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CELIBATO ECLESIÁSTICO: HISTÓRIA E FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS



I. Introdução

Cardeal Alfons
Maria Stickler
No debate sobre o celibato dos ministros da Igreja Católica, que regressa sempre de novo e que tem se intensificado nos últimos tempos, encontramos as mais variadas opiniões, especialmente no que se refere à sua origem e desenvolvimento na Igreja Ocidental e Oriental. Essas opiniões vão desde a convicção de sua origem divina até de que se trata, – especialmente no caso da disciplina, mais restrita, da Igreja latina, – de uma mera instituição eclesiástica. Da disciplina da Igreja Latina, se afirma frequentemente que a obrigatoriedade do celibato só poderia ser constatada desde o século IV em diante; para outros, ela foi adotada no início do segundo milênio, concretamente a partir do II Concilio de Latrão em 1139.

Essas opiniões tão distantes entre si, e as razões e premissas que se alegam para sustentá-las, permitem constatar a existência de uma significativa imprecisão no conhecimento dos fatos e das disciplinas eclesiásticas a esse respeito, e ainda mais sobre os motivos do celibato eclesiástico. Esta imprecisão é verificada inclusive em algumas declarações no ambiente eclesiástico, alto ou baixo.

Parece, pois, necessário para alcançar um conhecimento seguro desta tão criticada Instituição, esclarecer os fatos e as disposições da Igreja, desde o início até hoje, e analisar os seus fundamentos teológicos. É evidente que este objetivo, se quisermos que a nossa exposição tenha validade científica, só será alcançado a partir de um conhecimento atualizado das fontes e da bibliografia sobre a questão.

Neste sentido, convém notar que, nos últimos tempos, foram alcançados importantes resultados sobre a história do celibato eclesiástico, no Ocidente e no Oriente. Mas tais resultados ou ainda não entraram na consciência geral ou são silenciados, pois se considera que poderiam influenciar de uma forma não desejada em dita consciência.

Esta exposição sintética irá acompanhada de um dispositivo científico que se limita ao essencial e que permite, junto ao controle das afirmações feitas, um eventual aprofundamento posterior no seu conteúdo.

A descrição da evolução histórica da questão, tanto na Igreja ocidental como na oriental, irá precedida de uma parte na qual, acima de tudo, se fará um esclarecimento do conceito de celibato eclesiástico que está na base das obrigações que impõe, para em seguida indicar o método exigido para chegar, – em uma adequada apreciação do tema, – a conclusões seguras. A última parte será dedicada às bases ou fundamentos teológicos do celibato, cujo desenvolvimento é cada vez mais necessário.


II. Conceito e Método

• Significado do conceito do celibato: a continência.

A primeira e mais importante premissa para se conhecer o desenvolvimento histórico de qualquer instituição é a identificação do verdadeiro significado dos conceitos sobre os quais se baseia. No caso do celibato eclesiástico, foi oferecida de maneira clara e concisa por um dos maiores decretistas: Huguccio Pisa, que na sua conhecida Summa, composta aproximadamente em 1190, começa o comentário ao tratado do celibato com estas palavras: “(...) para tratar especialmente da continentia clericorum, ou seja, a que devem observar in non contrahendo matrimonio et in non utendo contracto".

Nestas palavras é mencionada, com a clareza desejável, uma dupla obrigação: a de não se casar e a de não usar de um casamento previamente contraído. Isto mostra que naquela época, ou seja, no final do século XII, ainda havia clérigos maiores que se tinham casado antes de receber a sagrada Ordenação.

A mesma Sagrada Escritura nos mostra que a Ordenação de homens casados foi, de fato, uma coisa normal, porque São Paulo escreve a seus discípulos Timóteo e Tito que tais candidatos deveriam ter se casado apenas uma vez1. Sabemos que pelo menos São Pedro esteve casado, e talvez houvesse outros Apóstolos, pois o próprio Pedro disse ao Mestre: “Nós deixamos tudo e te seguimos. Qual será nosso futuro?” E Jesus, em sua resposta, disse: “Em verdade vos digo que ninguém que tenha deixado casa, pais, irmãos, esposa (ou) filhos pelo Reino de Deus deixará de receber muito mais no mundo presente e a vida eterna no mundo futuro” (Lc 18,29-30).

