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A Verdade – um estudo filosófico


Por Ir. Jean-Dominique, o.p.
Tradução de Euro B. de Barros




A NAJA É UMA SERPENTE terrível. Ela cospe seu veneno a dois metros de distância. Apontando para os olhos da vítima, cega-a, temporária ou definitivamente, e assim esta se torna presa fácil.

Desde as nossas origens, a serpente tem o triste privilégio de representar o demônio, em razão da malícia e da mordida mortal que a caracteriza. Parece, no entanto, que passados alguns séculos, a técnica demoníaca evoluiu. Não contente em nos morder o calcanhar, como a víbora, descobriu um veneno que nos cega. A víbora tornou-se naja. Vejamo-lo...

No início do Cristianismo, o demônio atacava a fé suscitando heresias. Mas a Igreja valeu-se dessas negações fazendo delas ocasiões para proclamar seus dogmas, ainda com mais força e clareza. “Oportet haereses esse”: é preciso que haja heresias (1Cor 11,19). Assim, para fazer surgir almas e uma Igreja que negassem o Objeto da fé, seria preciso cegar a inteligência humana; tornar-lhe impossível qualquer contato com o verdadeiro. Assim fazendo, a fé se diluiria no relativismo, as almas se perderiam sem o perceber.

Como é fácil de constatar, o atentado obteve êxito.

Quem nunca fez a seguinte experiência (repetida rotineiramente por aqui): falar durante uma hora com uma pessoa com o propósito de levá-la de volta à Igreja; argumentar com a sabedoria; responder claramente a todas as suas objeções; e, no entanto, ouvi-la dizer ao despedir-se: “Tudo o que você disse é interessante, mas é a 'sua verdade'... O que importa é estar bem onde nos encontramos”? Ou então: “Muito bem, tudo isso era verdade... no passado”.

Reflexões como essas  revelam um mal profundo e universal. De fato, dizer que a verdade é subjetiva é atentar contra a nossa própria inteligência, na sua estrutura íntima e no seu exercício natural. É interditar qualquer conhecimento verdadeiro. Nesta nossa presente análise, seguiremos o papa S. Pio X em sua encíclica Pascendi Dominici Gregis (8 de setembro de 1907). Sua Santidade enxergou numa falsa teoria do conhecimento, — o agnosticismo, — o ponto de partida do modernismo (§6). Assim resumiu suas causas:

Trata-se da aliança da falsa filosofia com a fé, as quais, ao se misturarem, formam uma massa cheia de erros, danificando todo o sistema da fé. (§58)

Entre os remédios contra o modernismo, S. Pio X destaca como o melhor, “o ensino da filosofia que nos legou o Doutor Angélico” (Santo Tomás). E advertiu aos professores “de que desprezar Santo Tomás, sobretudo nas questões metafísicas, traz prejuízos graves” (§63).

A fim de seguir essas ordens do Santo Padre, voltamo-nos para Santo Tomás de Aquino, o qual tratou, em várias obras, da questão da verdade. Apreciaremos quatro artigos da Suma Teológica, que nos dão um resumo cativante do seu pensamento (I.q. 16,a.1 a a.4). Os citados artigos não constituem um tratado sistemático do assunto, mas nos permitem refutar os erros e preceitos em voga na atualidade. Este estudo se desenvolverá em cinco partes:

Preâmbulo: A Necessidade da Verdade;

Art. 1º: Definição e Divisão da Verdade;

Art. 2º: A Verdade no Homem Que Conhece;

Art. 3º: A Verdade quanto à Coisa Que É Conhecida;

Art. 4º: A Verdade e o Bem.



Preâmbulo

Santo Tomás extrai a definição de verdade, no seu primeiro artigo, de um fato supostamente admitido por todos: “Chama-se verdadeiro aquilo para o qual tende a inteligência”. A verdade é aquilo que toda a inteligência busca.


Santo Tomás, dirigindo-se a pessoas de bom senso, não precisa explicar por que, “assim como a vontade quer o bem, assim a inteligência busca o verdadeiro”. Segue adiante sem parar.

Santo Tomás de Aquino por Fra Angelico 

Infelizmente, constatamos que essa evidência é simplesmente negada por muitos contemporâneos. Existem, certamente, inimigos ardorosos da verdade, isto é, pessoas que a combatem por causa daquilo que creem ser verdadeiro. Estamos, também, porém, cada vez mais em face de um estado de espírito mais perigoso ainda. É o indiferentismo. Toda curiosidade é extinta, os espíritos estão embotados, já não há sede de verdade. Vamo-nos encarregar, neste preâmbulo, de pôr sob todas as luzes à ordenação essencial da inteligência à verdade.

