiar Alberi. Ele havia sido escolhido culpado. "Velho, velho, velho, morto, morto, morto!" O coro da ingratidão que doía em mim.

A chuva forte passou a toró. O Castelão(Machadão) ficou famoso pela drenagem do gramado. O jogo seguia. Lento. América tocando em ritmo de espera. O baixinho Norival, gaúcho, centralizava as jogadas no meio-campo. O ABC perdia outro combatente: O lateral Gelson trocava safanões com o ponta Severinho. Vermelho para ambos.

Aos 35 minutos do segundo tempo, quando o ponta-direita Tinho foi derrubado dentro da área do América, quase não havia torcedor do ABC no estádio. Acho que apenas os solidários fantasmas apaixonados por Alberi desde os tempos de Juvenal Lamartine. O ponta Soares bateu o pênalti e diminuiu para 3x2.

O América manteve a postura dominadora e a posse de bola. O ABC conseguiu retomar as ações quando restavam três minutos. Poucos metros depois do grande círculo, Alberi recebeu uma bola, dominou-a no peito do pé direito e mantendo-a assim, livrou-se do volante Baltazar.

O que assisti a seguir foi a confirmação das miragens descritas pelos mais velhos: Alberi deu apenas um toque à frente e disparou um bólido. O goleiro do América chamava-se Caetano, de passagem nebulosa pelo ABC.

O chute foi tão perfeito que Caetano manteve-se em posição de espera quando a bola já estava presa no ferro do ângulo esquerdo da trave da BR-101. ABC 3x3 América.

O grito do silêncio envergonhado tomou conta do estádio. Menos uma testemunha. Berrei por longos minutos. Gritei, em transe, possesso e enlouquecido: Alberi, Alberi, Alberi! Um gol de gênio. De desabafo. De dor. Do amor. Do amor-próprio.

PS. Há 30 anos, na noite do gol antológico de Alberi, o ABC jogou com Zé Luís; Gelson, Pirulito, Arié e Escada; Jadir, Alberi e Marinho Apolônio; Tinho(Geraldo Tamba), Neinha(Dão) e Soares. O América: Caetano; Ivã Silva, Lúcio Sabiá, Dick e Vassil(Saraiva); Baltazar, Norival e Júnior(Gilson Lopes); Curió, Tulica e Severinho.
http://www.rubenslemos.com.br/novo/inicial.php

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Símbolos e Significados

A palavra "símbolo" é derivada do grego antigo  symballein , que significa agregar. Seu uso figurado originou-se no costume de quebrar um bloco de argila para marcar o término de um contrato ou acordo: cada parte do acordo ficaria com um dos pedaços e, assim, quando juntassem os pedaços novamente, eles poderiam se encaixar como um quebra-cabeça. Os pedaços, cada um identificando uma das pessoas envolvidas, eram conhecidos como  symbola.  Portanto, um símbolo não representa somente algo, mas também sugere "algo" que está faltando, uma parte invisível que é necessário para alcançar a conclusão ou a totalidade. Consciente ou inconscientemente, o símbolo carrega o sentido de unir as coisas para criar algo mair do que a soma das partes, como nuanças de significado que resultam em uma ideia complexa. Longe de objetivar ser apologética, a seguinte relação de símbolos tem por objetivo apenas demonstrar o significado de cada um para a cultura ou religião que os adotou.

Como se constrói uma farsa?

26 de maio de 2013, a França produziu um dos acontecimentos mais emblemáticos e históricos deste século. Pacificamente, milhares de franceses, mais de um milhão, segundo os organizadores, marcharam pelas ruas da capital em defesa da família e do casamento. Jovens, crianças, idosos, homens e mulheres, famílias inteiras, caminharam sob um clima amistoso, contrariando os "conselhos" do ministro do interior, Manuel Valls[1]. Voltando no tempo, lá no já longínquo agosto de 2012, e comparando a situação de então com o que se viu ontem, podemos afirmar, sem dúvida nenhuma, que a França despertou, acordou de sua letargia.  E o que provocou este despertar? Com a vitória do socialista François Hollande para a presidência, foi colocada em implementação por sua ministra da Justiça, Christiane Taubira,  a guardiã dos selos, como se diz na França, uma "mudança de civilização"[2], que tem como norte a destruição dos últimos resquícios das tradições qu

Pai Nosso explicado

Pai Nosso - Um dia, em certo lugar, Jesus rezava. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou a seus discípulos”. È em resposta a este pedido que o Senhor confia a seus discípulos e à sua Igreja a oração cristã fundamental, o  Pai-Nosso. Pai Nosso que estais no céu... - Se rezamos verdadeiramente ao  "Nosso Pai" , saímos do individualismo, pois o Amor que acolhemos nos liberta  (do individualismo).  O  "nosso"  do início da Oração do Senhor, como o "nós" dos quatro últimos pedidos, não exclui ninguém. Para que seja dito em verdade, nossas divisões e oposições devem ser superadas. É com razão que estas palavras "Pai Nosso que estais no céu" provêm do coração dos justos, onde Deus habita como que em seu templo. Por elas também o que reza desejará ver morar em si aquele que ele invoca. Os sete pedidos - Depois de nos ter posto na presença de Deus, nosso Pai, para adorá-lo