Aparece já aqui a primeira obrigação do celibato eclesiástico, isto é, a continência de todo uso do Matrimônio posteriormente à Ordenação sacerdotal, da qual decorre tal obrigação. Nisto consiste realmente o significado do celibato, hoje quase esquecido, mas claro para todos durante o primeiro milênio, inclusive antes: a absoluta continência na geração de filhos, incluindo a permitida (inclusive devida) por ser própria do Matrimônio.

De fato, em todas as primeiras leis escritas sobre celibato, – conforme mostraremos por documentos na segunda parte, – fala-se da proibição de gerar filhos depois da Ordenação. Este fato demonstra que esta obrigação devia ser fortemente exigida para o grande número de clérigos anteriormente casados, e que a proibição do casamento tinha no início uma importância secundária. Esta última só passou para o primeiro plano quando a Igreja começou a preferir e, em seguida, a impor candidatos celibatários dentre aqueles que eram escolhidos quase exclusivamente dos aspirantes às sagradas Ordens.

Para concluir este primeiro esboço do significado do celibato eclesiástico, que foi chamado desde o início e com propriedade “continência”, é preciso esclarecer, rapidamente, que os candidatos casados podiam ser ordenados e renunciar à utilização do Matrimônio apenas com o consentimento da sua esposa, já que ela, por força do Sacramento recebido, possuía um direito inalienável à utilização do casamento contraído e consumado, que é indissolúvel. O conjunto de questões derivadas de tal renúncia será tratado na segunda parte.


• Orientações para a investigação sobre a origem e desenvolvimento do celibato eclesiástico
O segundo pressuposto para alcançar um conhecimento correto da origem e do desenvolvimento do celibato eclesiástico, – ao que podemos chamar simplesmente “continência” sexual, uma vez esclarecido o seu significado, – é tanto mais importante quanto melhor advertimos a variedade de opiniões sobre a origem e primeiro desenvolvimento da obrigação de continência, e pode ser explicado pelo fato de o método justo de investigar e expor a questão não ser observado.

Deve-se notar aqui que, em geral, cada campo científico tem a sua própria autonomia em relação aos demais, com base no seu objeto próprio e no método postulado por ele. É verdade que na investigação científica sobre ciências relacionadas existem regras comuns que devem ser observadas. Por exemplo, em uma investigação de caráter histórico não se pode prescindir da regra que prescreve uma crítica preliminar das fontes, que determine a autenticidade e a integridade destas, para se ocupar depois do seu valor intrínseco sobre essa base, ou seja, sobre sua credibilidade e valor demonstrativo.

Neste contexto, é absolutamente necessária a capacidade e a vontade de compreender e utilizar adequadamente documentos e seu conteúdo. Somente sobre esta base segura, – autenticidade, integridade, credibilidade e valor, – se pode desenvolver uma adequada hermenêutica ou interpretação das fontes.

Junto a estes pressupostos metodológicos gerais, é necessário também aplicar a metodologia especificamente requerida por cada ciência. A Historiografia Filosófica competente, por exemplo, exige um conhecimento adequado da Filosofia, bem como a Historiografia Teológica pressupõe o conhecimento da Teologia e a Historiografia da Medicina ou da Matemática requerem um conhecimento suficiente dessas ciências. Do mesmo modo, na Historiografia Jurídica não pode faltar o conhecimento do Direito e das suas exigências metodológicas próprias.