E não somente porque essa ordenação é o ponto de partida do estudo de Santo Tomás, mas porque aqui se verifica, mais uma vez, o adágio: “Não se faz beber um asno que não tem sede”!
Para isto, compreendamos bem o método por seguir. Queremos esclarecer o seguinte fato: a inteligência de todo homem é feita para a verdade. Assim como a retina é feita para receber a luz, e o pulmão o oxigênio, a inteligência também necessita conhecer a verdade. É a sua própria vida. Contudo, esta afirmação, se não se pode demonstrar, também não é discutível. É uma evidência. Diante de uma evidência, só temos duas coisas a fazer: constatar que ninguém poderia mudar de assunto (neste ponto, é preciso observar o comportamento humano), e, a seguir, examinar com atenção cada um dos termos da evidência, de modo que sua conformidade salte aos olhos.


I — Os homens vivem de verdades

Àqueles que negavam a existência de princípios (isto é, verdades ao mesmo tempo indemonstráveis e indiscutíveis), Aristóteles respondia simplesmente: “Não é preciso pensar em tudo o que se diz”. Noutras palavras, você pode sempre negar essas verdades com sua língua, mas seu espírito não pode recusá-las sem se destruir a si próprio, e você as utiliza sem cessar.

Um simples olhar na vida dos homens permite-nos constatá-lo. Observemos o homem supostamente mais indiferente à verdade existente: ele nos mostrará que, se pode negar com a boca a necessidade da verdade, sua vida inteira, porém, é tensionada por esse desejo.

• Esse homem nasceu como todos. Então, o que foi que disse? Não parou de perguntar: “por quê”?, “o que é isto?” Através dessas perguntas é a verdade das coisas que reclamava.
• Tendo crescido, vai à escola, talvez venha a cursar longos anos na universidade. Por que tantos esforços? Sobre o que versaram seus exames? Sobre a verdade. É o verdadeiro que se entregou a ele, pouco a pouco. É o verdadeiro conhecimento das coisas que se esperava dele.
• Terminados os estudos, deseja casar-se. E então, mais do que nunca, o que exige da sua futura esposa? A verdade. A verdade do seu “sim”, a verdade do seu amor. Por nada no mundo quereria construir sua vida conjugal sobre uma mentira.

• O homem estabeleceu-se, tem um bom trabalho, mas deseja subir de nível. Para tanto, busca informar-se. Pode-se imaginar o número de vezes que, durante sua vida, terá aberto um jornal ou um livro, ligado a televisão, ou o rádio, para saber das notícias. Seria impressionante. Ora, com cada um desses gestos o que procura ele? A verdade. Entende que lhe são fornecidas informações verdadeiras.

• Nosso homem festeja seu aniversário. Para regar a refeição, traz de sua adega uma das suas melhores garrafas. Que espera do rótulo? Como sempre, a verdade. Mas que falta de sorte, logo na frente dos seus convidados, se em lugar do vinho generoso anunciado, lhes servisse um vinagre!

• E o que, dizer então, de quando fica doente? Prepara-se para ser atendido por um médico da mais alta competência, e não por um charlatão. Aquele lhe fará um diagnóstico verdadeiro.


II — Análise da inteligência e da verdade

Se observarmos agora, de mais perto, a vida da inteligência, em si e nas suas relações com as demais faculdades, apreenderemos, imediatamente, a necessidade que ela tem da verdade como de seu objeto próprio.


1) A Vida da inteligência

Uma breve análise da linguagem bastará para que nos demos conta disso. A linguagem é, de fato, a expressão imediata da vida do espírito. É como sua tradução fiel.
Ora, se observarmos com atenção, perceberemos que, a despeito da sua infinita complexidade, a linguagem humana pode reduzir-se a proposições muito simples. A afirmação diz: A é B. A negação: A não é B. A pergunta é: A é B? Parece que o centro da linguagem, o eixo em torno do qual se articula, é o verbo ser.

Pois isto não passa da manifestação exterior da nossa inteligência, que se encontra, pois, toda centrada no ser. É na medida em que alcança o ser das coisas que ela encontra seu repouso. É o que se verifica com os dois sentidos do verbo ser:

• Seja quando significa a existência real, como quando se diz: “Pedro é”, “Deus é”;
• Seja quando significa a natureza da coisa, ou uma das suas qualidades, por exemplo: “Pedro é marceneiro”, “Pedro é doente”.

Ora, alcançar o ser das coisas é conhecê-las tais como são na realidade. É o contrário da ilusão, é estar em verdade. Tal é, pois, a atividade vital da inteligência, a conquista da verdade.


2) A Inteligência em Suas Relações com a Vontade e a Imaginação

Observemos, agora, o papel da inteligência em face das demais a potências, isto é, a vontade e a imaginação.

Veremos, pois, claramente, que uma inteligência privada da verdade é fraca, já não tendo nenhuma influência sobre as faculdades que deveria dirigir.

• Primeiro a vontade. É um apetite espiritual que se dirige para o bem. Mas, por si mesma, a vontade é cega. Ela deseja o bem tal qual a inteligência lhe apresenta. Somente a inteligência pode conhecer o que é bom para nós e, depois, o que fará nossa felicidade.

O que a vontade espera, pois, da inteligência é que ela lhe dite o verdadeiro bem, a verdade. Uma inteligência privada da verdade seria como um cego que conduzisse outro cego. O Evangelho nos diz a consequência disso: os dois infelizes caem juntos no buraco (Mt 15,14).

• O mesmo ocorre com a imaginação, se a entregamos a si mesma. Todos sabemos que prodigiosa fecundidade tem a imaginação. Sonhar, enfeitar ou enegrecer os fatos, reduzi-los ou amplificá-los, inventar ou adivinhar, tudo isso corre por sua conta. Mas ninguém ignora seus limites. Por ela mesma, não há nenhuma aquisição do real. Um homem pode imaginar que ganhou na loteria, planejar suas férias e reorganizar sua vida, mas isto não o tornará mais rico. Em tal imaginar encontrará, ao contrário, a fonte de cruéis decepções.
Podem-se adivinhar os desgastes de uma imaginação entregue à sua fantasia. Assim como a sensibilidade, ela é “uma boa serva, mas uma má patroa”. O que ela pede, pois, à inteligência é que a dirija, isto é, que lhe diga no que ela está de acordo com o real ou não. Ainda é a verdade.

Vê-se, definitivamente, que a inteligência só pode exercer sua autoridade sobre a vontade e a imaginação na medida em que está iluminada pela verdade.


3) A Alegria da Verdade

É-nos dado um sinal nesta sede da inteligência pela alegria que ela prova quando alcança uma verdade. Observemos:
• A alegria da criança que se maravilha diante de tudo o que vê;
• A alegria do pesquisador que descobre uma nova lei após dias de trabalho;
• A alegria dos amigos que se estimam;
• A alegria do filósofo que penetra, pouco a pouco, a natureza das coisas, a harmonia do universo e, além, a causa primeira. “O cume da felicidade”, disse Aristóteles, “é a inteligência das coisas belas e divinas”.
Essas alegrias que, a títulos diversos, são o fruto de um conhecimento verdadeiro nos ensinam uma lei geral: a alegria da verdade. – Gaudium de Veritate. – Muito fraca para as verdades de ordem inferior, ela se torna universal e triunfante quando se põe sobre as realidades mais altas.

Concluamos este preâmbulo olhando o caminho percorrido: os homens vivem, necessariamente, com a ideia da verdade. A posse da verdade é a própria vida da inteligência, é a condição para cumprir seu papel sobre as demais potências, é a fonte dessa alegria.

Fica claro, pois, que o indiferentismo, em face da verdade, é um erro contra a natureza. Negar a necessidade da verdade é negar a própria inteligência, é rebaixar o homem ao plano do animal. Deixaremos, de bom grado, aos defensores dessa tese o cuidado de destruir o homem e povoar os zoológicos.

Quanto a nós, concentraremos nossos esforços em trazer a lume essa atividade fundamental da vida humana, quer dizer, o conhecimento da verdade por meio da inteligência.



Artigo 1º — Definição e Divisão da Verdade

A FIM DE DESCOBRIRMOS em que consiste, exatamente, a verdade, acompanharemos Santo Tomás no seu primeiro artigo, que leva o título: “A verdade está nas coisas, ou tão-somente na inteligência?”