De acordo com o exposto, deve-se ter em conta que a história do celibato eclesiástico implica, em seu conteúdo e desenvolvimento, o Direito e a Teologia da Igreja. Por isso, se quisermos fazer uma boa hermenêutica dos testemunhos históricos (fatos e documentos), não se pode prescindir do método próprio do Direito Canônico e da Teologia. O significado e a necessidade dessas observações, que à primeira vista podem parecer abstratas, serão evidentes ao aplicá-las de modo concreto à questão que agora estudamos.


• Raízes do recente debate sobre as origens do celibato

Franz Xavier Funk
No final do século passado, tivemos uma áspera discussão sobre a origem do celibato eclesiástico, ainda recordada e influente. Gustav Bickell, filho de um jurista e ele mesmo orientalista, atribuía a origem do celibato a uma disposição apostólica, apoiando-se principalmente em testemunhos orientais. Respondeu-lhe Franz X. Funk, conhecido estudioso da história eclesiástica antiga, negando que se pudesse fazer tal afirmação, já que a primeira lei conhecida sobre o celibato remonta ao início do quarto século. Depois de um duplo confronto de escritos sobre o assunto, Bickell fez silêncio, enquanto Funk repetia uma vez mais, sinteticamente, seus resultados, sem receber resposta do adversário. Recebeu, pelo contrário, importante consenso de dois grandes estudiosos, como eram E. F. Vacandard e H. Leclercq. A autoridade e influência de suas opiniões, difundidas amplamente pelos meios de difusão (dicionários), concederam à tese de Funk um consenso considerável, que perdura até hoje.

Considerando o que acabamos de dizer sobre as premissas dos princípios metodológicos na investigação, deve-se notar que F. X. Funk, ao formular suas conclusões, não levou em conta, sobretudo, os critérios gerais de interpretação das fontes, algo realmente estranho para um estudioso altamente qualificado como ele sem dúvida era. Aceitou como bom, e utilizou como um dos seus principais argumentos contra a opinião de Bickell, a narração espúria sobre a intervenção do bispo e monge egípcio Pafnucio (o Confessor) no Concílio de Niceia em 325. E isso, ao contrário da crítica básica externa das fontes que, já antes dele, tinha afirmado repetidamente a não autenticidade desse episódio (o que está comprovado, como demonstraremos na quarta parte). Funk cometeu um erro metodológico ainda maior, embora menos culpável, ao aceitar apenas a existência de uma obrigação oficial do celibato, que tenha sido expressa através de uma lei escrita. O mesmo se pode dizer do historiador da teologia, Vacandard, e do historiador dos Concílios, Leclercq.


• A transmissão oral do direito

Hans Kelsen
Qualquer historiador do direito sabe que um dos teóricos com mais autoridade deste século, Hans Kelsen, disse explicitamente que é equivocada a identificação entre direito e lei, ius et lex. Direito (ius) é toda norma jurídica obrigatória, tanto se foi dada oralmente e através do costume, como se já foi expressa por escrito. Lei (lex) é, no entanto, toda disposição dada por escrito e promulgada de forma legítima.

Uma peculiaridade típica da lei, testemunhada durante toda a sua história, está na origem dos ordenamentos a partir das tradições orais e da transmissão de normas consuetudinárias (isto é, pertencentes aos costumes de um povo, aos hábitos de uma sociedade; que se fundamentam nos usos e costumes, na prática e não nas leis escritas) que lentamente são postas por escrito. Por exemplo, os romanos, expressão do gênio jurídico mais perfeito, somente depois de séculos tiveram a lei escrita das Doze Tábuas, por razões sociológicas. Todos os povos germânicos escreveram seus ordenamentos jurídicos populares e consuetudinários depois de muitos séculos desde a sua existência. O direito desses povos era, até então, não escrito e só eram transmitidos oralmente. Ninguém se atreveria a afirmar, contudo, que por isso tal ius não fosse obrigatório e que sua observância estivesse deixada ao livre arbítrio de cada indivíduo.