A linguagem corrente utiliza o termo “verdade” em dois sentidos. Para começar, diz-se que uma coisa é verdadeira. Por exemplo, alguém poderia dizer: "Este cinto é de couroverdadeiro (legítimo)"; ou: "Este acontecimento nos causaverdadeira felicidade; ou ainda: "Tal homem é um verdadeiroartista".

Quer-se dizer com isso que a coisa em questão realiza plenamente sua definição, ou que ela corresponde perfeitamente à intenção de quem a faz. – À verdade dessa natureza se chamaverdade ontológica

Por outro lado, empregamos o termo “verdade” para dizer que tal propósito é verdadeiro, tal asserção é verdadeira, como: "Averdade é que a corrupção generalizada dos nossos políticos daquele país parte do exemplo do próprio presidente da república". No sentido contrário, podemos dizer, também, que determinada proposição é falsa (com o sentido de desprovida de verdade ou contrária a ela). Quando dizemos de uma afirmativa que é verdadeira ou falsa, estamos falando da verdade lógica.

Destas duas acepções, qual convém mais propriamente à verdade? A resposta de Santo Tomás vai-nos dar a definição de verdade.

Uma vida consagrada à verdade é uma vida sacrificada, por certo, pois se trata de restaurar a ordem destruída, isto é, a primazia da contemplação (da própria verdade). Mas ela também está subentendida na alegria e no entusiasmo da pesquisa, no maravilhar-se pela descoberta. Seu caminhar pode resumir-se em três proposições:

1) Há verdade quando há conhecimento completo;

2) Há conhecimento quando há certa presença do objeto naquele que o conhece, e, pois, certa “conformidade” da inteligência à coisa;

3) A verdade está, pois, primeiramente na inteligência (verdade lógica), e secundariamente nas coisas (verdade ontológica). – Estas são as duas primeiras asserções de Santo Tomás que nos interessam aqui, para que possamos, afinal, definir o que é a verdade.


Há Verdade Quando Há Conhecimento Completo

Santo Tomás parte do princípio que verificamos no preâmbulo: “Chama-se verdadeiro aquilo para o qual tende a inteligência”.
Ora, aquilo para o qual tende a inteligência é o conhecimento. Ela busca conhecer o que a cerca, tão profundamente quanto possa.
A verdade é, portanto, o caráter do nosso conhecimento: estar na verdade, conhecer as coisas realmente. O verdadeiro é o termo em que o conhecimento repousa, seu bem, sua perfeição, seu coroamento; ao passo que o erro é o seu insucesso, seu aborto, seu mal, sua imperfeição.

Se eu digo, por exemplo, que tal homem é marceneiro, celibatário e protestante, enquanto ele de fato é confeiteiro, casado e católico, então eu não o conheço realmente, não estou na verdade.
A rigor, não há conhecimento completo que não seja verdadeiro. Um conhecimento falso não é conhecimento. Do mesmo modo que a natureza de um retrato é conformar-se perfeitamente ao modelo, – e se não o faz, já não é um retrato, – assim também a natureza do conhecimento é corresponder ao seu objeto, adaptar-se exatamente a ele: se não o faz, não existe como conhecimento; se o faz, está tudo dito, ele é verdadeiro.
Notemos, entretanto, que um conhecimento pode ser inteiramente verdadeiro sendo limitado. Este é sempre o nosso caso. Não sabemos absolutamente tudo e, no entanto, sabemos algumas coisas, como diz o Apóstolo: "Agora vemos como por um espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos faze a face. Agora meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido." (1Cor 13,12)


Como Se Realiza o Conhecimento?

Esta questão nos conduzirá à noção exata da verdade. Santo Tomás diz, sem explicações: “Há conhecimento na medida em que o conhecido está no conhecedor”. E aqui reside a dificuldade: Como o objeto conhecido pode estar naquele que conhece?

Perguntemo-lo, antes, em linguagem corrente. Numerosas expressões traduzem a ideia de conhecimento, com termos que expressam certa "posse", uma "tomada": recebe-se uma informação; compreende-se (apreende-se) um problema; assimila-se uma ideia; abraça-se toda uma questão; possui-se um motivo, ou, ao contrário, ele nos escapa.
Certas comparações são tomadas da nutrição: fala-se em "devorar um livro"; "alimentar-se da Bíblia"; ter "digerido bem um texto". Em Lectio Divina se usa a expressão ruminar o texto sagrado. Todas estas expressões são sinônimas de compreender bem.
Pode-se dizer, também que determinado discurso nos enriqueceu. Todas essas expressões sugerem a ideia de que conhecer é nutrir-se de algo, tomá-lo para si, captar algo (de real), possuí-lo em si de certa maneira. Por exemplo: quando acabamos por surpreender uma ação encoberta, ou por saber um segredo, sentimos perfeitamente que, daí em diante, levaremos conosco esse fato, ou nos sentimos um pouco como um ladrão que toma algo para si, que leva consigo o produto do seu roubo.

Em resumo, o conhecimento é um ato pelo qual a inteligência "toma posse" do objeto que conhece, tornando-o presente em si de certa maneira. Como, evidentemente, esta presença não pode ser física, só pode ser espiritual, dado que a inteligência que a recebe é, ela própria, espiritual.
Não nos proporemos, aqui, a questão a respeito de como uma coisa material pode estar presente numa inteligência espiritual. Vamo-nos contentar em constatar que essa presença é uma informação. A inteligência, antes de conhecer, é como um quadro-negro ('tabula rasa', disse Aristóteles). Quando é posta em contato com seu objeto, ela recebe um aperfeiçoamento, como se fosse um acréscimo, que não é outra coisa senão um simulacro do objeto. De certa maneira ela “se torna” seu objeto pela informação que recebe dele. A inteligência se transforma de acordo com o seu objeto, e se modela sobre ele.
Segundo Santo Tomás, o objeto conhecido é a perfeição daquele que conhece. Se vincularmos o que vimos até aqui à nossa primeira afirmação (Há verdade quando há conhecimento completo), seremos levados a constatar o que é a verdade: a verdade está na inteligência na medida em que esta se torna conforme à coisa inteligida.
A inteligência que conhece é verdadeira (ela está na verdade) enquanto tem uma similitude com a coisa conhecida, similitude que é sua forma tanto quanto a conhece.

A inteligência é verdadeira na medida em que está identificada (adaequatur) à coisa conhecida.”

“Encontra-se a verdade na inteligência na medida em que ela apreende a coisa tal qual é.”

Isso é o que exprime esta definição de verdade, formulada por um filósofo árabe do século X (Isaac), e reproduzida por Santo Tomás: “Veritas est adaequatio rei et intellectus”: A verdade é a adequação (conformidade, correspondência) entre a inteligência e a coisa”.
Esta definição é completa? Não, porque falta ainda precisar em que ato da inteligência reside a verdade (o reto julgamento das coisas). Mas agrada por enquanto, porque é suficiente para responder à questão que se põe: a verdade reside, com propriedade, na inteligência. Ela está nas coisas secundariamente.
Ficaremos nós, também, com esta definição, porque ela lança uma luz muito forte sobre o nosso objeto, e vai permitir-nos responder, já, a certas opiniões errôneas.

A lição principal que ela nos dá consiste em que a verdade é uma relação entre dois termos: um sujeito que conhece e o objeto conhecido. Relação de conformidade e, portanto, de dependência, que resulta de ter sido o sujeito transformando, aperfeiçoado por tal ou qual característica do objeto.

Os erros mais importantes que encontramos a respeito do que definimos até aqui provêm, precisamente, do esquecimento da existência de um destes dois termos da relação, a saber, do objeto conhecido. Podemos apontar quatro erros fundamentais que grassam nas mentes contemporâneas:

Erro 1: "É a sinceridade que faz a verdade". – Alguém pode ser muito sincero e mesmo assim estar completamente equivocado em relação à verdade.

Erro 2: "É a maioria que faz a verdade". – Nada mais incorreto, e a história está repleta de exemplos que o demonstram. A maioria da população da Alemanha nazista parece ter acreditado, em algum momento, que o regime nazista era justo, digno, positivamente progressista e que seria permanente.

Erro 3: "É orgulho pretender possuir a verdade". – Se assim fosse, teríamos que rotular como "orgulhosos" praticamente todos os maiores gênios que a humanidade já possuiu, a começar pelo próprio Jesus Cristo homem, que dizia com absoluta propriedade: "Em verdade vos digo...).
Erro 4: "A verdade evolui". – O que era objetivamente verdade ontem, permanece hoje e continuará eternamente, a despeito de todas as mudanças, tendências e/ou variáveis do mundo e da natureza.

A seguir, aprofundaremos melhor as respostas a cada uma destas objeções errôneas.