Como em qualquer ordenamento jurídico próprio de grandes comunidades, as disposições e obrigações da jovem Igreja foram, em grande medida, transmitidas apenas oralmente; ainda mais porque durante os três séculos de perseguição (embora intermitente) dificilmente poderiam ter sido fixadas as leis por escrito. De qualquer maneira, a Igreja possuía, já por escrito, alguns elementos de direito primitivo, e em maior medida do que outras sociedades jovens. Uma prova disso nos dá a Sagrada Escritura. São Paulo escreve, na verdade, em sua segunda Carta aos Tessalonicenses (2, 15) estas palavras: “Exorto, pois, irmãos, ficai firmes e guardai as tradições que haveis aprendido, tanto oralmente, tanto através de nossas Cartas”. E, mais ainda, na mesma Carta, reafirma depois: "Em Nome de nosso Senhor Jesus Cristo, apartai-vos de todo irmão que não anda segundo a Tradição que de nós recebeu” (2Ts 3,6).

Estas admoestações se referem, sem dúvida, às disposições obrigatórias expedidas não apenas por escrito, como foi expressamente afirmado, mas também ensinadas oralmente, e assim transmitidas. Então, quem somente admitisse disposições obrigatórias as que podem ser encontradas nas leis escritas, não estaria fazendo justiça ao método de conhecimento próprio da história dos ordenamentos jurídicos.


• Os postulados do dado teológico

O método apropriado para estudar os fundamentos teológicos da continência do clero deve ter em conta que, além de questões disciplinares e jurídicas, a continência também está ligada, no caso deles, a um carisma intimamente relacionado com a Igreja e com Cristo. Seu conhecimento e análise só podem ser feitos, consequentemente, à luz da Revelação e da elaboração teológica.

Como é agora bem conhecido, a Teologia medieval não se preocupou muito com questões jurídicas e disciplinares, nem do modo apropriado, mas se apropriou das discussões e das conclusões da canonística clássica, – também chamada “glosadores”, – então muito florescente. Os historiadores da Teologia Medieval constataram isso há bastante tempo, e, um olhar para a obra do príncipe da Escolástica Medieval confirma-o suficientemente. Esta realidade pode ser considerada também como a principal razão de que a continência do clero não foi tratada suficientemente, quer dizer, conforme a sua metodologia fundada na Revelação e nas suas fontes. Embora esta falta tenha sido já reparada em grande medida, hoje segue sendo necessário um maior aprofundamento nos fundamentos propriamente teológicos do nosso tema. Na última parte deste trabalho, procuraremos atender a essa exigência tão legítima.

** Continua...

____
Nota:
1. Trata-se de uma questão muitíssimo mais simples do que pode parecer à primeira vista. A elucidação desta passagem está diretamente relacionada à ambientação e ao contexto geral do início da Igreja, quando, em primeiro lugar, evidentemente não havia ainda, formalizada, a regra do celibato sacerdotal como a conhecemos. Em segundo lugar, naquelas primeiríssimas gerações de cristãos, os bispos precisavam ser escolhidos dentre os mais santos e sapientes no grupo dos fiéis. Invariavelmente, – como é de se esperar, – estes eram homens mais velhos, que, naquelas comunidades recém-nascidas do judaísmo, eram obrigatoriamente casados e chefes de família (devido aos costumes dos judeus).
Observemos muito bem que o texto bíblico não está dizendo que o bispo precisa ser casado e ponto final. Diz, isto sim, que eledeve ser casado uma só vez (já que simplesmente não haviam homens celibatários à disposição para escolha): a ênfase da frase está na afirmação da indissolubilidade do casamento e, indiretamente, na castidade.
Ao contrário, se estivesse sendo dito, aí, que o bispo precisaria necessariamente ser casado, e mais ainda, que fosse esta uma espécie de regra perpétua da Igreja, como querem alguns, então seria uma contradição ao que o mesmo S. Paulo diz em sua 1ª Carta aos Coríntios (7, 8-9), ou seja, que é melhor aos que buscam a santidade que permaneçam solteiros do que se casem.

• Fontes e bibliografia na conclusão
www.ofielcatolico.com.br

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