Respostas a algumas objeções

1 — Sinceridade e verdade

“O que conta é estar bem consigo mesmo... estar de acordo com a sua consciência... ser feliz como se é... dizer o que se pensa... o que vale é a espontaneidade da palavra ou do gesto.”

Essas reflexões vem e voltam, com muita frequência, aos lábios dos nossos contemporâneos. Desenvolvem sempre a mesma ideia: é a sinceridade que faz a verdade. Estar na verdade consistiria, então, em estar conforme a uma coerência interior, sem encontrar nenhum obstáculo, nenhuma dúvida no desenvolvimento da nossa vida psicológica.
A primeira resposta que podemos dar a essa opinião é constatar os presídios cheios de pessoas coerentes consigo mesmas, que seguem sua própria consciência. Pode-se até pensar que os maiores inimigos da humanidade, como Herodes ou Stalin, tenham sido homens sinceros. Esse critério de verdade é, pois, fraquíssimo!
Isso aparece ainda mais claramente se nos reportarmos à definição de verdade. Limitar a verdade à sinceridade é negar um dos termos da “adequação” que acabamos de ver. A verdade deixaria de ser a conformidade com a coisa real que ela conhece. É fazer do conhecimento como que um jogo solitário.

Para que haja verdade é preciso uma comparação, um contato com o real. É o que expressou Aristóteles:

Tu não és branco porque julgamos que sejas branco, mas, ao contrário, julgamos que és branco porque tu o és na realidade. Donde é manifesto que é a disposição da coisa (aquilo que a coisa é em si mesma) que é a causa da verdade do pensamento e da palavra...(ARISTÓTELES. Metafísica)

Não se pode expressar melhor o caráter objetivo da verdade.

2 — Maioria e verdade

A primeira opinião a que respondemos destruiria a verdade, limitando-a à conformidade de um homem consigo mesmo. A segunda que se nos apresenta tenta fazer consistir a verdade na conformidade com a opinião da multidão. O que diz a maioria das pessoas; “o que se diz”; “o que pensa a opinião pública”; os produtos do sufrágio universal ou até “o que se diz na televisão”: aí estariam os critérios da verdade de muitos dos nossos contemporâneos.
O pior mal, neste aspecto, é a demissão da inteligência. – Assim como a opinião anterior, esta segunda crítica não se dá conta do objeto real por conhecer, mas, – ainda mais grave, – destrói o próprio sujeito, podando-lhe sua atividade própria de apreensão do real, do raciocínio, da verificação do que é e do que não é, objetivamente. O indivíduo que não adequa sua opinião à da maioria é excluso, hostilizado, por vezes ridicularizado.

Reconheçamos que em certos casos, supondo que os homens sejam direitos e bem-informados, o que foi crido por todos e por toda a parte tem, sim, chance de ser verdadeiro. Porém esse acordo universal não é mais que um indício de verdade, e não um critério absoluto.


3 – Posse da verdade: sinal de orgulho ou de humildade?

A terceira opinião toma a forma de reprovação frequentemente dirigida às testemunhas da verdade: "Dizeis ter a verdade? Orgulhoso! Arrogante! Que auto-suficiência! Filósofos bem mais inteligentes que vós têm sabido reconhecer seus limites. Ademais, as constantes controvérsias entre os homens bem provam a inanidade da vossa pretensão. Valeis mais que os outros?"

O que conhece a verdade é o mais sábio, mais valoroso? A isto respondemos: sim e não.

Sim, é orgulho pretender ter a verdade, se nós mesmos a fazemos. Sim, é orgulhosa a inteligência que deseja ser a regra da verdade, e que se esforça por construí-la.

Veremos nos artigos seguintes que esse é, precisamente, o erro fundamental dos filósofos contemporâneos. Citemos, a título de exemplo, o socialista Jan Jaurès (1859-1914), um dos mestres do pensamento daqueles que nos governam hoje:

Toda verdade que não vem de nós é uma mentira. Se o próprio Deus aparecesse diante das multidões de forma palpável, o primeiro dever do homem seria recusar obediência, e considerá-lo como a um igual com quem se discute, e não como o mestre.(Les Deux Méthodes,1900)
Ao contrário, a definição da verdade que resgatamos mostra-nos o estado de total dependência da inteligência em face do real. Longe de ser uma marca de orgulho, a posse da verdade é, portanto, a marca de certa humildade. É o sinal de que a inteligência soube deixar–se gravar e ser informada. É um sinal muito importante que nos impede de seguir por caminho falso.
A inteligência não aborda a verdade como um superior. Aproxima-se como um mendigo, um inferior. A inteligência está a serviço da verdade, e não o inverso. Serviço afetuoso, por certo, e entusiasmado, porém respeitoso.

São Bernardo desenvolve essa ideia no início do seu tratado "Os Graus da Humildade e do Orgulho". A verdade a que ele visa é o próprio Nosso Senhor, a Verdade. Mas o que ele diz também se aplica, muito bem, às parcelas de verdades que podemos esperar.
Comenta a palavra de Jesus: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,16). “O Caminho é a humildade que conduz à Verdade.” Para justificar sua interpretação, cita Nosso Senhor: “Aprendei de mim, que sou doce e humilde de coração” (Mt 11,29). “Ele se oferece, pois, como modelo de humildade e doçura. Se for imitado, não se andará nas trevas, mas à luz da vida” (Jo 8,12). “Ora, o que é a luz da vida senão a Verdade, a Verdade, digo, que ilumina todos os homens deste mundo e lhes mostra o verdadeiro caminho? [...] Considero o caminho, isto é, a humildade, e desejo o fruto, quer dizer, a verdade. [...] O conhecimento da verdade se encontra no alto da escada da humildade.”

S. Bernardo cita, igualmente, e comenta no mesmo sentido, a prece de Nosso Senhor (Lc 10,21): “Eu vos dou glória, ó meu Pai, Senhor do Céu e da Terra, cujo conhecimento das coisas encobristes — isto é, a verdade — aos sábios — isto é, aos orgulhosos — e que revelastes aos pequenos — isto é, aos humildes (Mt 11,25).” “Por aí se vê que a verdade é coberta para os soberbos e revelada aos humildes.”


IV – A verdade evolui

Esse novo slogan também é freqUentemente encontrado: “O que dizeis é interessante, mas valia noutros tempos”; “o que era verdadeiro ontem, já não o é hoje”.
A definição de verdade continua a nos dar a resposta. O critério da verdade é a conformidade da inteligência ao real. Daí, se o objeto conhecido não muda, a verdade não mudará. Ao contrário, se o objeto muda, o que dizíamos dele já não será verdadeiro.
Se encontro um menino, por exemplo, que mede um metro e se afirmo: “Ele mede um metro”, estou na verdade. Se, dois anos depois, ao passo que o menino cresceu 20 cm, eu continuo a afirmar que ele mede um metro, estou em erro. Mas, se disser: "Há dois anos ele media um metro", continuo na verdade. Foi o menino que mudou, e não a verdade que eu disse sobre ele. Além disso e mais profundamente, se eu afirmo do menino, nessas duas épocas, que ele tem natureza humana e que, portanto, deve obedecer a determinadas leis, e que é feito para o Céu, então digo uma verdade que não mudará jamais.
A permanência (ou, ao contrário, a variação) da verdade decorre da permanência (ou mudança) do objeto. Decorre da característica objetiva da verdade. Verdade e objeto estão intrinsecamente ligados.
Eis, portanto, as características da verdade que sua definição nos permite conhecer, e que essas objeções fizeram ressaltar: a verdade é objetiva, é imutável na medida em que o objeto é imutável. Essa mesma definição guiará o prosseguimento do nosso trabalho. A verdade, sendo a adequação da inteligência ao real, e portanto uma relação entre dois termos, fará com que seja necessário estudar o papel especial desses dois termos na gênese da verdade.

O artigo 2º estudará a verdade do lado da inteligência. Em que ato da inteligência se situa, e como ela aí nasce. O artigo 3º considerará a verdade do lado do objeto. Um último artigo nos permitirá tirar algumas conclusões práticas ao estudar as relações entre o bem e a verdade.


A negação do óbvio

O primeiro artigo da questão em que Santo Tomás estuda a verdade, na Suma Teológica (I, q. 16, a. 1), permitiu-nos resgatar a definição da verdade: “A verdade é a adequação entre o real e a inteligência”. Em sua simplicidade, essa definição parece evidente, e não deverá suscitar nenhuma dificuldade. No entanto, quando se estudam de perto os sistemas de pensamento que dirigem a vida intelectual da Europa desde o século XVII, verifica-se que todos têm como ponto de partida a negação dessa definição. Essa rejeição é como um fundo comum que une todos eles.

Isso aparece, por exemplo, num manual de preparação para um exame de Filosofia. No capítulo “verdade”, um resumo histórico descreve assim a concepção da verdade na Idade Média: “Na Idade Média, é a famosa adequação entre a coisa e o espírito o que constitui a doutrina da verdade. A verdade é, então, a conformidade e adequação do nosso pensamento às coisas.”

Muito bem. O texto prossegue em forma de comentário: “Mas o que pode significar uma verdade-cópia? Toda verdade supõe uma construção, não uma fotografia pura e simples da realidade”(!). Após essa execução sumária, passa imediatamente aos dois filósofos que solaparam tal concepção realista: Descartes e Kant.

Uma oposição quase generalizada caracteriza a questão. Nós a abordamos como a um divisor de águas. Segundo a posição que tomamos, nossa vida intelectual, moral, política, religiosa se estabelecerá em mundos totalmente diferentes. Mais do que em qualquer outro lugar, não temos a direito de nos enganar.
Os que nos objetam a argumentação incitam-nos, igualmente, a prolongar nosso estudo a partir do mesmo ponto em que o deixamos. Essa "verdade-cópia", que eles recusam, e que seria como que uma fotografia, onde o sujeito permanece puramente passivo, essa “verdade” não é aquela da adequação. Não é a do realismo. Vemo-nos obrigados a precisar e defender esta última.
** Continua...

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Fonte:
A Verdade: estudo filosófico. DOMINIQUE, Jean. Campo Grande: Ed. Santo Tomás, 2003.

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A palavra "símbolo" é derivada do grego antigo  symballein , que significa agregar. Seu uso figurado originou-se no costume de quebrar um bloco de argila para marcar o término de um contrato ou acordo: cada parte do acordo ficaria com um dos pedaços e, assim, quando juntassem os pedaços novamente, eles poderiam se encaixar como um quebra-cabeça. Os pedaços, cada um identificando uma das pessoas envolvidas, eram conhecidos como  symbola.  Portanto, um símbolo não representa somente algo, mas também sugere "algo" que está faltando, uma parte invisível que é necessário para alcançar a conclusão ou a totalidade. Consciente ou inconscientemente, o símbolo carrega o sentido de unir as coisas para criar algo mair do que a soma das partes, como nuanças de significado que resultam em uma ideia complexa. Longe de objetivar ser apologética, a seguinte relação de símbolos tem por objetivo apenas demonstrar o significado de cada um para a cultura ou religião que os adotou.

Como se constrói uma farsa?

26 de maio de 2013, a França produziu um dos acontecimentos mais emblemáticos e históricos deste século. Pacificamente, milhares de franceses, mais de um milhão, segundo os organizadores, marcharam pelas ruas da capital em defesa da família e do casamento. Jovens, crianças, idosos, homens e mulheres, famílias inteiras, caminharam sob um clima amistoso, contrariando os "conselhos" do ministro do interior, Manuel Valls[1]. Voltando no tempo, lá no já longínquo agosto de 2012, e comparando a situação de então com o que se viu ontem, podemos afirmar, sem dúvida nenhuma, que a França despertou, acordou de sua letargia.  E o que provocou este despertar? Com a vitória do socialista François Hollande para a presidência, foi colocada em implementação por sua ministra da Justiça, Christiane Taubira,  a guardiã dos selos, como se diz na França, uma "mudança de civilização"[2], que tem como norte a destruição dos últimos resquícios das tradições qu

Pai Nosso explicado

Pai Nosso - Um dia, em certo lugar, Jesus rezava. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou a seus discípulos”. È em resposta a este pedido que o Senhor confia a seus discípulos e à sua Igreja a oração cristã fundamental, o  Pai-Nosso. Pai Nosso que estais no céu... - Se rezamos verdadeiramente ao  "Nosso Pai" , saímos do individualismo, pois o Amor que acolhemos nos liberta  (do individualismo).  O  "nosso"  do início da Oração do Senhor, como o "nós" dos quatro últimos pedidos, não exclui ninguém. Para que seja dito em verdade, nossas divisões e oposições devem ser superadas. É com razão que estas palavras "Pai Nosso que estais no céu" provêm do coração dos justos, onde Deus habita como que em seu templo. Por elas também o que reza desejará ver morar em si aquele que ele invoca. Os sete pedidos - Depois de nos ter posto na presença de Deus, nosso Pai, para adorá-lo